É absolutamente compreensível que reclamações e protestos ocorram quando os preços caem a ponto de não remunerar a atividade, ou quando há uma percepção de ganhos assimétricos na cadeia. Na Europa, por exemplo, são comuns os protestos de produtores, com derramamento de leite e fechamento de estradas. Também, é de conhecimento de todos que a produção de leite é uma atividade sensível, já que o produtor não tem como estocar o produto ordenhado diariamente. Disso, depreende-se a existência de políticas protecionistas em vários países, bem como a estruturação de cooperativas que, em tese, aumentam o poder de barganha do produtor.
Antes de continuar, aviso que este artigo não é nem a favor, nem contra as atuais entidades de representação. Meu intuito é dar uma visão de quem está de fora do processo (não é produtor, não é indústria, não é entidade) e, portanto, tem a liberdade proporcionada pela neutralidade.
O primeiro aspecto que considero relevante colocar é que, com ou sem deficiências, o fato é que as entidades existentes conseguiram, em momentos passados, vitórias importantes para a estabilização do preço do leite brasileiro, mesmo diante de condições de mercado adversas no exterior. O gráfico 1 mostra a flutuação de preços em dólar do leite brasileiro versus os valores convertidos a partir do leilão gDT, que norteia parte dos negócios lácteos no comércio internacional.
Gráfico 1. Preços convertidos em dólar – leite brasileiro x leite segundo o leilão gDT.
Fonte: MilkPoint Inteligência, a partir de dados do Global Dairy Trade, CEPEA e BACEN.
Pelo gráfico, ficam evidentes 2 pontos: primeiro, nosso leite, via de regra, esteve precificado acima do preço internacional. De fato, desde julho de 2008, em 63% dos meses o leite brasileiro valeu mais do que o internacional. Na média acumulada deste período, o preço internacional foi de US$0,39/litro e o nosso, US$0,41 /litro.
O segundo ponto é que a variação dos preços, pelo menos até meados de 2015, foi bem menor no Brasil do que no exterior, como o gráfico mostra. Estes dois pontos – preços mais altos e menos voláteis – estão na raiz do forte crescimento do leite brasileiro de 2008 a 2014. Neste período, o leite com SIF cresceu 4,2% ao ano, ao passo que nos Estados Unidos o crescimento foi de 1,4% e na Argentina apenas 0,7%, para ficar em alguns exemplos.
Como conseguimos permanecer imunes ao que vinha ocorrendo no mercado internacional? A resposta disso está na Tarifa Externa Comum, de 28%, aplicada pelo Mercosul e que sempre teve no Brasil seu principal defensor (aliada às tarifas anti-dumping, que dificultam a entrada de leite na Nova Zelândia e Europa, mediante impostos adicionais). Sem entrar no mérito se essa prática é interessante no longo prazo, o fato é que com a proteção, os preços aqui seguiram a lógica do mercado interno (que consumia cada vez mais) e permitiram que o produtor tivesse, em sua maioria, bons momentos de mercado nos últimos anos.
Assim, minha leitura é que as entidades lograram sucesso em algumas iniciativas que protegeram o setor e isso contribuiu, ainda que provisoriamente e talvez criando uma falsa sensação de competitividade, para o crescimento da atividade. Certamente, outros exemplos poderão ser lembrados.
Por outro lado, sim, considero que falte uma representação dos produtores de leite no Brasil, como ocorre com outros segmentos. As entidades atualmente ativas – notadamente os sindicatos, federações e a confederação nacional – obviamente possuem uma pauta extensa de interesses – os interesses dos produtores rurais brasileiros. Por consequência, as pautas específicas de cada setor precisam ser encampadas por entidades que trabalharão em parceria com os atuais agentes. E, no caso do leite, não há hoje quem cumpra esse papel.
Quais as razões para que uma atividade com tamanha importância e abrangência nacional, que gera milhões de empregos diretos, não tenha uma entidade nacional, com uma agenda moderna e que possa ser a interlocutora do setor?
Acredito em várias razões possíveis. A primeira delas é o próprio desinteresse dos produtores, cuja capacidade de associação é, via de regra, pequena, ainda mais quando o mercado está favorável. Basta constatar que, nos últimos 5 anos, apenas agora o tema parece ganhar destaque! Enquanto os preços andavam suficientes, não ter uma entidade forte não parecia um problema. Uma entidade forte precisa existir tanto na alta quando na baixa, trabalhando uma agenda de mais longo prazo.
O outro ponto que arrisco colocar é que, dada a discrepância de preços no mercado brasileiro, os grandes produtores, àqueles que em tese têm maior capacidade de influência e articulação, têm estado em uma situação de mercado distinta da média dos produtores. Seus preços são sensivelmente mais altos e eles estão tomando conta de seus negócios para ampliá-los. Claro que são afetados por preços mais baixos e custos mais altos, como todos. Porém, considerando que recebem um adicional considerável por volume, talvez tenham um baixo incentivo para se envolver em entidades de classe. Em outras palavras, os problemas do setor, em larga medida, não são os seus problemas; não existe “o produtor de leite”, mas sim vários perfis de produtores.
O terceiro ponto, ligado a este último, é a alta heterogeneidade do setor. Como representar em uma mesma entidade um produtor de 50 kg/dia, no Nordeste, e um produtor de 50.000 kg em São Paulo? Não é tarefa fácil... apesar de ambos produzirem leite, estão em contextos de mercado completamente distintos.
Por fim, vem a questão: quem irá pagar? É muito comum a postura do “carona”: quer os benefícios, o bônus de se ter uma associação forte, mas não o ônus de sustentá-la. Ou ainda: exige, mas não participa. A cobrança compulsória, aquela forçada por lei, é praticamente inviável. Resta, portanto, a contribuição voluntária, o que torna bastante difícil a operacionalização e a sustentação da atividade, lembrando que, sem recursos, uma entidade tem pouco a fazer, por melhores que sejam as intenções. Se o setor produtivo de leite quiser estruturar uma entidade de representação, ou mesmo se envolver em alguma que já exista e que possa ser ampliada/renovada, aqui vão as minhas dicas para que o processo tenha futuro:
A) O processo tem que começar top/down: um grupo de grandes produtores precisa investir para que se crie uma estrutura de captação de recursos, a ser estendida a outros produtores, como por exemplo aqueles com mais de 500 litros/dia, com contribuição voluntária, com base em uma porcentagem da receita recebida.
B) Alguém (sempre há a necessidade de um “pai da criança”) precisa se dedicar de corpo e alma para fazer a coisa acontecer.
C) A agenda básica da entidade deve contemplar poucos itens, mas itens representativos, que sejam de interesse geral do setor.
D) A administração deve ser profissionalizada, com executivos contratados no mercado.
E) A governança precisa ser consistente, com transparência no uso dos recursos e forte prestação de contas.
F) Cargos políticos devem ter prazo definido e com reeleição limitada.
G) É preciso que se tenha representatividade regional, com delegados por mesoregião (exemplo) e estaduais, em número proporcional à produção de leite.
Estas são apenas algumas ideias que, em minha opinião, criariam uma entidade diferente, com representatividade e com potencial de realmente contribuir. Certamente há outros pontos importantes que podem e devem ser considerados. Outro ponto que sempre surge nestes momentos é se a AgriPoint pode organizar esse processo. Ficamos muito orgulhosos com esse voto de confiança, mas está além de nosso papel, que abrange toda a cadeia do leite, gerando informações que melhorem a capacidade do setor em tomar decisões e se aperfeiçoar técnica e administrativamente. Porém, se houver interesse dos produtores em estruturar algo dessa natureza, estaremos dispostos a contribuir com ideias e apoiar a iniciativa.