É de certa forma irônico que esteja escrevendo sobre a Holanda poucas horas depois de nosso infortúnio na Copa do Mundo de 2010. A rigor, por poucos dias não assisto à derrota brasileira em plena Amsterdam, o que teria sido interessante ao menos para ver a festa dos holandeses ao vencer o sempre respeitado e temido time brasileiro.
É que, no final do mês passado, tive a oportunidade de visitar a Holanda e conhecer um pouco da produção de leite e da genética desse país cuja área é cerca de 200 vezes menor do que a nossa, mas cujo PIB chega a um terço do nosso.
Se no futebol nós perdemos, no leite temos grandes chances de vencê-los, ao menos se olharmos para o longo prazo. Há, no entanto, que se começar ressaltando os méritos holandeses, não só por ser o berço da principal raça produtora de leite no mundo, mas também por ser um dois países europeus mais competitivos em termos de custos de produção, a despeito das enormes dificuldades, refletidas, por exemplo, no fato de terem literalmente criado área de produção ao drenar o mar, criando os famosos pôlders (cerca de 200.000 hectares altamente produtivos foram criados dessa forma).
Há, também, uma uniformidade nivelada por cima, pelo menos nas propriedades que visitei. Sistema de produção confinado em free-stall ou semi-confinado, com pastagens de azevém de altíssima qualidade; silagem de milho e silagem pré-secada de azevém também que dá gosto de ver; dietas com bastante fibra e uso moderado de concentrados, ao redor de 1 kg para cada 4 kg de leite (concentrado custando R$ 0,45/kg), chegando a 5 ou 6 para 1 em alguns casos; produtividade de 15 a 18.000 kg/ha/ano. Vimos produções por vaca/ano da ordem de 9 a 12.000 kg de leite, com 2 ordenhas e sem BST, que é proibido na Europa.
Tanto o manejo como a genética visam à longevidade e alto teor de sólidos. Segundo dados apresentados pelo consultor Fokko Tolsma, que inclusive estará novamente no 10º Interleite, em agosto, a vida produtiva média de uma vaca na Holanda é de 1328 dias, contra 749 dias nos Estados Unidos, onde a produtividade por animal até tende a ser mais alta, mas com taxa de descarte bem superior.
Chama a atenção também o profissionalismo na prestação de serviços. A produção agrícola é toda terceirizada, bem como a distribuição e incorporação do esterco. Fica a impressão, ao final, de que o sistema de produção holandês está sendo explorado no limite de sua capacidade, algo muito diferente do que vemos por aqui.
E, mesmo assim, não parece ser suficiente. Os problemas não estão na esfera técnica, mas existem e colocam um grande ponto de interrogação no futuro da produção holandesa e de grande parte da Europa quando as cotas forem eliminadas, em 2015.
As cotas têm sido historicamente uma garantia de se evitar a superprodução e, assim, manter os preços pouco voláteis e remuneradores. No pós-guerra, a necessidade de garantir alimentação estimulou a política de subsídios agrícolas que por sua vez poderiam resultar em superprodução, não fossem as cotas.
Ocorre que as cotas custam caro: na Holanda, o direito de produzir custa 20 Euros por kg de gordura, o que dá cerca de 0,85 €/kg de leite. Para uma vaca de 10.000 kg/ano, o produtor precisa desembolsar 8.500 €; para 100 vacas e 1 milhão de kg/ano (2.740 kg/dia), são nada menos do que 850.000 €, ou o equivalente a quase R$ 2 milhões, somente para ter o direito de produzir!
Esse custo, financiado, gera juros equivalentes a 0,03 a 0,05 €/kg de leite produzido para a maior parte dos produtores, o que encarece o custo de produção. Aliás, o nível de endividamento médio do produtor holandês é de 1,50 € por kg produzido. Assim, um produtor que produz 1 milhão de kg/ano em média deve 1,5 milhão de Euros ao banco (dívidas de longo prazo, mas de qualquer forma, elevadas).
E o ambiente futuro é cercado de incertezas. Primeiro, os preços mundiais dos lácteos flutuaram como nunca nos últimos 3 anos, variando desde preços nos quais quase nenhum país consegue produzir, até preços em que quase todos conseguem. Como o produtor holandês (e europeu) poderá planejar o futuro, sabendo que o preço que precisa para compensar seus custos - cerca de 0,30 €/kg, está acima do custo de vários exportadores tradicionais, mas significativamente abaixo dos picos de preço de 2007 e 2008? Como as instituições financiadoras gerenciarão esse risco (considerando que os produtores já são bastante endividados)?
As incertezas também residem no fato de que não se sabe ao certo o que ocorerá quando as cotas acabarem. Fala-se em preços de 15 a 20% mais baixos, o que colocaria em risco grande número de produtores - algumas regiões provavelmente serão inviabilizadas.
É esperado que, com o final das cotas, haja mais flexibilidade, resultando no crescimento dos produtores mais eficientes, bem como na saída dos menos eficientes. Mas mesmo essa movimentação não é tão simples assim: um hectare de terra custa, na Holanda, entre 30 e 50.000 euros, o que chega a ser mais de R$ 110.000! Considerando o nível já elevado de endividamento e esse custo proibitivo da terra, que atividade alguma remunera, fico em dúvida se realmente haverá uma reorganização significativa da produção européia, ao menos em países como a Holanda.
Também, o custo da mão-de-obra é um empecilho. As fazendas são familiares, com pai, mãe e, às vezes, filhos trabalhando. Para contratar mão-de-obra externa, são necessárias 40 vacas adicionais. Entre terra e vacas, são cerca de 1 milhão de euros, sem falar na compra das cotas que ainda vigora, ao custo extra de quase 350.000 euros. A expansão, enfim, não é tão simples, mesmo com o final das cotas.
Mas não é só isso. Ao questionar os produtores sobre o que mais lhes tira o sono, as respostas variaram entre as questões ambientais, altamente críticas em um país pequeno, com lençol freático alto, populoso e cheio de vacas como a Holanda, e o problema de sucessão. Quase todos os produtores achavam que seus filhos não seguiriam na atividade que, mais do que um empreendimento econômico, tem sido um meio de vida há décadas ou séculos.
Olhando assim, fica a sensação de que a produção holandesa é eficiente, de alta qualidade, de grande beleza, como as fotos atestam, mas talvez insuficientes nesse novo contexto de redução do intervencionismo, como a eliminação das cotas em 2015 (e dos subsídios a exportação em 2013).
Mas.alto lá. Os produtores com os quais conversamos foram unânimes em dizer que com preço de 0,35 €/kg, remuneram todos os seus custos (inclusive mão-de-obra familiar) e têm lucro. Esse valor de referência - equivalente a quase R$ 0,80/kg de leite (e, lembremos, o leite holandês têm mais gordura e proteína do que o nosso), não é muito diferente do que os produtores mais especializados pleiteiam por aqui, pelo menos nas regiões Sudeste e Centro-Oeste.
No final, não tive como deixar de refletir: mesmo considerando que há subsídio na forma de pagamentos diretos, se os produtores de um país com todas as dificuldades para se produzir leite como a Holanda ficam satisfeitos com a mesma faixa de preços de que nossos produtores por aqui, onde não há cotas, as restrições ambientais são menores, há disponibilidade de suplementos, a mão-de-obra é mais barata e a moeda é mais fraca, é sinal de que há muito ainda a se fazer em relação à eficiência da produção de leite no Brasil.
Obs: viajei à Holanda a convite da CRV Lagoa.