O gráfico 1 mostra que, do ano 2000 em diante, quem vem sustentando o crescimento econômico mundial são países que, até alguns anos, eram meros coadjuvantes na economia mundial, o chamado bloco dos países "subdesenvolvidos" (agora "emergentes").
Reformas econômicas, melhoria do ambiente político, fluxo de informação e capital e melhoria do ambiente regulatório nesses países são algumas das causas que explicam esse desgarramento entre as taxas de crescimento das economias desenvolvidas e as emergentes. A continuação dessa tendência, aliada a uma redução na taxa de crescimento populacional desses países, tende a convergir (no longo prazo), a renda per capita dos países emergentes com a dos países desenvolvidos.
Essa transformação é significativa porque o crescimento da renda per capita nestes países certamente estimulará o consumo de lácteos, acompanhado ainda de um processo de universalização de hábitos nos países orientais, em que costumes ocidentais, como o consumo de lácteos, tendem a se expandir. Isso, de fato, já vem ocorrendo. Cerca de 75% do aumento do consumo de lácteos ocorre nos países emergentes. É bem verdade que há um processo altamente concentrado nesses números: Índia e China foram responsáveis por quase a metade deste crescimento nos últimos anos. De qualquer forma, o gráfico 1 mostra que o bloco destes países emergentes, que vão bem além de Índia e China, deverá crescer consistentemente nos próximos anos, apesar dos sobressaltos desse final de 2008 e 2009. Espera-se, com isso, uma elevação anual do consumo de lácteos da ordem de 2,5%, que significa cerca de 12 a 15 bilhões de kg a mais por ano.
Se há mercado, deve haver produção, que será parcialmente preenchida com o fomento à produção local, como vêm fazendo China, Índia e Brasil, entre outros. Mesmo assim, é consenso que haverá espaço para o crescimento do mercado internacional, lembrando que nem todos os países têm condições (recursos naturais, como terra e água, infra-estrutura, ambiente regulatório, etc.) favoráveis para isso. Nesse ponto, surge a questão: que países mais se destacarão e que ganharão a principal fatia desse mercado?
Embora seja difícil ser conclusivo nesse momento, uma vez que não se sabe, por exemplo, quais os preços e custos vigentes no futuro, o que sem dúvida impacta a competitividade dos países, bem como as taxas cambiais de cada país, cada vez mais os analistas apontam o Brasil como um dos países com maior potencial de crescimento. Afinal, temos disponibilidade de terras, temos um ambiente regulatório favorável, temos água, temos suplementação alimentar a custos razoáveis, temos uma indústria que se moderniza e, por fim, temos baixa produtividade, que permite ampliação da produtividade e talvez da competitividade, coisa que países já estabelecidos, como a Nova Zelândia e os Estados Unidos, por exemplo, já não têm - pelo menos na mesma escala.
No entanto, quando se analisa custos de produção, fazendo sempre a ressalva de que, em um país com dimensões continentais e marcado pela heterogeneidade em relação à qualidade da matéria-prima, custos de oportunidade e outros fatores, a vantagem brasileira parece bem menos óbvia - países como a Argentina, Uruguai, Nova Zelândia e Austrália têm se mostrado mais competitivos nos últimos anos. Mesmo assim, a indústria láctea brasileira vem se capacitando para ocupar seu espaço no mercado internacional, com novas fábricas de leite em pó e uma visão clara de que, para dar vazão a esse potencial, será fundamental exportar cada vez mais.
Apesar desse movimento, pouco até agora se discutiu a respeito da competitividade do nosso leite, de nosso "modelo" competitivo de produção. Será o leite tecnificado, com alto uso de insumos e alta produtividade, explorado como um negócio? Quais os limites de custos que esse sistema pode atingir? Como esse sistema se inserirá em um ambiente em que, cada vez mais, os grãos destinados aos animais competirão com a alimentação humana e em que a questão dos dejetos ganha importância, refletindo as demandas crescentes de sustentabilidade ambiental?
Nesse sentido, estudo recente da FAO e da OCDE sugere que os preços dos grãos, em que pese terem caído recentemente, serão estruturalmente mais altos no futuro, o que em tese favorece sistemas de produção com menor uso de insumos externos. A lógica é que, com custos de suplementação mais elevados, quem conseguir produzir com pouca suplementação levará vantagem.
Há, sem dúvida, o outro lado da questão, mesmo na questão ambiental. Será que, apesar do uso intensivo de insumos, a elevada eficiência de produção fará com que a emissão de gases de efeito estufa por litro de leite seja mais baixa do que em sistemas extensivos ou com maior uso de pastagens? Ou, ainda, considerando a demanda crescente, há como abastecer o mundo de leite, década após década, utilizando predominantemente sistemas menos intensivos? Em caso negativo, a tendência é que os custos se elevem, forçando os preços para cima e tornando novos países competitivos, justamente como ocorreu em 2007.
Essa análise não passa apenas pelo tipo de sistema de produção, mas também pelo próprio significado econômico e social da atividade, isto é, pela relação do proprietário com sua atividade. Aqui, saímos do questionamento da sustentabilidade ambiental, para a econômica e social.
Ao se analisar o crescimento do leite no Brasil, nos últimos anos, percebe-se que regiões de fronteira agrícola, com custos de oportunidade mais baixos para a mão-de-obra e para a terra, bem como regiões com predominância da chamada agricultura familiar, foram as que mais se destacaram. Essa tendência não é só no Brasil: muitos dos países com produção crescente e competitiva, em especial a Índia e o Paquistão, vêm ganhando espaço em modelos que se caracterizam pela mão-de-obra familiar, módulos pequenos e uso restrito de insumos externos. Uma "fazenda" de 5 vacas na Índia pode ser mais competitiva do que uma de 5.000 vacas nos Estados Unidos. Nesses casos, a atividade não pode ser considerada empresarial, mas sim uma maneira de sobrevivência e viabilização de milhões de pessoas que, caso contrário, estariam em situação econômica muito pior (o IFCN da Alemanha estima que 10% da população mundial vivem ou dependem de leite).
É interessante constatar que essa característica não é só do leite. O próprio crescimento dos países emergentes (novamente, lembremos da China e da Índia) em grande parte se sustenta nos salários muito mais baixos do que os verificados nas economias desenvolvidas, muitas vezes implicando em condições de trabalho consideradas desumanas (aos olhos das economias desenvolvidas). Sem dúvida, é um terreno pantanoso: de um lado, a pressão pela responsabilidade social das empresas (às vezes um protecionismo disfarçado de boas intenções...), os direitos humanos; de outro, a aceitação de que a condição de vida destas pessoas provavelmente - e infelizmente - é melhor assim do que se não houvesse trabalho.
À medida que a renda cresce e que mais pessoas vão sendo incorporadas ao mercado de trabalho, tanto as condições de vida tendem a melhorar, como as diferenças tendem a diminuir (nesse ponto, vale lembrar o enorme "estoque" de capital humano da Índia, da China e de outros países, o que sugere que o processo demorará).
Voltemos ao leite, com o mesmo raciocínio. Até que ponto a competitividade desses sistemas familiares não reside na má remuneração dos fatores de produção, em especial a mão-de-obra, que hoje se justifica pela falta de alternativas melhores? Em outras palavras, considerando o crescimento econômico do país, será que na geração seguinte esse leite será sustentável economicamente? Ou, ainda, qual é o peso das políticas públicas nessa competitividade?
Não há dúvida que, hoje, a importância desse leite é inegável, tanto para o crescimento da produção como para a criação de alternativas econômicas para a população rural. Dentro dessa ótica, é louvável a aplicação de políticas públicas que auxiliem esse produtor a se adequar ao mercado e melhorar sua condição de vida. Nesse sentido, cabe também a discussão a respeito da sustentabilidade desse produtor, até porque políticas públicas podem mudar. Assim, é preciso que, na esteira desse processo, sempre se considere a sua competitividade futura, isto é, mais do que remediar, as políticas públicas devem preparar esse produtor para se viabilizar em um ambiente com menor grau de intervenção. Isso pode passar pela adoção de sistemas de produção mais competitivos (quais são?), pelo investimento em tecnologias acessíveis, pelo acesso à informação, pela capacitação rural, etc. A questão de fundo aqui é a mesma que norteou o início da discussão: se o Brasil vai ampliar sua participação no mercado internacional, será esse leite e esse modelo de exploração que sustentará esse crescimento? Será esse modelo sustentável do ponto de vista econômico?
São questões complicadas, até porque o ambiente futuro não é dado. Porém, considerando a vocação brasileira de elevar consistentemente sua produção e o inequívoco caminho em direção ao mercado internacional, é necessário enfrentar essas e outras questões. É necessário levantar informações, identificar os fatores reais de competitividade e agir a partir dessas constatações.
Essa discussão, delicada porque às vezes envolve posições mais ideológicas do que técnicas ou econômicas, pretendemos fazer no Interleite Sul 2009, em Chapecó, que será realizado entre 26 e 28 de março de 2009.