Um dos objetivos do MilkPoint, desde seu início em abril de 2000, é levantar pontos relevantes para a estruturação do setor e que não haviam sido abordados antes, ou pelo menos não de forma abrangente. Tendências que não estão ainda tão claras, ameaças e oportunidades futuras estão entre estes pontos.
A concepção de um desses possíveis pontos começou a se delinear no Interleite 2011, realizado em Uberlândia/MG. Certo dia, ou melhor, certa noite, estávamos alguns produtores do Brasil e quatro produtores norte-americanos em um bar, conversando sobre a atividade. Os norte-americanos, que juntos produziam algo em torno de 5 milhões de litros/dia (sim, o número é esse; se fossem um laticínio, seriam o terceiro do Brasil), começaram a considerar a hipótese de investir no Brasil, começando "pequeno", com umas mil vacas em lactação.
Falamos para eles que não era tão simples assim. Afinal, aqui não eram os Estados Unidos. Para eles, essa diferença era algo difícil de compreender. Porque o Brasil ainda não "tinha acontecido" no leite? E, para eles, acontecer era atrair grandes investidores, ter mega-fazendas com alta produtividade, eficiência e sustentabilidade, enfim estar preparados para suprir a demanda crescente, com qualidade e custos competitivos.
Fiquei com esse dilema para resolver. Porque, no espaço de 17 anos, entre o primeiro Interleite e o último, um produtor como Ron St. John cresceu quase 9 vezes (de 2 mil para 17 mil vacas), ao passo que grandes produtores brasileiros talvez tenham dobrado de tamanho no mesmo período, sem o mesmo dinamismo? O último levantamento do Top 100, que reúne os 100 maiores produtores de leite do país, indicou modesto aumento de 1,8% sobre a produção de 2009; no ano anterior, aumento ainda menor: 0,75%. O que acontece com nossa capacidade de expansão nesse tipo de propriedade, que deve vender o leite melhor e ter acesso a mais tecnologias, custos mais baixos de insumos e outras vantagens competitivas?
Ao mesmo tempo, pode-se argumentar - corretamente - que nossa produção cresce, e significativamente. Os dados do IBGE indicam crescimento de 4,43% de 2000 a 2010, um dos mais altos do mundo e acelerando-se em comparação à década anterior, quando o crescimento, já considerável, foi de 3,18%.
Ou seja, o Brasil tem acontecido sim no leite. E porque temos que seguir o modelo norte-americano ou qualquer outro de produção em larga escala, se nossa produção cresce de forma consistente, a ponto de atrair investimentos na área industrial e chamar a atenção de empresas que não estão ainda presentes em nosso mercado? Porque não podemos ter nosso crescimento baseado em centenas de milhares de pequenos produtores, como historicamente tem acontecido, sendo o leite sempre considerado a atividade mais relevante do ponto de vista social, quando se fala nas atividades agropecuárias?
É nesse ponto que a análise do cenário futuro pode destoar da análise do presente ou do passado. O Brasil mudou muito nesses últimos 15 anos e muito do que se fala e se discute no setor está ancorado em uma realidade que vai deixando de existir.
Não é apenas a produção de leite que cresce, mas também a economia brasileira (aliás, é interessante como o leite acompanha o crescimento do PIB), o emprego, a renda, as oportunidades. Nesse contexto, o aumento da renda nas camadas mais pobres da sociedade eleva o custo de oportunidade da mão-de-obra, com impacto em uma atividade intensiva em mão-de-obra como o leite (obviamente que esse mesmo trabalhador com renda mais elevada é quem garante o crescimento do mercado, como já havia proposto Henry Ford, há quase 100 anos). O problema é real e está sendo sentido pelas propriedades: recentemente, uma notícia sobre a falta de mão-de-obra teve grande repercussão no MilkPoint.
A mudança não se reflete apenas na questão da dificuldade de mão-de-obra, mas também da própria continuidade da atividade por parte da geração seguinte. Com apenas 6% de desemprego e com a multiplicação das opções de ensino, como faculdades regionais que abrem novas perspectivas, muitos filhos de produtores de leite não continuarão na atividade, sem que isso signifique que engordarão as filas de desempregados nas cidades (ou seja, aquela associação histórica de êxodo rural com pobreza talvez não caiba nessa nova realidade, pelo menos da forma como se concebia).
Nesse sentido, para permanecerem na atividade é importante que aumentem a produção e a produtividade, afinal 20 vacas não são mais suficientes para compensar o custo de oportunidade do trabalho. Esse produtor precisará investir - e aqui entra mais um fator que força nessa direção: o custo de oportunidade da terra, à medida que a abertura de novas áreas torna-se mais difícil e que a competição da produção de alimentos com madeira, combustível e outras finalidades se intensifica, elevando o preço da terra e, assim, estimulando por essa via também o aumento da produtividade.
Essa transformação já está acontecendo e representa uma prova para o crescimento do setor leiteiro em uma realidade distinta daquela verificada em décadas passadas, quando o leite crescia, porém muito mais associado à única opção para pequenos produtores familiares, do que como opção eleita entre várias alternativas disponíveis. Quer um exemplo dessa transformação? A repercussão de projetos como o Balde Cheio é um deles, ao permitir que sejam dadas condições e estímulo para que estes pequenos produtores permaneçam na atividade e possam competir com outras alternativas mesmo em áreas de terra mais cara e oportunidades de trabalho.
E os dados oficiais confirmam as mudanças pelas quais estamos passando. Paulo Martins escreveu recentemente o artigo Quem desiste de produzir leite?, que já é um dos artigos mais comentados do MilkPoint, com mais de 100 postagens.
Analisando os dados do Censo 95/96 e 2006/07, ele mostra que a faixa dos produtores de menos de 50 litros/dia encolheu de 1,5 milhão para 1,0 milhão, isto é, cerca de 500 mil pequenos produtores ou deixaram a atividade ou mudaram de faixa, passando a produzir mais de 50 litros/dia.
Sem dúvida, há o problema social dos que deixaram a atividade, principalmente se o nível de escolaridade for baixo e a faixa etária mais avançada, cabendo à sociedade e ao governo lidarem com a questão, que é relevante. Mas não tende a ser um problema de produção.
O que chama a atenção nesses dados é que a proporção do leite produzido pelos produtores acima de 200 litros, isto é, os "grandes", encolheu: representavam 28% da produção em 1995/96 e passaram a representar 20,1% em 2006/07. De 34 mil produtores, passaram a ser 14 mil. Sua contribuição em volume pouco se alterou no período.
É nesse ponto que argumento o desafio que temos. Considerando que o pequeno (esse de menos de 50 litros, para usar as faixas do IBGE) não representará a base do crescimento da produção, pois a geração seguinte terá outras maneiras mais interessantes de ganhar a vida, e que o grupo dos grandes perde participação, como o leite continuará crescendo a taxas de 3-4% ao ano, para fazer frente à demanda que certamente continuará elevada?
Analisando novamente os dados apresentados por Paulo Martins, fica evidente que a resposta neste período esteve na faixa intermediária, de 50 a 200 litros, que passou de 10,5% dos produtores para 18,6%; de 35,9% da produção para 53,2%. Porém, os dados do Censo não captaram a brutal elevação nos preços dos alimentos ocorrida a partir de 2007, quando a agricultura voltou a fazer parte da agenda prioritária dos governos. Como esse produtor responderá a essa nova realidade, em que cana-de-açúcar, madeira, outras atividades e mesmo o emprego urbano ganham força? Estes produtores conseguirão fazer a transição para a etapa seguinte?
Nesse novo contexto, um dos caminhos para mantermos o crescimento, a meu ver, está justamente no que chamamos de ambiente de investimentos na atividade. Que estruturas sociais existem e que estimulam ou afastam os investimentos? Esse é um tema que ganhará importância crescente não só no Brasil, mas em diversos outros países. Em um mundo de oportunidades, não bastam as condições naturais para produção, mas sim todo um contexto de fatores que precisam existir para que o investidor (produtor) decida pelo investimento no leite.
Estamos aqui falando da existência de ferramentas de gestão de risco (ex: mercados futuros e contratos de longo prazo, indexados de forma transparente); regras do jogo claras e consistentes (o que, afinal, será da IN 51?); disponibilidade de capital a custos competitivos; seguro rural; disponibilidade de matrizes em quantidade e qualidade; assistência técnica; custos para automação; serviços de qualidade, etc.
Assim com a concepção desse raciocínio começou no Interleite, continuará no Interleite. Tanto em Chapecó (3 a 5 de abril), como em Uberlândia (11 a 13 de setembro), trataremos dessa questão em profundidade, pois acreditamos que dela dependerá o sucesso futuro da atividade.