Claro que Fábio não se referiu ao forte crescimento da atividade leiteira nos últimos 15 anos, capaz de reduzir nossa dependência em relação ao leite importado mesmo diante de uma expansão significativa do consumo. Sob essa ótica, o leite deu e vem dando muito certo. Ao fazer esta pergunta, ele tinha em mente os índices de produtividade relativos muito inferiores aos de outras atividades nas quais o Brasil tem destaque; a presença pífia no mercado internacional, como exportador; os problemas recorrentes de qualidade, que retratam a falta de coordenação da cadeia. Enfim, ele se referiu não às linhas, mas sim às entrelinhas; ao contexto por trás dos números que, em uma análise fria, podem nos contar uma história de meias verdades.
O questionamento do sempre direto e brilhante professor da Universidade do Missouri (EUA) e do Insper, feito já no final de um dia exaustivo, me pegou desprevenido. Acabei dando uma resposta padrão, que não me satisfez.
Voltando para Piracicaba, na Rodovia dos Bandeirantes, me peguei a pensar no tema e, apesar de reconhecer que o fato de não termos o mesmo desempenho de outras cadeias do agronegócio no que se refere à eficiência, deve-se a uma multitude de fatores, identifiquei uma razão mais simples, a qual exploro nesse artigo: o leite ainda não deu certo - sob a ótica do Fábio e considerando mais aspectos do que o crescimento puro e simples dos últimos 15 anos - porque não precisou dar certo.
Por que não precisou dar certo?
Comecemos com a própria característica da atividade. O leite sempre foi uma atividade que aguentou desaforos técnicos e econômicos. Tentasse qualquer um produzir soja com os mesmos índices de eficiência proporcional que vemos no leite. Ou cana, ou algodão, ou frango. O que ocorreria? Sequer seriam cobertos os custos operacionais e a quebra seria líquida e certa. Já o leite sempre permitiu a exploração em um nível sub-ótimo de produtividade, com custos de oportunidade muito baixos (e, não raro, não cobertos pelos preços).
Entre os custos de oportunidade, estão o da terra, do capital e do trabalho familiar. Tinha-se, assim, uma situação em que, na prática, “sobrava” algum dinheiro, mas em uma situação próxima a da subsistência, sem cobrir os (baixos) custos de oportunidade.
Com efeito, são vários os diagnósticos feitos desde há muitas décadas que mostram uma situação paradoxal: analisando-se economicamente, o produtor médio brasileiro tinha prejuízo. Porém, a produção ainda assim crescia. A explicação é que o preço remunerava os desembolsos, mas não mais do que isso. Esta foi uma realidade que, grosso modo, ocorreu entre 1970 e 2000.
Essa situação foi possível pela própria característica da atividade: permite, como colocamos acima, a exploração em níveis sub-ótimos de eficiência e tem viabilidade de curto prazo (isto é, sem remunerar todos os fatores de produção) em pequenas áreas, exploradas por produtores familiares, que nem sempre (ou quase nunca) tratam sua atividade como um empreendimento, isto é, não fazem as contas como um empresário ou um investidor fariam. Soma-se a isso o fato do leite ser passível de exploração em áreas marginais, como as que possuem topografia desfavorável.
O resultado desse contexto que vigorou durante décadas é que o leite ficou à margem do processo pelo qual passaram várias cadeias do agronegócio. Tornou-se uma atividade importante social e economicamente, mas sem os índices de eficiência de outros segmentos, caracterizada em grande parte por áreas de baixo potencial agrícola. Vale aqui lembrar a definição do pitoresco escritor e produtor de leite Eduardo Almeida Reis, sobre o que seria uma bacia leiteira: “é uma região que não se presta para nenhuma outra forma de exploração agropecuária” (em As Vacas Leiteiras e os Animais que as Possuem, 1981). Em outras palavras, o leite seria a atividade que, na definição do escritor, feita no início da década de 80, era escolhida quando nada mais poderia ser explorado. Exageros e ironias à parte, era mais ou menos isso que ocorria mesmo.
Em função disso, a indústria pôde historicamente remunerar esse produtor a um valor que não cobria os custos totais de produção, resultando no desestímulo a quem seguisse o caminho inverso, isto é, aqueles que aplicavam a tecnologia para aumentar a eficiência. Em outras palavras, como os preços de mercado eram suficientes para cobrir quando muito apenas os custos de operação, sem considerar a correta valorização da mão de obra familiar, bem como outros custos de oportunidade, quem investia, perdia. Na época em que eu era consultor de fazendas (anos 90), a sensação era de que os bons produtores deixavam a atividade. Era uma seleção ao contrário.
Do lado do consumo, também tivemos um cenário que não estimulou a melhoria da qualidade. De um lado, a cadeia do leite nunca precisou vender para mercados internacionais mais exigentes, como ocorreu com outras cadeias. A rigor, somos ainda deficitários na produção de leite, com uma cadeia bastante fechada ao comércio exterior. De outro, saímos recentemente de uma situação em que o objetivo era inserir novos consumidores no processo e não tanto explorar a agregação de valor e a qualidade.
Em resumo, tínhamos pouco incentivo para a melhoria da qualidade do produto – o que não estimulava ações de fidelização e desenvolvimento de fornecedores por parte da indústria – e pouco incentivo para o investimento no aumento de eficiência.
Essa situação perdurou por décadas, até o início deste milênio e contribuiu para que não houvesse razão para que a cadeia se organizasse e buscasse a eficiência necessária. Ainda hoje, muitos laticínios não dispensariam um leite barato (desde que com padrões mínimos de qualidade, espera-se) mesmo que não remunerasse todos os custos de produção.
Esse cenário, no entanto, vem mudando a partir do ano 2000. O que ocorreu desde então?
O primeiro aspecto é que esse produtor que sempre caracterizou o leite brasileiro em número e volume de produção, muito provavelmente representa hoje menos do total de leite do que representava há, digamos, 30 anos. É lamentável que não tenhamos números atualizados do Censo Agropecuário, feito pela última vez há mais de 10 anos, sendo necessário recorrer a levantamentos pontuais e não conclusivos (veja aqui o trabalho que fizemos com a Leite Brasil em 2013).
Um dos principais motivos para essa mudança no perfil do produtor de leite é que, a partir do ano 2000, os custos de oportunidade do trabalho passaram a ser mais altos. Com a possibilidade de ganhar mais em outras atividades, inclusive urbanas, muitos produtores (e especialmente seus filhos) deixaram o leite - por um motivo justo, diga-se de passagem: confrontados com a alternativa de produzir de forma a mal remunerar o seu trabalho, a alternativa de muitos foi sair da atividade e surfar na onda do aumento das vagas de emprego e do salário mínimo. Com isso, esse leite “barato” passou a ficar menos disponível, de forma que, gradativamente, o equilíbrio de preços atingiu um patamar distinto do que era. Aquele produtor que não tinha alternativa, passou a tê-la e, indiretamente, cobrar por ela. Não dava mais para depender tanto de um leite sub-remunerado.
O mesmo processo ocorreu para o valor da terra. Produtores que produziam de forma extensiva, com baixa produtividade e consequentemente baixo faturamento por área, se viram obrigados a mudar de atividade, arrendar ou vender a propriedade, caso contrário não justificaria ter tanto capital empatado para obter rendimento pífio, ainda mais em um país com juros elevados. Isso ocorreu com muito vigor em São Paulo, por exemplo, que desde 1990 vem perdendo produção.
Do lado do consumo, passado o período em que o grande direcionador da indústria era a incorporação de novos consumidores, hoje nota-se a busca pela premiunização e agregação de valor, sem contar os esforços que estão sendo retomados para reavivar as exportações. Todos esses direcionadores passam pela melhoria da qualidade e pelo melhor controle dos processos de originação da matéria-prima.
Esse novo cenário que se descortinou nos últimos 15 anos vem contribuindo para que os preços do leite aumentem em valor real, isto é, quando comparados à inflação (gráfico 1). Sem dúvida, há momentos de queda de preços e mesmo perda de valor em relação aos ajustes de preços da economia como um todo, como ocorreu em 2015, mas o que estamos analisando aqui é o contexto mais amplo.
Com o aumento dos custos de oportunidade e a busca (ainda que não generalizada) pela melhoria da qualidade, tem havido elevação dos preços ao produtor e, com ela, uma nova dinâmica, em que investir em eficiência passa a ser uma estratégia vencedora, ao contrário do que ocorria antes do ano 2000.
Essa nova realidade, que evidentemente ainda está mesclada com tintas do passado, gera oportunidades para que a cadeia se organize, inicialmente em torno das empresas e seus fornecedores e, mais para frente, ao no sentido de criar uma visão própria de futuro para o setor. Mas há ainda muito caminho a percorrer.
Meu caro Fábio Chaddad, espero ter respondido a contento sua provocação, mostrando que o leite não se organizou porque até o início do milênio não havia precisado, seja pela ausência de demanda do mercado, seja por suas próprias características como atividade, que permitiam que permanecesse com baixos níveis de eficiência e, ainda assim, sobrevivendo.
A mesma linha de raciocínio que me permitiu concluir quais foram as razões pelo atraso no desenvolvimento da atividade leiteira no Brasil sugere que estamos assistindo a uma (talvez ainda lenta) reversão do processo.
Arrisco-me a dizer que, no espaço de 10 anos, o leite será a atividade do agronegócio que sofrerá o maior impacto no que se refere à incorporação de tecnologia e produtividade, intensificando, como contrapartida, as consequências decorrentes desse processo, como a forte redução no número de produtores.
Gráfico 1 – Evolução dos preços reais do leite* – Jan/2004 a Ago/2016.
Em tempo: para quem quiser comprar o livro do Fábio Chaddad, segue o link (por enquanto só disponível em inglês, já que foi lançado nos EUA).
https://www.amazon.com/Economics-Organization-Brazilian-Agriculture-Productivity/dp/0128016957