O setor de alimentação não foge dessa nova conjuntura que afeta a forma como negócios são criados e desfeitos. Será que a indústria de lácteos está preparada para enfrentar essa realidade? Para alimentar essa questão, vou relatar um pouco do que vi recentemente em dois eventos na Inglaterra, um deles sobre o Futuro da Indústria de Queijos do Reino Unido, que me permitiram avaliar não só o que está havendo por lá nesse sentido, mas também como o setor vem reagindo.
Há algum tempo, o governo britânico proibiu a propaganda de queijos em horário infantil, nas televisões. O motivo? Reduzir o consumo de alimentos com alto teor de sódio e gordura saturada, visando diminuir indiretamente os níveis de obesidade e problemas cardíacos. Na realidade, não foi bem isso: não foi a propaganda de queijos que foi barrada, mas sim de alimentos que supostamente contribuem para os problemas acima por terem teores considerados altos (também foram restringidos os alimentos com determinados níveis de gordura trans e açúcar).
Mas isso de fato afeta o mercado? Cerca de 78% dos participantes do evento (todos ligados à indústria de queijos) consideraram que essa medida teve impacto muito negativo nas vendas do setor, 52% consideram que o governo é claramente "anti-queijo" e 61% acham que se o governo pudesse fazer apenas uma coisa para o setor, seria oferecer mensagens mais positivas sobre o consumo de queijos à população. Fica claro, enfim, que há a percepção de impacto no consumo por parte do setor.
Barrar a propaganda desestimula o desenvolvimento de novos produtos em áreas que podem ser promissoras. O queijo para crianças, em embalagens individuais e atrativas, produzido pela empresa francesa Bel (veja abaixo a foto), por exemplo, não poderia ser anunciado.
O papel determinante do governo aparece em outras frentes também, como o sistema de "luzes de tráfego", utilizado para classificar alimentos processados em relação aos teores nutricionais: vermelho, teores elevados (e, portanto, cuidado); amarelo, teores moderados e verde, teores inofensivos (veja as figuras abaixo). Uma pesquisa feita com consumidores e apresentada pelo diretor geral da empresa Lactalis no Reino Unido, procurou responder à pergunta feitas para consumidores: "O que você acha que a luz vermelha significa". Para 16%, a luz vermelha indica que o alimento faz mal para a saúde e não deve ser consumido; para 43%, indica que deve-se prestar atenção com qual freqüência o alimento é consumido e para 39%, deve-se reduzir a quantidade consumida. Mais de 50% dos consumidores, portanto, têm uma percepção claramente prejudicial ao ver um alimento classificado com a cor vermelha para algum nutriente.
Outro exemplo recente veio dos Estados Unidos. Na semana passada, o influente jornal The New York Times, informou que o Federal Trade Comission determinou a suspensão das campanhas que relacionam o consumo de lácteos ao emagrecimento, argumentando que não há evidência científica suficiente para corroborar tal afirmação. Essa medida foi uma solicitação de um grupo vegetariano radical, mas encontrou eco em organismos de defesa do consumidor e no próprio governo americano, que inclusive elevou as recomendações de ingestão de lácteos no seu último Nutrition Guidelines, de 2005.
O que podemos concluir desses exemplos é que há a necessidade de um posicionamento mais ativo e mais profissional nessas questões, por parte do setor lácteo, uma vez que as atenções e as restrições tendem a ser aumentadas.
A essa altura, o leitor pode estar se lembrando das recentes discussões em torno da Consulta Pública nº 71 formulada pela Anvisa (clique aqui para ler o artigo) e fazer uma busca no MilkPoint com o número 11.265 - que trata da lei que impunha o "Ministério da Saúde adverte", para mostrar que por aqui a interferência governamental nessas mesmíssimas questões também se faz presente. Ou seja, trata-se de um movimento que, se não é global, está longe de ser algo apenas local, o que nos abre ao menos a possibilidade de aprender com quem está lidando com isso há mais tempo.
Como, então, reagir frente a esse cenário? A Dairy UK, entidade que reúne a cadeia de lácteos do Reino Unido, está agindo em várias frentes. A primeira delas é argumentar que é preciso ter exceções à regra; afinal, os alimentos têm valor nutricional distintos e também são potencialmente causadores de problemas em graus distintos, dependendo de hábitos que vão além do consumo do alimento. Por exemplo, é possível que o consumo de fast food seja mais prevalente em pessoas sedentárias, o que potencializaria os problemas associados ao consumo de batatas fritas comercializadas como acompanhamento de sanduíches, por exemplo.
A segunda frente de batalha, uma extensão desse raciocínio, é defender uma postura mais holística, ou seja, não se trata de não consumir este ou aquele alimento, mas sim de ter uma dieta saudável como um todo e, mais do que isso, uma vida saudável, o que permite o consumo dos mais variados alimentos desde que em proporções adequadas e acompanhados de práticas como exercícios. Isso implica em recomendar determinado número de porções de lácteos por dia, orientar os consumidores em relação a como obter uma dieta saudável e a como viver de maneira melhor, de forma a minimizar o risco dos problemas de saúde.
A postura da Dairy UK é correta, mas a tarefa não é fácil: do ponto de vista do governo, pode ser mais simples reduzir os problemas através da proposição de uma única regra, ainda que gere prejuízos injustos para setores inteiros. É justamente no meio dessa batalha que se encontra a indústria de queijos do Reino Unido.
Para obter sucesso nessas frentes, além da atuação junto a parlamentares, está o alinhamento com entidades médicas e de nutrição que, muitas vezes, se mostram relutantes em bater de frente com a agência nacional de saúde. Trata-se, enfim, de uma ação abrangente, de longo prazo e que envolve esforços interdisciplinares. Apesar de todo esse contexto aparentemente desafiador, é interessante notar que para cerca de metade dos participantes, o setor queijeiro do Reino Unido apresenta mais oportunidades do que desafios, nos remetendo à batida metáfora do "copo meio cheio, meio vazio".
Por fim, ficam a constatação - espera-se cada vez mais a interferência dos governos em áreas como a nutrição e a saúde da população, e o exemplo - é preciso se organizar, se possível nacional e internacionalmente, reunir informações científicas de credibilidade e propor soluções alinhadas aos objetivos do governo, orientando o consumidor, com transparência, a ter uma dieta mais saudável e melhor qualidade de vida.
O setor lácteo tem a oportunidade de se antecipar e se posicionar nessa questão, o que pode ser feito como parte integrante do esforços de marketing setorial - ou optar pelo considerável desafio de crescer assistindo a consolidação do cenário descrito acima, em que a pressão de grupos de interesse, muitas vezes amplificados pela mídia, aliada à atuação do governo, poderá dificultar significativamente os planos de incremento do consumo de lácteos.