Estive recentemente em Campinorte, norte de Goiás, para dar uma palestra sobre perspectivas de mercado. No caminho, conversando com o presidente da Centroleite, Haroldo Max de Souza, discutíamos com preocupação o que vem ocorrendo com a produção de leite goiana.
O estado havia sido o grande destaque da década de 90, com crescimento anual que chegou em dado momento a atingir mais de 35%, segundo o IBGE. Eventos com mais de mil produtores eram corriqueiros, ancorados em uma forte organização de produtores através da Federação da Agricultura que, em última análise, projetou lideranças inclusive politicamente. O estado foi o berço da Centroleite, que de forma inovadora passou a reunir grande quantidade de leite para comercialização conjunta, obtendo como resultado uma equalização dos preços com Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, os redutos mais tradicionais. Já nessa década, o setor obteve redução de ICMS, parcialmente revertido para uma bem sucedida campanha de marketing, inédita nos demais estados.
Apesar de tudo isso, o leite em Goiás não manteve o ritmo. Pelo contrário, vem sendo ultrapassado em crescimento por outros estados que, embora tenham largado atrás, vem obtendo taxas de crescimento superiores. A figura 1 mostra o crescimento acumulado de alguns dos principais estados produtores de leite e do próprio Brasil, até 2009, último dado disponibilizado pelo IBGE. Nota-se claramente a forte arrancada de Goiás na década passada e a perda gradativa de força, a ponto de, em 2009, a dianteira acumulada anteriormente ter sido consumida. Nesta década, o crescimento relativo de Goiás foi ultrapassado pelo de SC e do PR (obs: não se trata de produção absoluta, mas sim relativa, considerando a produção de cada um em 1990 como sendo equivalente a 100).
Figura 1. Produção relativa de cada estado e do Brasil a partir de 1990, considerando a produção de 1990 equivalente a 100 (Fonte: IBGE)
A figura 2 retrata dois momentos distintos do leite goiano e embasa ainda melhor o argumento deste texto. De 1990 a 2000 foi o estado que apresentou as maiores taxas anuais médias de crescimento entre os principais estados, com quase 8%. Já no segundo período a taxa caiu para 3,6% ao ano, sendo o único estado que apresentou queda na taxa de crescimento nesse segundo período. Em outras palavras, enquanto o Brasil e os principais estados pisaram no acelerador, Goiás fez o contrário, perdendo o segundo e terceiro postos no ranking nacional, para RS e PR, respectivamente.
Figura 2. Taxas de crescimento na produção de leite nos principais estados e no Brasil, em dois períodos (Fonte: IBGE)
E tudo indica que os resultados de 2010 e desse início de 2011 foram ainda piores. De acordo com o Cepea/USP, a retração de Goiás de 2009 para 2010 foi de 9,1%, período este em que os demais estados cresceram: MG, 4,1%; SP, 5,0 %; RS, 5,9%.
No início de 2011, queda ainda maior: enquanto de janeiro a abril o país teria tido retração de 0,6%, Goiás teria despencado: 13%. Se os números do Cepea forem confirmados pelo IBGE, Goiás produzirá neste ano 2,398 bilhão de litros, a mesma produção de 10 anos atrás. Para se ter uma ideia da perda de participação do estado, nesse mesmo período o Brasil terá produzido 10 bilhões de litros a mais - e nenhum deles em Goiás. A preocupação de Max, portanto, se justifica.
O que estaria afinal acontecendo com o leite goiano?
Há provavelmente várias causas que explicam a situação atual, a começar pela restrição dos FCOs vigentes na década retrasada (e posterior endividamento de produtores) e que certamente contribuiram para uma expansão talvez exagerada, não embasada na realidade. Mas há outros fatores que podem ser analisados.
Em 9/10/2009, escrevi o editorial "Diagnóstico do leite em Goiás: a realidade continua a mesma".
O trabalho coordenado pelo Prof. Sebastião Teixeira Gomes e viabilizado pela FAEG mostra que, na ocasião (julho de 2008 a junho de 2009), 68,4% dos produtores produziam menos de 200 litros/dia. Na média, o goiano produzia 245 kg/dia, com capital investido de R$ 786.000, sendo 75% em terra - uma exploração extensiva e certamente ineficiente.
Reproduzindo o texto do artigo, concluí à época que "o nível tecnológico é, em geral, baixo. Pouco mais de 30% fazem controle leiteiro; 69,3% não utilizam caneca de fundo telado para diagnóstico de mastite; 20% ainda não resfriam o leite; dos que resfriam, 60% o fazem em tanques coletivos. Mais de 40% dos reprodutores são zebuínos puros."
Ainda: "a maior parte dos produtores não cobre os custos totais de produção e, quando cobrem, a margem é pequena e bastante inferior ao rendimento obtido pela poupança (apenas produtores acima de 500 litros/dia têm lucro). Em geral, são cobertos apenas os custos operacionais efetivos, isto é, o desembolso de caixa, sem contabilizar a mão-de-obra familiar e a depreciação. Isso quer dizer que i) o produtor se sujeita a trabalhar por um valor menor do que o custo de oportunidade de seu trabalho, e ii) no longo prazo, será forçado a deixar a atividade por não cobrir os custos totais de produção."
Em resumo, o diagnóstico de 2009 já deixava claro que a situação em Goiás não seria sustentável, e que a queda na produção poderia ser questão de tempo, caso nada fosse feito.
Há, no entanto, 3 aspectos que podem ter catalisado essa situação. O primeiro, já retratado em outro editorial e em artigo escrito recentemente pelo mesmo Prof. Sebastião Texeira Gomes, refere-se à melhoria da qualidade de vida da população mais carente, fruto das políticas de inclusão e do aumento do salário mínimo, que cresceu muito mais do que o preço do leite nas últimas 2 décadas. O resultado é que o custo de oportunidade da mão-de-obra se elevou, de forma a não justificar economicamente a existência de um produtor de pequeno porte que seja ineficiente: seus filhos não permanecerão na atividade e, mesmo ele tende a ter outras opções de renda. Contrapondo esse cenário com a realidade goiana retratada no trabalho da FAEG, fica evidente que o produtor médio do estado não estaria preparado para sustentar o crescimento da produção de leite necessária para manter Goiás em posição de destaque, em um cenário de mais desenvolvimento econômico e social.
O segundo fator, que está relacionado tanto ao custo de oportunidade da mão-de-obra quanto da terra, é a expansão de atividades como a cana-de-açúcar. A figura 3 mostra os dados até 2007, segundo o IBGE. A produção mais do que dobrou entre 96/97 (ano de forte crescimento do leite) e 2005/06. Em área de cultivo, entre 1992 e 2007, o crescimento foi de 232%.
Figura 3. Produção de cana-de-açucar em Goiás (Obtido de Castro et al, 2010)
Sabe-se que a questão logística, isto é, a proximidade das áreas de cultivo com a área de processamento, é crítica para viabilizar economicamente o empreendimento industrial. Quando se instala em uma região, uma nova usina tende a fomentar a produção de forma intensa em um raio próximo da unidade, oferecendo inclusive uma gama de serviços e novas formas contratuais que seduzem o agricultor, principalmente quando seus resultados não são particularmente bons, como pode-se depreender da análise do produtor médio de leite de Goiás.
As figuras 4 e 5 mostram que, no caso do leite, esse efeito pode ter sido relevante, ainda que não tenhamos os dados diretos para aferir a hipótese. A figura 4 mostra as usinas existentes em Goiás, em 2007. Já a figura 5 mostra a concentração da produção de leite no estado.
Figura 4. Usinas de cana em análise, implantação, operação e projeto aprovado em Goias, em 2007 (Fonte: Agência Ambiental de Goiás, adaptado de Castro et al., 2007)
Figura 5. Concentração da produção de leite no Brasil em 2009 (https://www.cileite.com.br/panorama/especial30.html, Cicarini, Nolan e Zoccal)
Fica evidente que há coincidência espacial entre a localização das usinas e a concentração do leite - ambas no Sul Goiano. Essa crescente competição com uma atividade que necessita de grande volume próximo à fábrica, aliado à caracterização de um produtor de leite que mal se sustenta, como o trabalho do Prof. Sebastião indicou, levará, mais cedo ou mais tarde, à conversão de áreas até então utilizadas para o leite, para a produção de cana.
O terceiro aspecto que potencialmente catalisou esta perda de produção em Goiás é a escalada de custos em comparação aos preços, desde janeiro de 2008.
A figura 6 mostra a evolução dos preços e custos de produção de leite em alguns estados (no caso, custo operacional efetivo), tomando como base o valor 100 de janeiro de 2008 para ambos os parâmetros. O gráfico mostra os valores dos últimos 12 meses.
Percebe-se que, nos estados do Sul do país, o valor do leite subiu mais do que os custos operacionais, sempre lembrando que a base de comparação é janeiro de 2008. Isso quer dizer que a situação do produtor de leite melhorou nesses 3 anos, mesmo considerando os altos e baixos da atividade e o fato de que janeiro de 2008 foi um mês de preços de leite bastante elevados. Possivelmente, esse resultado é fruto de uma equiparação (ou quase isso) dos preços dos estados do Sul do país em relação aos estados do Sudeste e Goiás, o que melhorou a situação dos produtores e deve ter sido um dos fatores que estimulou o aumento da oferta, ao lado dos fortes investimentos em novas plantas.
Já Minas Gerais e, principalmente, Goiás, apresentaram situação inversa. Os custos subiram mais do que os preços, de forma que a rentabilidade do produtor, mantida a mesma produtividade, foi pior. Esse aspecto, somado aos fatores anteriormente discutidos, fecha o quadro da estagnação e queda da produção em Goiás: endividamento, ineficiência, deterioração da margem de lucro, que já era preocupante, e concorrência com outras atividades.
Esse processo em curso em Goiás não é novidade nem no Brasil, nem fora dele. O tradicional meio-oeste norte-americano perdeu espaço para os grandes produtores do Oeste, até que novos produtores, ou projetos totalmente renovados, alcançaram eficiência e rentabilidade nestas mesmas regiões tradicionais. No Brasil, o estado de São Paulo viu o encolhimento de sua produção de leite à medida que nele atuaram os mesmos fatores que atuam agora em Goiás.
Será Goiás um novo São Paulo? Cedo para dizer, mas parece claro que se algo não for feito pelas partes interessadas - leia-se laticínios, cooperativas, organização de produtores, não há argumento que sustente no curto prazo a recuperação da produção goiana, ao menos nos níveis anteriores.
Ao mesmo tempo em que esse quadro se configura, temos a notícia de que a Fonterra, maior laticínio do mundo em captação de leite e dotada de uma das mais eficientes estruturas de captação de leite do mundo, se não a mais eficiente, anunciou a compra de terras para iniciar uma fazenda-modelo justamente em..Goiás!
Estará a Fonterra equivocada, errando de forma tão clara de lugar? É evidente que o estado de Goiás tem potencial para retomar sua trajetória. Tem área disponível, água, boa topografia, grãos e insumos.; tem localização estratégica, no centro do país, equidistante de vários mercado importantes. O que é necessário é repensar as formas de se produzir leite por lá, formas que, até então, estiveram na origem do crescimento verificado nos últimos 20 anos, mas que, em uma nova realidade, não mais se justificam.
Figura 6. Evolução do custo operacional efetivo (COE) e preço do leite em alguns estados (Fonte: Boletim do Leite, número 197, Cepea/USP)
Obs: Colaborou Aline Ferro, do Cepea/USP