O setor leiteiro brasileiro tem alguns lugares-comuns: temos enorme potencial de elevar a produção e o consumo, somos um dos únicos países com condição de abastecer o mundo que precisará cada vez mais de leite, nossa produtividade é baixa e pode aumentar muito, e assim por diante. Porém, muitas vezes a impressão é de que essas possibilidades estão ainda distantes da realidade do dia-a-dia.
Não resta dúvida que a produção cresce - basta olhar os números. Mesmo em 2009, contra muitas expectativas, a produção inspecionada conseguiu crescer 1,6% - o PIB brasileiro apresentou retração de 0,2% no período. Também, não resta dúvida que o potencial de aumento continua existindo e que passamos por mudanças significativas em relação a importações e exportações nos últimos anos. O setor, de fato, vem mostrando dinamismo.
Mas falta bastante ainda, se o objetivo for fazer virar realidade os cenários mais favoráveis apontados pelo trabalho Cenários para o Leite no Brasil em 2020. No cenário mais provável, a produção em 2020 será de 40,25 bilhões de litros anuais, o consumo per capita de 167 kg/pessoa/ano e as exportações atingirão quase 5 bilhões de litros anuais, representando 12% da produção total.
No âmbito das exportações, o câmbio desfavorável exige que trabalhemos de forma mais eficiente para garantir competitividade. Enquanto preços de US$ 3.500 a US$ 4.000/tonelada parecem ser suficientes para países como Argentina, Uruguai, Nova Zelândia e Austrália, são ainda insuficientes para nos colocar de forma definitiva no jogo. O problema é que, conosco, entram também os Estados Unidos, e a possibilidade de rapidamente inundar o ainda modesto mercado externo é em muito aumentada. Há quem considere que preços acima de US$ 4.000 são na verdade desinteressantes para vários dos exportadores atuais: reduzem o consumo, melhoram a competitividade de substitutos (proteínas e gorduras vegetais) e atraem concorrentes até então não competitivos (Brasil inclusive).
A verdade é que o mercado externo tem sido uma incógnita, principalmente após os picos de 2007 e 2008, que ninguém previu, seguido de forte queda, que quase ninguém previu (leia aqui os artigos de Wagner Beskow sobre o tema). Com isso, as estratégias empresariais muito focadas nas exportações tiveram de ser revistas - hoje, todos apontam para o mercado interno como garantia de crescimento.
Para melhorar a nossa competitividade, temos de ter um custo de produção de sólidos mais baixo e, para isso, ter um domínio mais amplo dos processos produtivos. Há alguns avanços nesse sentido, alguns números começam a aparecer, mas ainda de forma tímida e não definitiva - basta ver a interminável discussão no MilkPoint em torno dos sistemas de produção. Será que na produção de aves ou suínos o estágio também é esse?
Muitas vezes o discurso está longe da prática. Em relação ao teor de sólidos, o presidente da DPA disse em fórum realizado no Congresso da Fepale que, ao invés de aumentar, o teor de sólidos do leite brasileiro está caindo. É um contra-senso: buscamos as exportações, mas temos um produto menos competitivo hoje do que antes, pelo menos em relação ao teor de sólidos (não é tão simples assim: o que interessa é o custo por sólidos, não necessariamente o teor de sólidos do leite, mas para efeito de simplificação, consideremos que as duas variáveis estão relacionadas).
Pode parecer contra-senso, mas não é surpresa. Afinal, poucas empresas pagam por sólidos e mesmo por qualidade em geral. Qualidade, aliás, talvez tenha sido o tema mais discutido nos últimos 15 anos e é surpreendente que, a despeito disso, quando se analisam os números disponíveis, não há avanço exceto naquelas empresas que aplicam um sistema de pagamento por qualidade. Os dados laboratoriais mostram que, de forma agregada, não tem havido evolução.
No que se refere à eficiência produtiva, há outra lacuna considerável entre o que falamos e desejamos e o que ocorre de fato. Certamente, nossa produtividade pode aumentar consideravelmente sob qualquer parâmetro, mas os dados disponíveis mostram avanço lento. Por que? Será que ainda não há pressão suficiente para que a produtividade aumente, quer dizer, a baixa produtividade atual é suficiente para viabilizar a atividade? Ou, ainda, não há uma relação tão clara entre rentabilidade e produtividade? (obs: no Interleite 2010, de 19 a 21 de agosto, teremos uma discussão inédita a respeito de dados sobre esses parâmetros em Minas Gerais).
Outro exemplo de discurso distante da prática está no marketing institucional. Dez entre dez pessoas consideram a ação necessária, não no sentido restrito de propaganda, mas de defesa do setor, de relacionamento com formadores de opinião, de representação. Porém, apesar da Láctea Brasil ter mais de 10 anos e da concordância a respeito da importância dessa pauta, não tem havido força suficiente para colocá-la em prática. As questões do dia-a-dia se sobrepujam a propostas cujos frutos aparecerão no futuro. Falta liderança? O setor é ainda muito fragmentado para permitir um direcionamento único nesse sentido? Falta visão de longo prazo? Ou a pauta não é tão relevante assim?
É evidente que houve evolução nos últimos anos. O Brasil certamente está entre os países que verificou as maiores transformações recentes no setor, tanto que o capital tem sido atraído para ele. Nos tornamos auto-suficientes, elevamos a produção e o consumo, empresas investiram e continuam investindo no setor, etc. Mas.e para frente? Apesar do crescimento da renda, será que continuaremos transformando em realidade esse potencial de mercado? A pesquisa realizada pela Láctea Brasil coloca pontos importantes nesse sentido. E em relação às exportações? Temos condições de produzir a custo competitivo? Como e onde? E em relação às indústrias: o setor lácteo é estruturalmente rentável, ou depende? O que pode ser feito para melhorá-lo?
Muitos dos avanços dependem de uma maior interação entre as indústrias e seus fornecedores. Como já foi abordado aqui em outras ocasiões, há um distanciamento histórico que, na conjuntura atual, precisa ser reduzido. De fato, alguns laticínios estão buscando essa aproximação, mas no geral ainda estão longe de um ideal que melhore a fidelização e a competitividade, ou mesmo do que existe em outros setores - o que é natural, já que o processo é muito recente. E, em alguns casos, como na questão da qualidade, é complicado evoluir se não houver um grupo coeso de empresas líderes olhando para o mesmo lado. Também, não é fácil mudar hábitos arraigados.como diz o ditado, "old habits die hard". Confiança e relacionamento de longo prazo são produtos da transparência e da cooperação.
Não resta dúvida a respeito do nosso potencial. Também, é evidente o interesse de entidades e empresas em transformar esse potencial em realidade. Diante desse contexto, é de se esperar que os próximos anos tragam modificações importantes nas relações dentro da cadeia produtiva do leite e na busca de maior eficiência na produção. Mais do que isso: é necessário que haja essa evolução.