O buraco é mais embaixo. Ou estamos passando por uma forte mudança estrutural, ou o leite está sob alerta no Brasil e ninguém discute isso, seja porque não temos dados concretos para embasar nossa análise, seja porque estas questões estruturais passam ao largo, já que o foco é sempre o problema atual que, hoje, é materializado nas importações de leite. Afinal, temos o costume de atacar os sintomas e não as causas.
Vamos aos dados nus e crus.
O gráfico 1 traz a variação da captação inspecionada de leite no Brasil, entre um trimestre e o mesmo trimestre do ano anterior, desde 1998. Houve aumento em 74% das medições, contra 26% de queda. As quedas, via de regra, ocorreram quando o aumento do ano anterior foi significativo. Foi o que ocorreu, por exemplo, no segundo trimestre de 2009 x 2008, que apresentou a queda recorde de 8,5% e a única acima de 3,5% (excetuando-se o período mais recente).
Os dados dos últimos 7 trimestres, porém, mostram uma história diferente, carregada de recordes negativos:
- a maior série de quedas consecutivas – 7 até agora, e certamente teremos a oitava e a provavelmente a nona, já que temos ainda 2 trimestres não contabilizados neste ano (o terceiro e o quarto).
- ao contrário dos períodos anteriores, em que as quedas ocorriam após períodos de intenso crescimento e sempre pontuais, sendo rapidamente revertidas, desta vez o corte é mais profundo. As quedas ocorrem em cima de outras quedas.
Gráfico 1. Variação sobre mesmo trimestre do ano anterior (%).
Gráfico 2. Sete trimestres com quedas consecutivas e crescentes sobre mesmo período do ano anterior.
Clima
O clima certamente exerceu um papel não desprezível, principalmente no Nordeste do país. De 2011 para 2016, o Nordeste processou 19,5% a menos de leite no primeiro semestre. Uma enormidade. O Norte do Espírito Santo também vem sofrendo muito com a seca, e o Sul do país teve enchentes em vários locais.
Mas o clima não explica tudo. Afinal, das 5 regiões, 3 tiveram queda (observação: estamos analisando aqui o leite processado na região e não a produção em si, isto é, parte do leite pode ter sido produzido em uma região processado em outra). O Centro-Oeste processou 8,2% menos leite no primeiro semestre de 2016 versus o primeiro do longínquo 2011. O Norte, 9,2%. Com efeito, a única região que teve um aumento importante foi a região Sul: processou 15,5% mais leite nesse período. O Sudeste, por fim, cresceu pífios 6,6% em 5 anos, resultando em um crescimento de apenas 4,6% para o leite brasileiro, ou 485 milhões de litros em 5 anos. Muito pouco. Não é só clima, evidentemente.
Assim, embora o clima tenha sido um fator que afetou significativamente algumas regiões (e tende a ser um problema crescente), além de sempre gerar problemas localizados, não me parece que seja a principal causa para que a produção brasileira esteja andando para trás.
Rentabilidade do produtor
Esse é um ponto polêmico, ainda mais em momentos de queda de preços. Porém, analisando o contexto mais amplo, não faz sentido afirmar que o leite está continuamente perdendo produção porque a rentabilidade está continuamente piorando.
O gráfico 4, que traz a Receita Menos Custo de Ração para uma vaca de 20 kg (dados deflacionados, que permitem a comparação temporal), mostra que, apesar dos altos e baixos, não se pode concluir que os últimos 5 anos foram a tragédia que poderia se supor ao se analisar o desempenho produtivo – pelo contrário. A atividade tem sido atrativa, analisando o cenário macro. É evidente que há períodos ruins, como o segundo semestre de 2012 e o ano todo de 2015. Mas, no agregado, a rentabilidade utilizando a RMCR, que contempla a receita e o principal custo, tem sido boa se comparada aos níveis históricos.
Gráfico 4. RMCR para uma vaca de 20 kg.
Quem não tem escala, dançou
Um aspecto diretamente ligado a uma possível mudança estrutural refere-se ao aumento do salário mínimo ao longo dos últimos 15 anos, traduzido em maior custo de oportunidade para o produtor familiar (além de elevar os custos do trabalhador contratado). Tendo outras alternativas de renda, o baixo resultado com o leite passa a não ser a melhor (ou a única) alternativa. Isso é especialmente válido para produtores familiares e/ou com baixa escala de produção. No artigo anterior, discuto mais a fundo o custo de oportunidade.
Há ainda, um outro aspecto que acelera esse processo: os diferenciais de preço. Expliquemos com uma metáfora conhecida: eu comi 2 pratos de comida. Você, nenhum. Na média, cada um comeu um e ficou bem nutrido. Na prática, você morreu de fome e eu fiquei gordo.
Essa metáfora serve bem para o preço do leite no Brasil. A média não quer dizer quase nada. Existem preços distintos e negócios distintos. Os dados do nosso aplicativo MilkPoint Radar mostram isso claramente. Veja no gráfico 5, que traz os preços líquidos para o produtor, dependendo da faixa de volume de leite. Os produtores acima de 3.000 kg/dia receberam em agosto de 2016 um preço líquido de R$ 1,75/litro. Quem não ganhou dinheiro com esse preço, não ganhará nunca mais...Já os produtores abaixo de 250 litros receberam R$ 1,39/litro. Leite é mesmo commodity? No Brasil, não é.
O problema disso no longo prazo é que a produção do Brasil é baseada no pequeno produtor, que aqui subsidia o grande pela via de mercado. Ser um grande produtor no Brasil – e não precisa nem ser tão grande assim – é um bom negócio. Já ser um pequeno...
Nesse cenário, obviamente o primeiro a deixar a atividade é o pequeno – desde que, é claro, ele dependa do leite, caso contrário poderia, em tese, continuar produzindo mesmo sob baixos preços.
A hipótese aqui é a seguinte: estamos vivenciando, sem ter números atualizados, uma forte exclusão de produtores de leite e isso está afetando a oferta, já que a mudança estrutural envolvendo aumento do módulo de produção e aumento da escala não ocorre na mesma velocidade.
Importante: considero um processo “salutar” o aumento de escala; não pode ser motivo de orgulho termos 1 milhão de produtores produzindo 50 kg/dia. Espero que o país ofereça condições melhores de vida do que essa. A saída de muitos produtores deve ser encarada como um problema social. Os que querem e têm condições de crescer, precisam receber apoio para tal.
Mas, hoje, a saída desses produtores é talvez e também um problema de produção. Para estimular o aumento da escala de produção e da intensificação, que políticas públicas poderiam ser implementadas? Como atrair investimentos para o setor? Sendo o leite em escala e qualidade um bom negócio, porque não temos projetos de grande porte em maior número? Porque os 100 maiores produzem “apenas” 15.000 litros/dia, em média?
Gráfico 5. Preços líquidos x faixa de volume diário – leite de agosto/16.
Apesar da queda de produção como um todo, acredito que exista uma transformação estrutural em curso. Há muitos produtores obtendo índices excelentes de produtividade, uma verdadeira revolução em suas próprias propriedades. Talvez em nenhuma atividade se tenha tanta busca por informação como no leite.
Mas a velocidade de mudança tem sido insuficiente, tanto que a oferta tem caído nos últimos 2 anos, a ponto de ser insuficiente para suprir nosso consumo (em queda também).
Estamos falhando.
A relação indústria-produtor mostra sua cara
Em que pesem as conversas sobre fidelização, cooperação, etc, o fato é que, em larga medida, a relação indústria-produtor é puramente competitiva e oportunista. No momento da alta de preços, os produtores que puderam, leiloaram o seu leite. Transformaram-se quase em vendedores de leite spot. Estavam errados? Não, porque sabiam que essa era a regra do jogo. Quando o mercado virasse, receberiam uma comunicação informando sobre as quedas de preços. Do leite já entregue.
A indústria falha em promover mais transparência junto ao seu fornecedor. Não o mantém a par do que está ocorrendo no mercado e o resultado são expectativas desalinhadas. Que indústria, por exemplo, informou seus fornecedores de que não estava conseguindo mais vender os derivados aos preços de julho? Teremos vários exemplos de comportamentos que retratam a falta de alinhamento e cooperação. O conceito do Conseleite pode ajudar nisso, ao tentar trazer para a relação comercial um racional com base no que efetivamente ocorre no mercado, ainda que não seja um caminho fácil e que críticas sobre metodologia, parâmetros e valores sempre surjam. Vocês sabiam que o preço do leite ao produtor, nos Estados Unidos, segue um conceito muito próximo ao do Conseleite?
Porque coloco a responsabilidade na indústria? Por 2 motivos principais. Primeiro, evidentemente, a indústria tem mais força e condições de mudar a relação comercial existente. É ela quem reúne o leite dos produtores, e não o contrário. E ela quem tem a leitura diária do mercado. Ela é o elo forte.
Se isso não basta, vamos ser mais incisivos: em última análise, é ela quem está ficando sem leite. Minha avaliação é que, como um todo, o setor não está preparado para tornar a atividade atrativa a ponto de viabilizar investimentos de porte, que restabeleçam o equilíbrio da oferta.
Quem irá investir em uma atividade que não tem mercados futuros, contratos de longo prazo, sinalizações consistentes de mercado e na qual o leite já entregue pode sofrer fortes variações de preços (para cima e para baixo, diga-se de passagem)? Nesse ambiente, é uma atividade de enorme risco. Precisa ser muito rentável para se justificar. Quem banca o risco da volatilidade é a indústria: temos um dos leites mais caros do mundo.
Há boas cabeças na indústria; há empresas com boas intenções e ideias. Não é fácil implementá-las quando o mercado, como um todo, opera de forma diferente.
No frigir dos ovos, as importações são apenas sintoma
Não há dúvida que as importações têm contribuído para a queda de preços ao produtor e para a indústria. Neste ano, quase 8% do nosso consumo veio de leite importado. Um colosso.
Mas é um erro analisar as importações como razão do nosso problema. Elas são a consequência. Só estamos importando esse volume porque nossa produção não tem crescido; porque não temos eficiência na produção (basta comparar os índices de produtividade); porque temos custos elevados de impostos para incorporação de tecnologia, porque não temos uma boa coordenação na cadeia produtiva.
O pior de tudo é que nem com um mercado em larga escala protegido, que nos permite ter um preço comparativamente atrativo perante o mundo, estamos crescendo.
Talvez essa “ressaca” seja um processo necessário. Muitos irão sair da atividade, como ocorreu em diversos países. Lá na frente, teremos um setor mais competitivo.
Mas é preciso criar realmente uma agenda mais de longo prazo. O que, efetivamente, queremos?
Nesse sentido, que tal se nossa eficácia para obter medidas de proteção pudesse também ser direcionada para criarmos condições de não depender (tanto) delas?