Um dos dados que chamou a minha atenção no evento foi a figura 1, que compara diversas regiões do mundo em relação ao superávit e ao déficit de leite. As áreas com bolas vermelhas representam regiões onde o consumo de leite supera a oferta. Já as bolas verdes indicam regiões cuja produção é maior do que o consumo, gerando excedentes exportáveis. O diâmetro das bolas representa proporcionalmente o tamanho dos déficits e dos superávits, respectivamente.
Figura 1. Regiões com déficit ou superávit de leite no mundo (Fonte: IFCN, 2012)
O que me chamou a atenção foi que praticamente todo o excedente é gerado em regiões fora dos trópicos, ou mais corretamente, em regiões com clima mais ameno, já que o leste norte-americano, por exemplo, não é tropical e mesmo assim é deficitário. Uma primeira análise nos levaria a concluir que talvez o desempenho das vacas nessas condições é suficientemente afetado para não permitir produções que levem ao superávit.
Consideremos o caso brasileiro. Enquanto o sul do país é francamente exportador (para outras regiões), à medida que avançamos para as latitudes mais baixas a situação já não fica tão clara. São Paulo é deficitário, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás são superavitários e, a partir daí, somente se notam bolas vermelhas: regiões onde o consumo é maior do que a produção, avançando até a Venezuela.
Outro exemplo interessante são os Estados Unidos. Enquanto o oeste e o norte são claramente superavitários, o sudeste quente e úmido que envolve a Flórida, Geórgia e companhia são claramente deficitários. O mesmo vale para a China: o sul quente e úmido não consegue produzir para seu próprio suprimento, ao passo que o norte gera excedentes. Nesse ponto, é relevante apontarmos que há uma distinção entre climas quentes e úmidos e climas quentes e secos. No segundo, desde que haja água para irrigação e fornecimento aos animais, as condições são mais favoráveis. Assim, explica-se o crescimento do leite no meio-oeste e oeste dos EUA, além do custo mais alto na Flórida, região quente e úmida. Também, pode-se inferir que a produção de leite no Nordeste tem mais facilidade de se desenvolver do que na Amazônia.
Mas, antes de concluirmos de forma definitiva que a produção em clima quente e úmido é irremediavelmente problemática, é importante adicionar alguns ingredientes na análise. O primeiro é que a maior parte dos países com excedentes são países desenvolvidos, que predominam fora dos trópicos - coincidentemente ou não. Assim, há um fator de confundimento. Via de regra são países onde a produção de leite foi fortemente subsidiada ou ao menos apoiada de forma a gerar uma produção elevada. É o caso da Europa, por exemplo, que no pós-guerra fortaleceu sua produção interna de alimentos para garantir segurança alimentar, resultando em uma superprodução crônica que perdura até hoje. Outro exemplo é a Nova Zelândia que, apesar de não ter subsídios, estruturou sua produção a partir de um monopólio de exportação (a antiga New Zealand Dairy Board) e um acesso preferencial ao Reino Unido por fazer parte do Commonwealth (vantagens que foram muito bem aproveitadas para desenvolver o setor de maneira competitiva, diga-se de passagem).
De qualquer forma, é importante assinalarmos que, na esteira do clima, há também fatores muito mais amplos como a disponibilidade de recursos e o próprio desenvolvimento destes países e regiões, que afetam logicamente a produção total.
Também, não se pode fazer qualquer análise sem considerar a densidade populacional. A figura 2 traz esses dados e mostra que o sudeste asiático, especialmente, possui uma densidade populacional tão alta que mesmo com todo o desenvolvimento, certamente continuaria deficitário, ainda mais considerando o aumento de renda que deve continuar a impulsionar o consumo. Ainda, o nordeste dos Estados Unidos, que envolve Nova Iorque e Washington, conta com grande população e acaba sendo deficitário, mesmo com clima teoricamente favorável às vacas. A figura 3, que traz o mapa de satélite noturno da terra, podendo-se relacionar as áreas iluminadas como sendo as de maior densidade populacional, mostra essa diferença entre leste e oeste norte-americano (além de outras regiões do globo). O caso mais evidente fica com a Austrália e Nova Zelândia, países com baixa densidade populacional e mesmo baixa população em termos absolutos, gerando excedentes exportáveis.
Figura 2. Densidade populacional em habitantes por quilômetro quadrado
Figura 3. Mapa noturno mundial, a partir das fotos de satélite. Áreas iluminadas representam regiões com maior densidade populacional, ainda que nível de urbanização possa ser outro fator de confundimento (regiões mais desenvolvidas podem apresentar mais luz do que outras menos desenvolvidas, ainda que tenham a mesma densidade)
A densidade populacional ajuda a explicar a charada, mas não explica tudo. Voltando ao sudeste asiático, a densidade média não é tão distinta, na média, da européia - uma região superavitária apesar do alto consumo per capita. Também, como é possível constatar na figura 2, não há tanta diferença assim na densidade populacional dos Estados Unidos e diversos outros países em desenvolvimento - Brasil incluso (embora a análise de densidade populacional esteja avaliando os países e não regiões específicas, como é o caso do gráfico de superávit/déficit).
Pelos dados, podemos assumir que exista, de fato, alguma dificuldade inerente a produção em regiões de clima quente e úmido.
Porque isso ocorre? Além dos desafios proporcionados pelo alto calor e umidade (maior incidência de doenças, reprodução pior, maiores problemas com qualidade do leite, maior lignificação das forrageiras, mais pragas, mais barro), é preciso considerar que a maior parte das pesquisas historicamente vem de países desenvolvidos, de clima temperado. Pode-se dizer que estes países estão em um nível tecnológico superior, fazendo uma sintonia fina da qual ainda estamos longe, apesar dos avanços, por exemplo, no manejo de pastagens tropicais.
Antes que se conclua que produzir nos trópicos é menos viável, é necessário lembrar mais uma vez que a alta insolação e umidade são fatores muito estimulantes ao crescimento da forragem, permitindo lotações muito superiores às encontradas em clima temperado. A pesquisa com forrageiras tropicais deve ser intensificada, sendo absolutamente estratégica para que possamos avançar não só na redução do déficit, mas também na própria competitividade dos sistemas.
Ainda nesse sentido, é de fundamental importância trabalhar questões como o conforto e bem-estar animal, que ainda engatinham no Brasil, quando se analisa o todo, evidentemente.
Por fim, é fundamental que se mantenham e se amplifiquem pesquisas com raças e cruzamentos mais adaptados aos trópicos, e que o trabalho de melhoramento genético de raças como o Gir Leiteiro e o Girolando seja aperfeiçoado para que, no futuro, seja possível ter com maior segurança animais com lactação mais prolongada e bons níveis produtivos, sem comprometer totalmente o componente de adaptação ao clima quente e úmido. Ainda, acredito que cruzamentos entre raças temperadas, como jersey, simental e sueca vermelha, entre outras, podem dar resultados interessantes quando conjugados com o gado holandês. Vale lembrar que em regiões de clima desafiador nos Estados Unidos, há pesquisas nesse sentido e produtores começando a utilizar alternativas que não unicamente o holandês que, claro, continua predominando e participando dos cruzamentos.
O Brasil tem naturalmente o papel de liderança nesses pontos, por conter a maior parte do seu território em clima tropical e por estar em um patamar de desenvolvimento econômico superior aos demais países.