Na semana passada, participei como moderador de um painel no 7º Congresso Internacional do Leite, promovido pela Embrapa Gado de Leite em Juiz de Fora, MG. O título do painel era "Perspectivas para o agronegócio do leite". Tema sempre presente nas discussões e que pode envolver tanto tendências de curto como de longo prazo.
Transcorrido o painel, fiquei com a sensação de que vivemos hoje uma clara crise de identidade no setor.
Desde o ano 2000, o Brasil se prepara para assumir a posição de grande exportador de lácteos em algum momento próximo. De fato, de lá para cá, galgamos gradativamente o status de autossuficiência para, em 2004, nos tornarmos exportadores líquidos. Em 2008, finalmente, atingimos mais de US$ 500 milhões em exportações e fomos o 5º maior exportador mundial de leite em pó integral.
Em 2009, o quadro parece se reverter. Produção sem grandes avanços, preços externos deprimidos e real valorizado colocam em cheque, ao menos momentaneamente, nossa trajetória de país estruturalmente superavitário nos lácteos, como ocorre com outros produtos do agronegócio.
De exportador líquido, deparamo-nos novamente com uma balança comercial deficitária. De um discurso pró-abertura de mercados e retirada dos subsídios dos países protecionistas (discurso que, justiça seja feita, continua presente), passamos a adotar medidas que defendem nosso grande mercado interno. Fala-se cada vez mais em defender nosso maior ativo - o potencial interno de consumo - como se talvez fizéssemos mea culpa pela ênfase talvez exagerada nas exportações.
Por outro lado, mantemos nossos argumentos a respeito do potencial de crescimento de nossa produção - o que é correto - e a respeito de nossa competitividade.
O aspecto relativo à análise da competitividade é mais complexo por envolver muitas variáveis, algumas fora de nosso controle. Uma delas - e importante em se tratando de uma commodity - é o câmbio. Como já discutimos no artigo anterior, confirmando-se o bom momento e, mais do que isso, o novo status da economia brasileira no panorama mundial, é possível que o real valorizado seja uma nova realidade com a qual tenhamos de trabalhar. De acordo com o índice Big Mac, produzido pela revista The Economist e que compara o poder de compra relativo das moedas, o real estaria mais valorizado do que o próprio dólar, uma vez que um Big Mac custa mais em US$ no Brasil do que nos Estados Unidos: US$ 4,02 x US$ 3,57. De fato, só estamos atrás da Noruega, Suíça, Dinamarca, Suécia, e União Europeia, indicação de que o real está sobrevalorizado - e há quem aposte que se valorizará ainda mais.
Ainda que a situação do momento não seja definitiva, acredita-se que nossa moeda será mais valorizada do que no passado recente. Isso implica em duas consequências que podem ser consideradas irmãs siamesas: de um lado, impede ou ao menos dificulta nossas exportações e, de outro, abre o mercado interno para produtos importados, sejam eles subsidiados ou não.
Outra variável que define a competitividade é ainda mais incerta: qual será, se é que é possível definir, o patamar de preços em que o mercado lácteo internacional se "estabilizará"? Com preços do leite em pó na casa dos US$ 4.000 a tonelada ou mais, entramos novamente no jogo, assim como os Estados Unidos, mesmo com essa nova realidade do câmbio. Mas quem, em sã consciência, pode afirmar com segurança que isso ocorrerá e que, em ocorrendo, será o novo patamar?
"O problema de hoje é que o futuro não é mais como costumava ser", disse o empresário indiano Ramalinga Raju, fundador da Satyam Computer Services, no World Economic Forum de 2008. A digitalização e a globalização imprimiram uma velocidade e uma dimensão até então desconhecidas às mudanças globais.
Ninguém sabe, por exemplo, qual será o comportamento da crise econômica mundial. Será em forma de "V", ou seja, já atingimos o fundo do poço e agora sairemos dela? Ou será um "W": essa repentina melhora será seguida de novo mergulho para só então termos a definitiva recuperação? O economista Paulo Haddad disse em sua palestra no evento da Embrapa que qualquer previsão nesse sentido é muito arriscada: simplesmente não sabemos.
Philip Kotler, o papa do marketing, diz em seu novo livro, que tem o sugestivo título de "Chaotics", que "nunca mais voltaremos à idade de ouro da normalidade". Para Kotler, as empresas terão de instalar um sistema de alerta (prevenção) e resposta rápida (o atendimento de pronto-socorro) que lhes permita desenvolver rapidamente novos cenários quando a economia entrar em queda. Como lidar com essa nova realidade volátil? Segundo ele, em vez de falar superficialmente sobre planejamento para contingências, as empresas e setores devem fazer planejamento de cenários; em vez de orçamentos fixos, orçamentos variáveis, e assim por diante.
"Quando tínhamos as respostas, mudaram as perguntas". Essa é a sensação que se tem hoje diante de um cenário que nos traz uma realidade que - acreditávamos - já havia sido extinta.
Além dos fatores externos e incontroláveis que definem a competitividade, há as variáveis que estão sob nosso alcance. As velhas questões de qualidade, logística, acesso a mercados e, principalmente, produtividade e custos são sempre discutidas.
Sem dúvida, há avanços importantes. Porém, como colocou o historiador Boris Fausto em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, no domingo (19/07), acerca da corrupção no país, esta cresce a uma velocidade maior do que as medidas de prevenção e punição, aumentando o problema dia após dia. Trazendo a analogia para o leite, a conjuntura externa nos demanda avanços em uma velocidade maior do que aquela que estamos imprimindo ao setor lácteo, criando um potencial fosso de competitividade.
Chega a ser surpreendente que, passados tantos anos de discussões, ainda estejamos discutindo sistemas de produção e custos (reconheça-se, é verdade, a complexidade do tema em um país com tantos contrastes e diferenças geográficas). Surpreende, ainda, que tenhamos tão poucos dados a respeito de custos de produção de leite nas várias regiões e que, dentro de uma mesma região, haja tanta discrepância de valores. De certa forma, a fazenda de leite, como entidade econômica, ainda é uma caixa-preta no Brasil. Ainda estamos no ajuste grosseiro, longe da sintonia fina que outros setores já estão.
Claro que é possível avaliar o cenário de mais longo prazo. O aumento da demanda de lácteos no mundo é estrutural. Os países que hoje lideram as exportações mundiais de lácteos têm claros limites à expansão da produção. A escassez dos recursos naturais, criando a "economia natural", tenderá a elevar os preços dos bens que dependem do ambiente para serem produzidos. Tudo isso poderá resultar em aumento médio dos preços dos lácteos e abrir uma avenida para o Brasil - mas quando? O que tivemos em 2007/08 com a escalada dos preços dos alimentos foi um prenúncio, uma pequena erupção sinalizando a grande e definitiva erupção que caracterizará esse novo cenário? Não sabemos.
Quais outros países têm potencial de produção? Quem abastecerá de lácteos a África com seus mais de 1 bilhão de habitantes e baixo consumo de lácteos? Qual o potencial de produção de leite da própria África - há alguém no Brasil estudando isso? E na Ásia, quais países podem efetivamente elevar a produção de leite e abastecer a demanda crescente dos mais de 4 bilhões de pessoas? Mudando de questão, em que grau e em qual velocidade as distorções do mercado internacional de lácteos serão reduzidas, se é que serão reduzidas?
Todas estas questões são relevantes e deveriam estar sendo estudadas. A única maneira de se preparar para uma conjuntura incerta e volátil é se mirar no longo prazo e se preparar para os cenários possíveis. É criar, desde já, a estrutura para minimizar o efeito dos fatores incontroláveis e que podem minar qualquer planejamento, por mais bem intencionado que seja.
Temos trabalhado bem o curto prazo: se o preço do nosso leite em US$ cai, voltamos a falar de exportações; se leite condensado é nosso produto de maior competitividade, construímos novas fábricas (para logo depois perceber que o mercado se satura rapidamente); se os preços do leite em pó vão às alturas, idem; se os preços caem ou a exportação míngua, voltam as discussões em torno do marketing institucional; se o preço ao produtor aumenta, coloca-se mais ração na dieta das vacas; se a lucratividade da atividade para o produtor melhora, a produção sobe rapida e significativamente; o oposto ocorrendo quando há prejuízo, e assim por diante.
Claro que é necessário focar o curto prazo, afinal sem o curto prazo não se chega ao longo prazo. Mas, citando a inscrição no Templo de Apolo em Delfos, Nada em excesso. Hoje, simplesmente reagimos. Uma estratégia perigosa, se não inviável, em um cenário de mudanças cada vez mais rápidas. A questão que precisa ser respondida é: aonde de fato queremos chegar? A partir dela, analisando-se os possíveis cenários e fazendo uma ampla radiografia do setor, definir as áreas prioritárias para ação. No Brasil que emerge como futura potência, a competitividade não será mais herdada dos fatores naturais e dos baixos custos relativos. A competitividade precisa agora ser construída - uma tarefa feita a várias mãos e focada no longo prazo - nosso principal desafio como cadeia produtiva.