Dessa forma, em um espaço de 10 dias, foi possível conhecer um pouco de como se organiza a produção do maior produtor de leite de vaca do mundo, com cerca de 90 bilhões de litros.
Os Estados Unidos sempre foram associados à alta produtividade, mas baixa competitividade global. Seus custos sempre foram maiores do que os preços do mercado internacional e as exportações só eram viáveis através de subsídios que permitiam com que o excedente pudesse ser desovado. Por outro lado, o enorme mercado interno colocava o foco do setor justamente dentro de suas fronteiras, de certa forma como ocorre também com o Brasil nesse momento. Comparadas com as empresas europeias e com a neozelandesa Fonterra, foram poucas as empresas norte-americanas de lácteos que se internacionalizaram ao longo das últimas décadas.
A partir de 2007, com a elevação dos preços internacionais e com a desvalorização do dólar frente a diversas moedas, isso começou a mudar. A alta eficiência produtiva, a organização setorial e a capacidade responder aos estímulos econômicos não encontraram mais na conjuntura internacional uma barreira para a expansão, até porque os fortes subsídios europeus que contribuíam para a manutenção dos preços internacionais em US$ 0,20/kg iam sendo gradativamente descontinuados. Aliado a isso, a despeito de todos os investimentos em marketing, o consumo interno vinha andando de lado, principalmente por causa do declínio aparentemente incontornável do consumo de leite fluido.
O resultado é que os Estados Unidos passaram a investir nas exportações de lácteos. Hoje, o país é o terceiro maior exportador mundial, atrás da Nova Zelândia e da Europa e já à frente da Austrália. Em 2013 (veja gráfico abaixo do USDEC, organização bancada por produtores de leite e que visa abrir espaço para o leite e lácteos dos EUA no mercado internacional), o país deve bater o recorde pelo quarto ano seguido, exportando mais de 15% de sua produção (ou seja, 13,5 bilhões de kg) e faturando US$ 6,5 bilhões. Veja pelo gráfico que, em 2005, o país importava mais do que exportava.
E não deve parar por aí. Tim Hunt, estrategista global de lácteos do Rabobank e que esteve no Interleite Brasil 2012, disse que o país parece estar entrando em um período de aumento de competitividade, ao mesmo tempo em que a China busca diversificar o suprimento de lácteos, hoje muito concentrado na Oceania.
Com tudo isso, especialistas locais acreditam que de cada 3 kg de aumento de mercado nos próximos 10 anos, 2 virão das exportações. Considerando um crescimento de 1,4% ao ano, em 2023 o país estaria produzindo 106 bilhões de kg, sendo 22,3% exportados – quase 24 bilhões de kg.
A seguir, alguns destaques da viagem e que mostram um pouco da organização do leite nos EUA.
Dairy Management Inc – foi a última visita da viagem, nos arredores de Chicago. Fomos recebidos por Tom Gallagher, presidente da entidade. A DMI arrecada US$ 270 milhões de dólares anuais para ações voltadas para o aumento de consumo. Surgiu em 1984, quando os EUA estavam com estoques públicos nas alturas. Os produtores, organizados, propuseram: “nós ajudamos a vender, desde que vocês tornem obrigatória a contribuição do produtor”. Até então, havia diversos programas isolados de marketing, com contribuição voluntária, o que tende a não funcionar. O governo aceitou e desde então os produtores pagam 1/3 de centavo de dólar por cada kg produzido, mas podem a qualquer momento interromper a iniciativa, desde que tenham suficiente número de assinaturas.
Engana-se quem pensa que todo esse investimento está centralizado em propaganda na TV e afins. De fato, isso ocorreu, mas os tempos mudaram. A DMI tem pesquisadores dentro do McDonald’s, da Domino’s Pizza e Taco Bell, por exemplo, para desenvolver produtos ao consumidor utilizando lácteos (leia mais sobre isso em artigo que escrevi há 2 anos).
Também, tem em seus quadros um ex-jogador de futebol americano que atuou no New York Giants e que atua como embaixador junto a outros atletas, fomentando o consumo de lácteos na prática de esportes. A DMI criou recentemente uma sala de mídia digital, onde uma moçada jovem fica monitorando tudo o que ocorre nas mídias sociais envolvendo lácteos, interagindo com o público quando necessário. Por fim, realiza visitas de formadores de opinião e clientes finais a fazendas, para mostrar como o leite é produzido. Um dos braços da DMI é o USDEC, já mencionado acima, que foca no mercado exportador. Exemplo de organização setorial.
Universidade de Wisconsin, em Madison – tivemos um dia de palestras na bela Universidade, referência em produção de leite nos EUA. O encontro de um dia foi organizado pela nossa colunista de nutrição Marina Danés, que está fazendo doutorado no local. Além da palestra de Marina, tivemos Victor Cabrera, que veio ao Interleite Brasil em setembro, Dave Combs, especialista em fibra, Paul Frickie, que palestrou no Simpósio Leite Integral deste ano, e Mark Stephenson, outra figura que veio ao Brasil em 2013, sendo palestrante na abertura do Interleite Sul, em Passo Fundo.
Como é formado o preço do leite nos diversos países do mundo? Foi este o tema de interessante palestra de Stephenson. Aprendemos que o preço do leite nos EUA é dado por um mecanismo parecido com o Conseleite: mix de produtos, preços de venda e rendimento industrial determinam o preço base a ser recebido pelo produtor. Assim, o mercado é altamente regulamentado pelo governo. As empresas têm seus bônus de qualidade, mas o fato é que há pouca concorrência pelo leite – e pouca diferença de preço em decorrência de volume de produção entre produtores. Ainda, há um mecanismo de transferência de recursos entre empresas (acredito que via governo) caso determinado segmento esteja com rentabilidade pior do que outro, de forma que todos possam pagar de forma semelhante pela matéria-prima, sem incorrer em prejuízos.
Fazendas – visitamos fazendas de 140 a 2900 vacas em lactação. Um dos pontos que chamaram a atenção é o acesso à tecnologia. Os produtores ficaram inconformados com os custos muito mais baixos dos mesmos equipamentos, sêmen, etc., bem como pela quantidade e variedade de serviços e tecnologias disponíveis por lá, causa e consequência de um país que produz 90 bilhões de kg com alto padrão tecnológico.
Esse é um ponto relevante para nossa competitividade futura. Onde está o problema? Questão tributária? Custo Brasil? Margens? Baixo volume de mercado? Se, por exemplo, uma dose de sêmen dos melhores touros custa 3 vezes mais aqui em dólar do que lá, é evidente que nossa evolução será menor. Se determinado equipamento, quando disponível, custa o dobro, o mesmo conceito se aplica. Está aí uma área relevante para nossas lideranças estudarem mais a fundo.
Também, serviços terceirizados são comuns e extremamente profissionais, seja na produção de forragens, na criação de bezerras ou na coleta do leite. Na cooperativa Foremost Farms, por exemplo, vimos que a empresa que realiza o transporte é de propriedade da Land’O’Lakes, outra cooperativa, prestando serviço a diversas empresas e otimizando a rede de captação de leite, com custo por litro mais baixo que o nosso. Claro que o volume de leite por km rodado e a qualidade das estradas são aspectos relevantes.
Heterogeneidade – costumamos falar da heterogeneidade na produção de leite no Brasil. Pois lá também tem! Visitamos uma propriedade com ordenha robotizada, com 140 vacas, mas que não tinha nada de excepcional; visitamos a Larson Dairies, com 2900 vacas em barracão totalmente fechado, com sistema de ventilação cruzada, altamente eficiente; visitamos fazendas de grande qualidade genética e produtiva, como a Kellercrest, a Sun Burst (Brian Brown, seu proprietário, é presidente do conselho da Accelerated Genetics) e a Mystic Valley, com 300 a 500 vacas no leite; visitamos a Crave Brothers, 1200 vacas em um ambiente extremamente organizando e limpo, com produção verticalizada de queijos. E vimos nas belas estradas com paisagem de outono inúmeros barracões antigos, aqueles vermelhos com silos azuis, muitos deles ainda em uso, completando o quadro de diversidade existente.
Nos últimos anos, a eficiência neozelandesa tem nos atraído. Contudo, talvez seja nos os Estados Unidos que devamos ter nosso principal espelho: grande mercado interno, distintos pacotes tecnológicos, clima e condições de produção igualmente distintas ao longo do país e estrutura de custos (altos custos variáveis e baixos custos fixos) mais próxima das nossas.
Por fim, uma última observação. Fomos extremamente bem recebidos em todos os lugares que visitamos. Nessa época do ano, as fazendas de Wisconsin recebem inúmeras visitas por conta da World Dairy Expo. Em uma delas, segundo o proprietário, eram mais de 15 visitas na semana. Mesmo assim, a atenção e a paciência conosco foram extremas. Ocorreu-me que, além da hospitalidade e do orgulho de mostrar um trabalho bem feito, o bom produtor norte-americano tem uma preocupação especial em passar uma imagem favorável para a sociedade, já que hoje menos de 2% da população está na agricultura e que, caso não tenha um canal de comunicação adequado com a comunidade, poderá ser prejudicado com visões equivocadas a respeito de como se produz.
A seguir, fotos que tirei na viagem. Nesse link, artigo que escrevi na viagem do ano passado, “Barracões abandonados, robôs e megafazendas”.
Proprietários da Kellercrest Holsteins: sucessão familiar é problema para os irmãos Tim e Mark Keller.
Barracão totalmente fechado para 1800 vacas na Larson Acres
Divisórias de plástico removíveis garantem a limpeza quando o lote de bezerras é desmamado (Larson Acres)
Nosso grupo na fazenda Sun Burst, de Brian and Yogi Brown. Ao fundo, as antigas instalações, não mais usadas para as vacas em lactação.
Mystic Valley: 45 kg de média/dia em free stall com 3 fileiras de camas e sobre-lotação de 17% nas baias
Charles Crave, mostrando a ordenha e Marius Bronkhost, produtor Top 100 de Aarapoti, PR,
Tanque de permeato de soro na Crave Brothers. Se Wisconsin fosse um país, seria o quinto maior produtor de queijo do mundo, à frente da Itália. O permeato de soro volta para a ração completa, sendo fonte de energia
O grupo observa os silos da Crave Brothers.
Casqueador faz o casco em menos de 3 minutos por vaca
O grupo na Universidade de Wisconsin, com direito a chimarrão. Ao fundo, Marina Danés e Mark Stephenson.
Silagem de milho e de alfafa formam a base da dieta em Wisconsin. Mas a terra é cara: um hectare pode chegar a US$ 25.000.
Dia de ensilagem na Sassy Cow dairy, fazenda que tem uma unidade convencional e uma orgânica, com leite, sorvete e queijos comercializados no mercado com marca própria
Yogi Brown e Neli Berloti, professora da UEL. Ao fundo, um dos muitos imigrantes que ordenham as vacas norte-americanas
Luisa e seu pai Olavo Carvalho, produtor top 100 em Araxá, MG.
O belo rebanho guernsey da Hoard’s Dairyman Farm
Produtor investiu US$ 250.000 em cada um dos dois robôs, mas não se arrepende, apesar na manutenção passar de US$ 1.000/ano em cada um.
Viagem termina com um dia de lazer em Chicago.