Nesse momento, em especial, a frase de Bohr cai como uma luva. Nunca foi tão arriscado fazer previsões acerca do mercado de leite: 2008 vem em seqüência a um ano absolutamente anormal no que se refere ao comportamento do mercado de lácteos, tanto na esfera externa, em que os preços atingiram níveis recordes, com elevações de mais de 100% em relação ao ano anterior, como na interna, em que os preços pagos pela matéria-prima atingiram pico superior a US$ 0,40/litro na média Brasil, algo impensável há pouco tempo. Os direcionadores dessa subida no mercado interno foram igualmente inéditos: após uma alta inicial provocada pelo leite em pó, fruto principalmente das elevadas cotações internacionais, foi o longa vida que rompeu barreiras históricas e chegou a ser vendido a mais de R$ 2,50 o litro, jogando no lixo o senso comum de que preços ao consumidor acima de R$ 2,00/litro não seriam factíveis.
A rápida elevação dos preços do leite longa vida pagos pelo consumidor foi seguida por uma queda igualmente rápida, iniciada em agosto, complementada pelos episódios de fraude que ganharam o noticiário nacional, em início de outubro. Nessa conjuntura, em que os preços externos deram sinais de também terem atingido seus picos, finalizamos 2007 com os preços ao produtor em queda. Ainda assim, em 2007 os preços nominais foram quase 30% superiores aos preços de 2006, sinalizando um ano de recuperação, apesar das fortes e inéditas emoções.
Dois aspectos básicos estiveram por trás do movimento de alta que se iniciou em meados de 2006, perdurando por um ano e, mesmo caindo, se mantendo acima das médias históricas: primeiro, o forte crescimento da economia mundial, em especial nos países emergentes, Brasil incluso; segundo, a elevação dos custos de produção, fazendo com que custos abaixo de US$ 0,15/litro fossem coisa do passado na grande maioria dos países, senão todos.
O crescimento continuado do PIB mundial na casa dos 5% ao ano, chegando a até mais do que o dobro disso em países muito populosos, como a China, estimulou a demanda por diversos produtos, entre eles os lácteos, cuja elevação de oferta foi brecada por problemas climáticos, como na Austrália e na Argentina, pelas políticas de governo, como na Argentina novamente ou na Europa, pela dificuldade de conversão de terras em produção de leite, como na Nova Zelândia, ou ainda pela competição com outras culturas, como nos EUA. Com isso, os estoques foram consumidos e o efeito foi a inédita elevação dos preços. Há que se considerar ainda que a resposta em produção de leite frente às condições de mercado não é imediata, pois há a necessidade de mais animais e planejamento alimentar para colher a produção futura.
A elevação dos custos dos insumos, por sua vez, exerceu sua parcela de contribuição: preços mais altos de fertilizantes, petróleo, grãos,mão-de-obra e terras colocaram o leite em novos patamares de custos. Esse aspecto, que deve continuar neste ano, nos remete a uma constatação importante: ainda que estejamos acostumados a relacionar a rentabilidade da atividade com os preços recebidos, a análise agora deve ser mais ampla, uma vez que os custos também subiram e não necessariamente os valores mais altos implicam em maior lucro ao produtor.
Nesse sentido, o gráfico 1 traz os valores de Receita Menos o Custo de Ração (RMCR) deflacionados, sendo o custo da ração calculado a partir de uma mistura de milho e farelo de soja, fornecido na proporção de 1:3 em relação à produção de leite. Apesar dos preços do leite em dezembro de 2007 terem sido quase 10 centavos por litro mais altos do que em julho de 2005, a RMCR foi menor, fruto dos custos de alimentação mais elevados.
Gráfico 1. Variação da RMCR, em reais/vaca/dia, deflacionada pelo IGP-DI
Mas o que esperar, então de 2008? O ano já se iniciou com preços ao produtor cerca de 40% mais elevados do que 2007. Porém, parte da conjuntura que criou o mercado de 2007 não está mais presente ou, ao menos, inspira muitos cuidados. Os preços recordes para os lácteos estimularam a produção; no Brasil, até setembro, a produção inspecionada subiu 6,9%; nos Estados Unidos, de julho em diante, a produção foi de 3 a 4% maior do que no mesmo mês do ano anterior, o que é altíssimo para os padrões norte-americanos; a União Européia deve aumentar em 2% as rígidas cotas de produção de leite, potenciamente colocando mais 3 bilhões de kg no mercado. Preços altos, obviamente, estimulam a oferta.
O aumento da produção norte-americana, concentrada em soro de queijo e leite em pó desnatado, prontamente reduziu - e muito - os preços dessas duas commodities, afetando depois a manteiga e, eu menor grau, queijos e leite em pó integral. Nesse momento, as cotações externas em queda, talvez em busca de um novo equilíbrio entre as médias dos últimos anos e os picos de 2007, trazem sombras para as perspetivas no que se refere aos preços dos lácteos. Por enquanto, as cotações de leite em pó integral, principal produto exportado, ainda estão atrativas, embora tenham caído 23% desde setembro, atingindo US$ 4300/tonelada. Em linhas gerais, a tonelada de leite em pó exportada por US$ 4000 e câmbio de R$ 1,80, permitiria uma remuneração máxima pela matéria-prima de R$ 0,73/litro.
Além desse cenário específico relacionado ao leite, o agravamento da situação econômica dos Estados Unidos provavelmente reduzirá o crescimento econômico mundial. O FMI já havia, em outubro, revisado sua previsão de crescimento do PIB mundial de 5,2% para 4,8%; com a possível recessão americana, é sensato pensar em crescimento ainda menor. Como a economia americana representa 30% do PIB mundial e é o destino das exportações de muitos países, em especial novamente a China, justamente um dos vetores do crescimento do consumo de lácteos, o menor crescimento econômico dos EUA pode refletir nestes países, indiretamente afetando o consumo de lácteos. A Rússia, maior importador de queijos do mundo, seria outra possível vítima dessa situação. Hoje, ainda é cedo para estimar a extensão dos efeitos; no entanto, o efeito deve ser negativo na economia mundial, ainda que diversos países como o Brasil estejam hoje bem mais preparados para lidar com as crises.
Dentro desse cenário, onde a perspectiva de um menor crescimento econômico internacional encontra alguma recuperação de oferta de leite no mundo, ainda que relativamente modesta, o que se depreende é que provavelmente não teremos os picos no mercado internacional como em 2007. Se os preços vão cair mais, e para quanto, é outra - e hoje imprevisível - questão.
A importância do cenário externo para o Brasil reside no fato de que, a cada ano que passa, a tendência é que aumentemos nossa parcela de leite exportada, pois a produção vem crescendo sistematicamente mais do que o consumo. Assim, a transmissão de preços entre os mercados externo e interno tende a ser mais efetiva. Neste ano, a produção deve continuar subindo: o USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos) espera aumento recorde de 8% ou 2,14 bilhões de litros, o maior que já tivemos na história.
Talvez haja exagero nessa previsão, ainda mais considerando este início de ano turbulento. Porém, é fato que entramos 2008 com o setor estimulado. O produtor teve um ótimo 2007 e inicia 2008 com preços bem mais elevados do que janeiro passado. Um longo período de preços em alta estimula o investimento em matrizes (que, aliás, seguem valorizadas) e na produção de alimentos. De certa forma, o leite de amanhã já está sendo produzido hoje.
Na indústria, notícias concretas e boatos envolvendo aquisições de empresas e investimentos de fundos e de empresas de outros segmentos vêm inundando o setor lácteo com um otimismo que não se conhecia, ao menos na história recente.
Todo esse ambiente fomenta a produção de leite e, de um lado, depende da continuidade da forte demanda, seja interna, seja externa. Feitos os comentários a respeito das variáveis envolvidas no comportamento da demanda externa, ficamos então com as dúvidas sobre a demanda interna. Além de alguma repercussão da conjuntura externa, isto é, do menor crescimento mundial podendo afetar a economia brasileira, como admitiu o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, agora estamos diante da possibilidade de racionamento de energia, algo que vem sendo comentado menos do que deveria e que pode ter repercussões negativas no crescimento econômico. O possível racionamento de energia, assim como o caos aéreo, nos lembra da dificuldade que temos em planejar nosso futuro e também do quanto não somos preparados para crescimentos acima dos famigerados 2 a 3% anuais, dos últimos 20 anos.
No mesmo sentido, o crescimento da produção de leite também coloca dúvidas sobre as atuais condições do parque fabril de lácteos no país. Em dezembro de 2006, o Cepea/USP indicava que o nível de capacidade ocupada dos laticínios era de 78,9%. De lá para cá, a produção, segundo o índice de captação de leite do Cepea, cresceu 15,9% ou por volta de 8,6 milhões de litros/dia. Se assim for, estaríamos agora próximos do limite, caso as informações estejam corretas e caso não se tenha elevado a capacidade industrial de leite no Brasil. Logicamente houve aumento da capacidade industrial,mas quanto? E, se o USDA estiver certo (leia aqui) e tivermos mais 2,14 bilhões de litros ao final de 2008 (5,86 milhões de litros diários), as novas fábricas serão suficientes? Hoje, conversando com as indústrias do Sudeste, vê que muitas delas estão operando no limite, inclusive terceirizando parte da produção (a exceção parece ser o longa vida, que tem capacidade ociosa). Para a entressafra, provavelmente não teremos problemas, mas para outubro em diante, fica a dúvida: teremos fábricas suficientes? Ou, ainda, a capacidade fabril estará instalada nas áreas onde a produção mais cresce, ou o leite terá de ser transportado, às vezes sujeito a rupturas como as recentemente verificadas nas alterações tributárias que tornam pouco atrativas a venda de leite refrigerado para São Paulo? Esta seguramente não é a principal questão de 2008, mas, no caldeirão de incertezas, entra como mais uma variável.
Vê-se, portanto, que 2008 já nasce coroado de incertezas, tornando difíceis as previsões. Mesmo assim, é possível apostar em algumas possibilidades. A primeira é que a subida de preços verificada em 2007 pode ocorrer mais cedo em 2008, ainda que não se atinjam os picos verificados em setembro. Na média, o primeiro semestre de 2008 deve apresentar preços algo superiores a 2007. Para o segundo semestre, porém, o céu fica mais nebuloso. Aumento de produção, possível desaceleração da economia, risco real de racionamento de energia (a não ser que chova muito) e dúvidas sobre o crescimento de nosso parque industrial de lácteos são aspectos que sinalizam um segundo semestre mais complicado.
De qualquer forma, 2008, na média, tende a ser mais um bom ano para o setor, embora com fortes emoções em função da possível maior volatilidade. Boa gestão, controle de custos e acompanhamento das variáveis de mercado farão a diferença.