No artigo anterior, comentei a respeito da realização de um workshop organizado pela DPA para discutir a competitividade do setor em relação às exportações de lácteos. O artigo procurou traçar um possível cenário de mercado externo, que combinaria preços não tão elevados para os lácteos e um câmbio que dificultaria as exportações.
Termino questionando: "considerando que essa análise faz sentido, a pergunta que fica então é se conseguimos crescer nossa produção de leite (e em tese esse crescimento só ocorrerá se a atividade for atrativa economicamente) a ponto de nos tornarmos exportadores estruturais, considerando preços de US$ 3.000/tonelada e câmbio, digamos, entre R$ 1,80 e R$ 2,00, que resultariam em um preço de equivalência da matéria-prima entre R$ 0,55 e R$ 0,60/litro? Se há uma luz no final do túnel, como chegar a ela?"
Nesse artigo, pretendo apresentar alguns itens relacionados à competitividade e que foram discutidos no evento, lembrando que as reflexões e conclusões são de minha responsabilidade e não necessariamente a opinião dos participantes.
Ao se falar em competitividade no mercado de commodities, não se pode escapar do custo de produção. E, ao se falar em custos, se fala em sistemas de produção. Assim, um dos primeiros e principais itens discutidos foi a velha questão a respeito dos sistemas de produção.
É evidente que em função das dimensões do país e diferenças climáticas é impossível apontar apenas uma forma de produzir leite. Isso não se discute. Mas, e dentro de uma mesma região, há um modelo mais eficiente e que, portanto, deveria sobrepujar os outros, a exemplo do que ocorreu na Nova Zelândia ou em regiões dos Estados Unidos, ou ainda como ocorreu com outras atividades agropecuárias no Brasil cuja evolução levou a padrões definidos de produção? Ou a discussão é irrelevante, sendo possível produzir eficientemente em mais de um sistema, desde que bem gerenciado?
Essa discussão parece velha e, em certo sentido, é: está há muito tempo nos artigos técnicos e no programa dos eventos do setor. Mas isso não significa que esteja resolvida a ponto de virarmos a página, como foi sugerido no encontro. E, até onde sei, não temos ainda quantidade e qualidade de informações para chegar a alguma conclusão definitiva, sem deixar de reconhecer os esforços que vêm sendo feitos recentemente em algumas instituições de pesquisa e mesmo na iniciativa privada.
O fato de não termos ainda esses dados sugere que conhecer os sistemas e aumentar sua eficiência não tem sido uma meta prioritária do leite como setor. A relação focada no curto prazo entre produtores e indústrias e a pouca preocupação em fidelizar o fornecedor (até por historicamente não haver necessidade) resultaram em uma interferência muito modesta dos laticínios na eficiência produtiva de seus fornecedores de matéria-prima, sejam cooperados ou não. Compare por exemplo o nível de serviços de suporte e informação que os laticínios dão aos produtores, quando comparado com o fornecido pelo sistema de integração de aves e suínos, em que, na prática, a indústria define como será produzido e coloca todo seu expertise, poder de barganha, logística, etc. para melhorar a eficiência de produção do frango.
Não estou recomendando algo parecido para o leite; constato apenas que esse distanciamento histórico entre produtores e indústrias ajuda a explicar o "atraso" nessa profissionalização que poderia ou não resultar em modelos mais ou menos eficientes. O fato da Integralat ter proposto um sistema de integração na cadeia do leite é até mais relevante por apontar que há um possível ganho de custos e eficiência na cadeia ao se investir no elo primário, do que pela ideia em si, cuja aplicabilidade pode ser complicada.
Derivando dessa questão de não sabermos ao certo como produzir melhor estão também as dúvidas a respeito das diferenças regionais. O evento teve a presença de dois produtores aparentemente bastante competentes, um em Minas Gerais e outro no Rio Grande do Sul. De acordo com os dados de custos apresentados, enquanto o produtor mineiro tinha custo operacional de R$ 0,66/litro, o gaúcho obteve R$ 0,47 no mesmo período. Se os dados estiverem corretos e refletirem o que conseguem obter essas fazendas em condições normais, é de se perguntar se o crescimento da produção não vai de fato se deslocar para o Sul, como ocorreu com o leite nos Estados Unidos que, a partir da década de 80, migrou do leste para o oeste. Vinte centavos é muita diferença, mas podemos bater mesmo o pé em cima desta informação e generalizá-la? Talvez sim, mas confesso que não sei. Você sabe?
Além de resultar em um baixo conhecimento agregado a respeito das maneiras de se produzir leite, a relação característica entre produtor e indústria afeta outros itens da nossa competitividade como exportadores. Vale a pena, por exemplo, investir no aumento do teor de sólidos do leite? Há dois aspectos envolvidos nessa questão: dada a relação majoritariamente de curto prazo na cadeia e considerando que não são muitas as empresas que remuneram por qualidade, um produtor pode não ver vantagem em investir em genética para aumentar sólidos, por exemplo, sem saber se estará fornecendo leite para seu cliente atual daqui a algum tempo. Deve-se, ainda, lembrar que não basta remunerar por qualidade; é preciso ensinar ao produtor como fazer e monitorar, o que nos remete mais uma vez ao baixo envolvimento da indústria na produção.
O exemplo do investimento nos sólidos do leite serve para outros investimentos que poderiam ser feitos pelo produtor e que talvez não sejam feitos em parte pela falta de sinalização a respeito do futuro da atividade, dos preços, etc. Dentro disso, falou-se da importância dos instrumentos de redução do risco como a existência de transações em mercados futuros que têm sido importantes para sinalizar as tendências futuras e diluir riscos em diversas cadeias.
É preciso reconhecer que esses aspectos não são os únicos relacionados ao desconhecimento dos sistemas de produção e da baixa adoção de tecnologia. Os laticínios não são os únicos canais de informação - há a extensão rural oficial, empresas de insumos, consultores, revistas, televisão, internet, etc. Acho, porém, que cada vez mais as indústrias (cooperativas incluídas) serão as responsáveis por levar eficiência para a produção, como ocorreu com outras cadeias de produção, mesmo porque é sua própria competitividade que está em jogo.
Todos esses pontos tangenciam outra questão, mais ampla, que é a coordenação da cadeia de produção de leite. Há ainda um número grande de empresas, com políticas de remuneração muito distintas, enfoques de qualidade também distintos e, mais do que isso, dificuldade de criar consenso, voz unificada para o setor e tratar as questões estratégicas que lidam com a competitividade.
O Brasil é dos países com maior fragmentação na indústria, tanto que o movimento de aquisições que vem ocorrendo nos últimos anos não se dá por acaso. Desse grande número de empresas decorre também o fato de termos diversas entidades dentro do setor de laticínios, não havendo ainda uma entidade única, que trate das questões pré-competitivas relevantes. Por isso, as dificuldades em fazer andar o programa de marketing institucional e defesa do setor; a ausência de planos estratégicos de longo prazo que incluam questões relevantes para o futuro; a dificuldade em se criar selos de boas práticas e códigos de conduta (isso vem mudando: ao que consta o programa da ABLV tem funcionado bem); a quase ausência de investimentos privados em pesquisa aplicada à produção, etc. E, cada vez mais, surgirão questões pré-competitivas relevantes que só poderão ser resolvidas caso haja uma ação unificada.
Um exemplo recente no Brasil foi a moratória da soja. As indústrias processadoras (cerca de 20) se reuniram com as ONGs e criaram um compromisso de não comprar soja de áreas desmatadas após meados de 2006. Esse processo ocorreu dentro da Abiove, a associação das indústrias de óleos vegetais e tem sido importante para garantir acesso a mercados. Não seria suficiente uma ou outra empresa adotar essa prática, uma vez que quem estava sob suspeita era a soja brasileira como um todo, demandando uma ação setorial. E veja que não se falou de governo; foi uma iniciativa privada.
Voltando ao leite, vejamos o caso da Nova Zelândia. Hoje, provavelmente cerca de 50% do leite exportado no mundo passa pela Fonterra, seja originado na Nova Zelândia, seja em países como o Brasil. Mesmo com esse domínio, o país tem estruturas que pensam o futuro; A Dairy New Zealand, por exemplo, é uma entidade que é custeada tanto pelo governo quanto pelos produtores (lá, produtor é também indústria), com a missão de assegurar e melhorar a rentabilidade, a sustentabilidade e a competitividade do leite da Nova Zelândia. Uma das formas de se fazer isso é através do financiamento de pesquisas que serão depois aplicadas na produção. Com isso, o país pode lidar melhor com as variáveis externas como o câmbio ou subsídios europeus: constrói sua própria competitividade.
A Austrália, através da Dairy Austrália, tem propósitos semelhantes. Os Estados Unidos, pela Dairy Management Inc., que é custeada por produtores, também trabalha questões de longo prazo como a redução dos gases de efeito estufa e o marketing institucional.
Ao que parece, todas as cadeias produtivas que conquistaram competitividade não baseada apenas na exploração de vantagens comparativas naturais, câmbio favorável ou baixo custo de mão-de-obra tem como característica a existência de uma organização que pense e trabalhe as questões de futuro e que consiga deixar um pouco de lado as questões competitivas do dia-a-dia. E, no Brasil, acredito que a estruturação dessa organização deva partir inicialmente da indústria. Em minha opinião, o item principal e do qual derivariam todos os outros seria a criação (ou fortalecimento/redirecionamento) de uma entidade que reunisse as principais indústrias e cooperativas com o intuito de pensar e criar nossa competitividade futura, e que tivesse também representação de outros stakeholders, para usar o termo da moda, como produtores e indústria de insumos. Quem sabe a Láctea Brasil, uma entidade ainda nova e que foi criada justamente para trabalhar questões pré-competitivas?
E por falar em organização dos produtores de leite... Sobre este aspecto, sempre se levanta a questão do número de produtores. Ao se pensar em 1,3 milhão de produtores (será que é esse mesmo o número?), qualquer tentativa de organização e desenvolvimento morre pela simples constatação de que é muita gente: nem sabemos ao certo quantos são e onde estão. Mas, discutiu-se no evento, será que 80 ou 100 mil produtores não seriam responsáveis pela grande maioria do leite produzido no país? Provavelmente sim, e conhecer e organizar esses 80 ou 100 mil produtores já passa a ser uma tarefa muito mais factível (os Estados Unidos tinham esse número há 15 anos); consegue-se sair do imobilismo que os "1,3 milhão de produtores produzindo 100 litros por dia" geram. A questão pode parecer polêmica, mas não é; não se trata de desconsiderar ou excluir os demais. Eles também se beneficiariam se o setor produtivo conseguisse se organizar como ocorreu em outros países, conhecendo mais sobre sua realidade, aumentando seu poder de barganha e facilitando a captação de recursos que seriam investidos para assegurar sua rentabilidade, sustentabilidade e competitividade, como faz a Dairy New Zealand.