Exageros à parte, me impressiona o fato de, no Brasil, não se explorar o vínculo entre produção e produto, que poderia, se bem trabalhado, agregar valor à marca.
Como muitos países em desenvolvimento (ou emergentes, como agora se fala), o Brasil apresenta elevada heterogeneidade de renda e de perfil de consumo. Há, sem dúvida, aqueles que mal conseguem o suficiente para se nutrir; há também a massa de consumidores que, nos últimos 15 anos, pode finalmente incorporar queijos e iogurtes à sua dieta.
Mas há, como ocorre um países desenvolvidos, o consumidor cada vez mais aberto a novas experiências e que procura transmitir em suas escolhas outros valores que não exclusivamente a segurança alimentar, o preço mais baixo, a ingestão de nutrientes ou o sabor. E como somos 200 milhões de habitantes, esse “nicho” de consumidores que busca algo a mais não é tão pequeno assim.
Na verdade, a essa altura dá para dizer que, o que chamamos hoje de nicho, carrega as grandes tendências de consumo no futuro, considerando que a renda média da população tende a crescer e que o dispêndio proporcional com a cesta básica será cada vez menor, comparado com a renda (assim esperamos).
Lembro-me de uma palestra que assisti em 2008, no evento da IDF (International Dairy Federation), em Dublin, Irlanda, onde o Irish Dairy Board (Conselho de Lácteos da Irlanda) apresentou um trabalho feito sobre tendências do consumo em 40 metrópoles do mundo, incluindo países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Um dos achados é que, devido à globalização, as tendências foram semelhantes nas grandes áreas urbanas, isto é, não importa se o consumidor está em Nova York, Londres, Cape Town, Xangai ou São Paulo. A figura abaixo traz os 6 grandes direcionadores de consumo (observação: o trabalho "Brasil Food Trends", realizado pela FIESP e ITAL, em São Paulo, vai na mesma linha).
Principais tendências de consumo (Fonte: Irish Dairy Board, 2008)
Vamos destacar 2 destes direcionadores: Obter o verdadeiro e Fazer a diferença.
“Obter o verdadeiro” envolve uma série de conceitos relacionados a produtos com origem conhecida, pouco processamento industrial, com vínculos históricos e sentimentais, que tocam nosso imaginário, etc. Ganharam força a partir da existência de cadeias de fornecimento muito longas, às vezes sujeitas a descontroles (ex: caso de melamina na China em 2008, afetando produtos europeus que usavam leite em pó chinês); desconfiança das multinacionais e uma gradual perda do contato com o campo, sendo a busca de produtos dessa natureza uma tentativa de resgatar esse passado. Os produtos orgânicos, sem dúvida, estão também nesse movimento, bem como os farmer’s market, feiras urbanas onde os produtores trazem seus produtos para venda. Os queijos da Serra da Canastra também são exemplos de “Obter o verdadeiro”, inclusive com testemunhos favoráveis de chefs de cozinha renomados, importantes propulsores dessa tendência.
Observação: não estou dizendo que esses produtos são melhores ou mais saudáveis do que os produzidos em escala industrial, mas sim que há uma parcela considerável da população que assim o percebe, estando ela certa ou errada.
Vale lembrar que, de certa forma, todos temos uma ancestralidade que remete ao campo. No Brasil, por exemplo, em 1940, apenas 31% da população vivia em cidades (hoje são 85%!) e o vínculo com o rural era muito mais presente. Nos Estados Unidos, entre 1910 e 1920 cerca de metade da população ainda vivia no campo, produzindo alimentos e dependendo economicamente da agropecuária. Se não podemos sair das grandes cidades em função do trabalho, podemos deixá-las ao menos um pouco, consumindo produtos fortemente identificados com essa visão idílica impregnada no nosso imaginário (hotéis-fazenda, logicamente, exploram essa necessidade também).
Já o “Fazer a diferença” tem a ver com consumir produtos que carregam um componente ético, ainda que haja subjetividade no conceito. Produtos produzidos com práticas ambientalmente sustentáveis; produtos produzidos por minorias; produtos de empresas que são reconhecidas por respeitar o meio ambiente e distribuir melhor a riqueza gerada, alguns são exemplos. Natura e Starbucks, por exemplo, são grandes empresas que procuram atuar embasadas nesse conceito. Vá ao Google e digite Capitalismo Consciente.
Mas o que isso tem a ver com o leite vindo ou não da caixinha, conforme começarmos a conversar lá atrás?
É que me surpreende como a indústria por aqui “esquece” de explorar o vínculo com a produção como uma forma de agregar valor ao produto. Estou falando de trabalhar a sua cadeia de fornecimento de forma a poder mostrá-la com orgulho ao consumidor, como parte inseparável de seu produto, representando vantagem competitiva. Quantos consumidores se disporiam a pagar algo a mais se, embutido no produto que compram, pudessem ter a certeza de comprarem o leite de produtores com recompõem a mata ciliar, por exemplo, ou de uma empresa que atua com transparência nas negociações comerciais com seus fornecedores? Isso não representaria maior potencial de ganhos atualmente do que a diferenciação industrial, ou a negociação com o cliente varejista?
Há quem diga que isso é conversa de “marqueteiro” e que é “nicho” de mercado, nao representando volume. Será mesmo? Pergunte a cadeia Whole Foods, dos EUA, que fatura US$ 13 bilhões/ano.
Acho que há espaço para trabalhar tendências como essa, com resultados. Não que seja fácil, nem rápido: não basta vender aquilo que não se tem, isto é, trabalhar a imagem de algo que não se sustenta (Diletto e Suco do Bem são exemplos recentes disso). Mas que há, sem dúvida, um espaço crescente para diferenciação com essa abordagem, isso há. Resta saber se os acionistas das empresas terão paciência e visão de longo prazo para fazer essa transição, ou se, pressionados pelas urgências do curto prazo, permanecerão no rumo atual, agregando valor nos processos industriais e embalagens, mas sem se lembrar que, no final das contas, o leite vem da vaca e o consumidor tende a valorizar cada vez mais esse vínculo.
Antes que me esqueça, a Nestlé fez uma ação nesse sentido no ano passado, que publicamos no MilkPoint. Foram vídeos para o Dia das Mães, procurando mostrar a mães consumidoras como o leite era produzido e processo. Veja o vídeo produzido na fazenda da Beatriz Dotta, onde inclusive dei uma palestra em novembro passado:
Foram mais de 400.000 views. Tem a ver com o que falamos acima, não?
A ideia desse blog é criar uma comunicação mais direta minha com nossos milhares de leitores. Esse artigo ficou mais longo do que deveria, mas meu objetivo é que seja um espaço em que os artigos dêem lugar aos “posts”: mais diretos, mais objetivos e que permitam iniciar uma conversa com quem quer discutir a cadeia em que estamos inseridos.
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