A cada final de ano, sempre existe a tentação de fazer um balanço do que ocorreu e, mais do que isso, tentar traçar perspectivas e tecer recomendações gerais para que o setor caminhe de forma mais assegurada em direção ao crescimento sustentável.
A oportunidade que tive de participar do World Dairy Summit, o principal congresso mundial do setor de laticínios, realizado pela FIL-IDF agora em novembro em Auckland, na Nova Zelândia, tornou a tarefa imensamente mais fácil. Nesse encontro, a nata da cadeia do leite mundial debate os principais problemas do setor, as oportunidades, o que vem pela frente. Além do congresso principal, do qual participaram 2000 pessoas de diversos países, ocorreram inúmeros encontros paralelos que versaram desde economia láctea até marketing e nutrição, passando por meio ambiente.
O fato de reunir toda a cadeia láctea e ser realizado sempre no final do ano traz um viés de futuro ao WDS. E esse futuro vale a pena ser discutido, residindo nestas observações a nossa mensagem para 2011.
A cada dia que se passava no evento, foi ficando claro que não existe um único futuro para o setor lácteo, mas sim vários futuros, dependendo de qual país ou região do mundo é objeto da análise. Alguns países, como os menos desenvolvidos, permanecem à sombra, não devendo brilhar em um horizonte próximo. Estamos falando da maior parte dos países da África, e alguns da Ásia.
Em outro extremo, os países desenvolvidos, que se encontram em uma sinuca aparentemente intransponível. De um lado, os problemas demográficos: população praticamente estagnada ou decrescente. De outro, problemas econômicos cuja solução parece ser cada vez difícil: a Espanha, com 20% de desemprego; o Euro sob risco; economias que, quando tudo vai bem, crescem 1,5% ao ano; outras que, como a Irlanda ou a Grécia, vivem sob respiração artificial, para não falar de Espanha, Portugal e, alguns temem, até a Itália. Do lado norte-americano e japonês, a situação não é muito diferente.
Para complicar, trazendo agora essa conjuntura para o setor lácteo, o consumo de leite e derivados já é alto, na casa dos 268 kg/habitante/ano, contra 51 kg dos países em desenvolvimento, que são inclusive os que verificam taxas mais robustas de crescimento populacional e de renda.
Não bastasse isso, tem-se um ambiente de negócios nestes países muito mais complexo, com restrições ambientais crescentes para a produção de leite, regulamentações nutricionais cada vez mais rigorosas e nem sempre corretas e produtos concorrentes disputando a fatia de um bolo que não vai crescer mais, restando como bandeira a pouco atraente missão de não fazê-los encolher.
Mas não é tudo. Tanto os Estados Unidos como a Europa estão passando por mudanças significativas na rede de segurança que sempre amparou produtores e indústrias. No caso dos Estados Unidos, com a crise financeira é certo que a nova Farm Bill, que define os programas de apoio à produção (entre eles algumas formas de subsídio) vira com menos dinheiro disponível. A NPMF (associação dos produtores de leite) está estudando medidas como a criação de um seguro contra margens muito baixas de receita menos custo de alimentação, isto é, se a RMCA cair abaixo de determinado patamar, o produtor aciona o seguro e garante as margens.
A Europa, em vias de extinguir tanto os subsídios a exportação (em 2013) e quotas de produção (em 2015) analisa possíveis maneiras de diminuir o impacto negativo destas medidas, principalmente nos países menos competitivos (os do Mediterrâneo, por exemplo). Mercados futuros e contratos de longo prazo entre produtores e indústrias estão sendo estudados. Esse ambiente de transformações, aliado a uma classe produtora no geral bastante alavancada (o mesmo ocorre na Nova Zelândia) gera incertezas na cadeia e deve gerar calafrios nos bancos que financiaram esse endividamento.
As pressões relativas a nutrição e meio ambiente não são desprezíveis. Eu diria que esses dois aspectos são os que mais preocupam o setor lácteo desenvolvido nesse momento. A Dinamarca pode aprovar um imposto sobre a gordura saturada, que afetará manteiga e queijos e elevará em 30% o preço da primeira. O setor lácteo local (e europeu também, antevendo o risco de tal medida se espalhar, visto que tem o potencial de arrecadar 750 milhões de euros somente na Dinamarca, a cada ano) está se mobilizando para oferecer alternativas de arrecadação ao governo e que não afetem de forma tão drástica o setor lácteo. Detalhe importante: supostamente, o custo mais alto em função dos impostos reduzirá o consumo de lácteos com alto teor de gordura saturada e isso resultará em menos doenças cardiovasculares. Segundo estudos da entidade responsável pela saúde na Dinamarca, depois de 10 anos de implantada e tendo arrecadado 7,5 bilhões de euros, a medida tem o potencial de elevar a expectativa de vida de cada pessoa em..5,5 dias. Ou seja, a medida é muito mais política e econômica do que de saúde.
A nossa realidade, assim como de outros países emergentes, é bastante diferente, ao menos ainda. Nossa população ainda cresce, embora menos do que no passado; a renda avança principalmente nas camadas mais pobres, estimulando o consumo de proteínas nobres, principalmente queijos, iogurtes e carnes; o mercado se sofistica, criando espaço para produtos de alto valor agregado nas classes A e B, no food service e em parte da classe C, ávida pelas novidades que antes ficavam somente no top da pirâmide; a regulamentação nutricional está sendo apertada, mas não se compara ao que se vê na Europa, por exemplo; o mesmo pode-se dizer a respeito do meio ambiente.
Saí do evento com a nítida sensação de que não queria ser um produtor ou uma indústria que atua somente no bloco desenvolvido. As oportunidades são poucas, o mercado é saturado, os entraves se multiplicam. Concluí que qualquer laticínio que se queira fazer global precisará olhar de forma muito mais ativa para países como Brasil (e outros da América Latina), China e, principalmente, Índia, que será a bola da vez.
Com a escassez de oportunidades no mundo desenvolvido, a liquidez do mercado e o potencial nos países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil é um dos destaques, não há dúvida de que teremos diversas mudanças nos próximos anos, principalmente no que se refere a aquisições e concentração do mercado, com seu lado positivo e seu lado negativo. Isso já começou a ocorrer, mas muito ainda virá nos próximos anos. Aguardemos.
Outro aspecto que vale a pena analisar é que, ainda que demorem um pouco (certamente menos do que achamos que demorará), muitos dos entraves que desestimulam a indústria láctea no bloco desenvolvido em algum momento chegarão aqui também, demandando uma maturidade em relação à organização setorial que simplesmente não dispomos.
É, sob certos aspectos, irônico: ainda temos tempo para olhar à frente e nos organizarmos para enfrentarmos os desafios, coisa que eles lá fora não tiveram, tendo agora que pagar um preço bastante caro. Por outro lado, como estamos crescendo, o estímulo para nos organizarmos e traçarmos estratégias de mais longo prazo, necessárias quando se analisa a conjuntura futura, é mínimo. Basta vermos o esmorecimento de iniciativas de promoção institucional sempre que o mercado fica mais ajustado, para logo serem retomadas, diante de quedas bruscas de preços e aumento dos estoques.
Por fim, um corolário do parágrafo acima. Se nos basta viver o curto prazo, usufruindo do crescimento econômico, da renda dos mais pobres e do ocaso do mundo desenvolvido, por que participar de encontros que discutirão o futuro do setor, algo que parece muito distante quando o presente é farto? Ainda mais quando esse futuro fala principalmente de outros países?
Pode-se argumentar que o fato do Brasil ter arrefecido seus planos exportadores diminuiu o apetite de participar de fóruns internacionais, o que faz algum sentido do ponto de vista de explicação, mas não de justificativa. Primeiro, porque mesmo não exportando, o Brasil é player importante do mercado, seja como possível importador ou como destino de investimentos que interessam sim à produção e à indústria; segundo, porque como já comentado acima, aquilo que está ocorrendo lá fora, mais dia menos dia, chegará aqui, sendo fundamental nos prepararmos. Temos, enfim, a rara oportunidade de nos prepararmos antes dos fatos. Assim, considero fundamental que os agentes que fazem o mercado, as lideranças setoriais, seja na produção ou na indústria, participem destes fóruns, aprendam com eles e façam valer nossa importância. Em tempo: o próximo será em Parma, na Itália, em meados de outubro.
Ainda, um último ponto. Apesar de toda a pujança da economia brasileira, do crescimento da renda dos mais pobres e dos investimentos realizados no setor lácteo, nem todo mundo, tanto na indústria como na produção, ganhou dinheiro nos últimos anos. Teve até gente que quebrou. É evidente que, em qualquer atividade, haverá aqueles que terão prejuízo constante e sairão do negócio, mas não é disso que estou me referindo. Falo das características estruturais do setor que, mesmo com vento favorável, impedem muitos de ganhar o que seria de se esperar. E muitas dessas questões estruturais implicam em ações de longo prazo, setoriais, pré-competitivas, como o setor lácteo mundial está tentando fazer e como outros setores por aqui já o fazem, com competência (vou citar aqui novamente o exemplo da UNICA, do setor sucroalcooleiro).
Como mensagem de final de ano, gostaria de assegurar que o futuro do setor lácteo no Brasil é extremamente favorável. No entanto, a transformação desse potencial em realidade na próxima década dependerá do correto entendimento da conjuntura em que o setor está inserido e de ações que visem ativamente defender e ampliar nosso mercado. A compreensão disso por parte das lideranças setoriais é de fundamental importância para que caminhemos nesse sentido.
Em nome de nossa equipe, agradeço a todos pela participação, pelo estímulo constante, pelos comentários e críticas e por fazer do MilkPoint algo muito maior do que, ao criá-lo, há exatos 10 anos, podíamos imaginar.
Um ótimo 2011 para todos vocês - será um ano de grandes novidades aqui nesse espaço - aguardem. Até lá!
Em meados de dezembro, o coordenador do MilkPoint, Marcelo Pereira de Carvalho, realizou uma palestra online sobre os principais assuntos abordados no World Dairy Summit 2010 e suas implicações para o mercado brasileiro, além das tendências de curto prazo para o mercado mundial de leite. A palestra tratou dos seguintes temas: - mercados emergentes (China, Rússia, Índia e Brasil) - comércio internacional e políticas setoriais - sustentabilidade - inovação e marketing - tendências para o mercado brasileiro A palestra, com duração de 1:30h, foi gravada e está disponibilizada, juntamente com os slides da apresentação, para download. Trata-se de informações que farão diferença para o seu negócio. |