Em junho último, dei uma palestra sobre a importância da comunicação na difusão dos conceitos de sustentabilidade nas propriedades. Na verdade, esse era o título que me foi sugerido, mas resolvi adaptá-lo e foquei muito mais na comunicação do setor para a sociedade, por entender que é aí que reside hoje o principal problema nessa questão.
Essa realidade pode parecer ainda distante da cadeia do leite, ao menos aqui no Brasil. Lá fora, é um dos dois itens prioritários na agenda das lideranças setoriais, ao lado das questões nutricionais do leite, com o teor de gordura e de gordura saturada. Aliás, é interessante notar que os dois principais itens da pauta não estejam exatamente relacionados à produção de um produto de qualidade à custo competitivo, o que seria de se esperar em se tratando de um alimento, mas sim ao comportamento do consumidor e à preservação dos recursos naturais, mostrando que há a necessidade de um diálogo diferente com o consumidor.
A cadeia da carne, não há dúvida, está bem mais exposta às questões ambientais, seja pelo número de animais bem superior, seja pelo dilema amazônico, seja pela área ocupada, muito maior e, de forma geral, pouco eficiente. As recentes campanhas levadas à cabo pelo Ministério Público Federal, a respeito da ilegalidade ambiental, trabalhista e fiscal, dão uma mostra do que pode vir por aí:
Nesse caso, a ação é do MPF, mas via de regra há ONGs com grande espaço na mídia e poder de mobilização por trás de algumas propostas que são prejudiciais ao setor.
Não acho que a presença de ONGs seja negativa a princípio - muitas vezes elas conseguem mudar realidades que precisam ser alteradas de forma mais eficiente até do que governos, principalmente quando atuam em cima de marcas globais. Em maior ou menor grau, representam os anseios da população ou de parte dela e, em última análise, fazem parte do jogo democrático. Justamente por ter estas nobres credenciais, muitas vezes há abusos que passam incólumes, ganhando o apoio da mídia e da população.
Mas a produção animal é, de fato, vilã do aquecimento global? Faz sentido, como querem alguns extremistas, deixar de consumir proteínas animais, sob o risco de criar o caos ambiental caso isso não seja feito?
A questão é bem mais complexa do que isso. Primeiro, é preciso lembrar que a sustentabilidade envolve três vertentes: ambiental, social e econômica. Cerca de 20% da população mundial, ou 1,3 bilhão de pessoas, dependem hoje da produção animal, predominantemente nas regiões mais pobres do globo, onde 36% da população vive da produção animal, o que confere enorme importância social. Economicamente, a importância é menor: 1,4% do PIB mundial, de fato desproporcional aos 10-12% do total de gases de efeito estufa emitidos (trabalho recente realizado pela FAO em parceria com a Federação Internacional de Lácteos indica que a cadeia do leite é responsável por 4% das emissões de gases de efeito estufa pelo homem). No caso da produção animal, portanto, não se pode analisá-la ambientalmente sem avaliar a vertente social. Assim, propostas no sentido de reduzir o consumo de proteína animal são não apenas inviáveis, como socialmente perversas, tanto em função da questão social de quem produz, como do acesso a essas proteínas por parte de quem nunca teve (e, agora, com o aumento da renda, começa a ter). O que se pode discutir é que, dados os níveis de obesidade nos países desenvolvidos, principalmente na América do Norte, faça sentido uma reeducação alimentar que pode passar pelo consumo mais moderado de gordura saturada.
Outra análise superficial e em geral equivocada refere-se à competição por grãos entre os animais e seres humanos. Nos sistemas mais intensificados (e na exploração de monogástricos), pode-se argumentar nesse sentido, mas não quando se analisa a produção animal como um todo: afinal, segundo a FAO, cerca de metade da área de pastagens é imprópria para a agricultura e a produção animal nestas condições é a maneira de transformar celulose em proteína animal de alta qualidade, alimentando bilhões de pessoas. Aliás, o metano, o principal gás emitido pelos bovinos, é resultado da fermentação da fibra nesse processo - o ônus que permite essa conversão, sem a qual a fibra não seria aproveitada pela população humana.
Mas é outro fator que, definitivamente, tem o potencial de transformar a produção pecuária de vilã em mocinha dessa história. No caso do leite, dados recentes indicam que a produção de um kg de leite corrigido para gordura gera entre 1,3, e 7,5 kg de CO2 equivalente - uma variação significativa, portanto. Em geral, quando menos intensivo é o sistema, maior a emissão de gás carbônico por kg produzido, Considerando que a produção pecuária nos trópicos em geral apresenta baixa produtividade, é possível reduzir em muito as emissões através de práticas que envolvam o aumento da eficiência do sistema: maior produtividade por animal, maior produtividade por área, etc. Comparativamente, a tarefa é muito mais inglória nos países com produção intensificada, pois as melhorias tendem a ser graduais, visto que o grosso já foi feito. É de certa forma irônico, mas é a realidade.
Essa é uma força e, ao mesmo tempo, uma fraqueza da produção nos trópicos. Força porque, como já colocado, talvez seja a atividade com maior possibilidade de geração de impactos positivos no que se refere à redução da emissão de gases de efeito estufa entre todas as atividades antropogênicas, sem que haja necessidade de se reduzir a produção. Fraqueza porque, enquanto isso não ocorrer, pode virar vidraça. Dados da FAO (2010) indicam, por exemplo, que a América Central e do Sul emitem o dobro de gases de efeito estufa para produzir seu leite em comparação a América do Norte, apesar de produzir cerca de 25% menos leite. Com efeito, as regiões mais eficientes em relação aos gases de efeito estufa são a América do Norte, a Oceania e a Europa. As menos eficientes, a América do Sul e Central, a África e o Sul da Ásia.
A discussão, enfim, não é se deve haver ou não produção animal, mas sim quais sistemas são mais eficientes para, ao mesmo tempo, alimentar uma população crescente, que atingirá 9 bilhões de pessoas, e preservar o clima e os recursos naturais. E essas pesquisas ainda estão em seu início, representando enorme potencial futuro.
Para complicar, não há uma relação evidente entre eficiência ambiental e custos de produção. Tirando a Oceania, eficiente nas duas vertentes, em geral os países com maior eficiência ambiental são os que produzem o leite mais caro. Há, desta forma, um trade-off.
O contexto é, sem dúvida, complexo. De uma lado, tem-se uma população cada vez mais urbana e distante da realidade do campo; do outro, tem-se a questão climática, que ganhará importância cada vez mais maior. No centro disso, a produção pecuária. O que fazer?
Há várias abordagens possíveis para o setor. A primeira, ignorar o problema adotar uma postura defensiva, não é recomendável, pois o efeito será evidentemente alimentar as desconfianças da sociedade e aguçar o faro dos tubarões. Evidentemente, se os ataques forem pesados, é preciso reagir. Mas apenas reagir não basta. A postura mais vencedora é:
- acompanhar ativamente o marco legal, participando dos grupos de trabalho nacionais e internacionais;
- acompanhar o que diz a mídia, o que fazem as OGNs, como pensa o consumidor a esse respeito;
- investir no levantamento de informações científicas junto aos órgãos responsáveis, como fez a FIL-IDF junto a FAO;
- implantar linhas de pesquisa aplicadas;
- preparar porta-vozes capacitados a conversar com a mídia e governos;
- dialogar com os stakeholders, incluindo ONGs;
- mostrar que há convergência de interesses;
- reconhecer a relevância da produção animal na questão da emissão dos gases de efeito estufa, mas ao mesmo tempo mostrar i) a importância social e nutricional da atividade no mundo; ii) as amplas possibilidades de melhoria, tornando a produção pecuária potencialmente a "mocinha" dessa história; iii) o que já vem sendo feito de bom nesse sentido*.
Um posicionamento como esse gera credibilidade e possibilita o resgate do apoio da população à produção animal.
Tudo isso envolve um comportamento que tem sido escasso no setor rural brasileiro, até porque a conjuntura anterior não o demandava. É preciso, nesse novo contexto, um forte esforço de comunicação transparente com a sociedade, tomando a iniciativa, ao invés de apenas se defender diante das críticas, muitas vezes - mas nem sempre - infundadas.
Assistiremos, nos próximos anos, à intensificação do debate em torno das questões ambientais e será fundamental que saibamos encarar a realidade e organizar nossas ações, transformando esta potencial ameaça em uma grande oportunidade.
*Diversas entidades do setor lácteo mundial criaram um documento vivo chamado "Green Paper", com o intuito de documentar progressos em itens como redução da emissão de gases de efeito estufa; aumento da eficiência do uso de energia; aumento da eficiência no transporte, processamento e acondicionamento de leite, e avaliação da Análise do Ciclo de Vida do leite (LCA).