Sem dúvida, o momento atual em que são verificadas reduções de preços na entrada da entressafra e com o farelo de soja atingindo estratosféricos R$ 1.100-1.200/tonelada exacerba as discussões. Porém, a natureza da lei em si já seria suficiente para um debate mais intenso, o que vamos tentar fazer nesse artigo.
Acompanhei com atenção as discussões no site e não pude deixar de notar o amadurecimento do setor, manifestado em diversos comentários bastante lúcidos acerca de uma lei que, em sua essência, tem a boa intenção de conferir maior previsibilidade ao produtor de leite, que normalmente vende (ou "entrega") seu produto sem saber o preço a receber.
Mas será que é assim mesmo? Uma análise mais detalhada é suficiente para colocar uma série de dúvidas a respeito não só da aplicabilidade, mas do seu real benefício àquele que é seu principal foco: o produtor de leite.
Um primeiro ponto que vale a pena abordar é que a frase "o produtor vende o leite sem saber o preço que irá receber" traz subliminarmente a mensagem de que "normalmente é surpreendido negativamente, recebendo preços menores". Em um momento de baixa de preços essa conclusão faz sentido, mas é lógico admitir que as surpresas negativas (preço mais baixo do que o esperado) e positivas (preço mais alto do que o esperado) estejam bem distribuídas ao longo do período. Afinal, nos momentos em que o mercado está aquecido, o movimento tende a ser inverso.
Um outro aspecto interessante é que as flutuações de preços entre meses raramente ultrapassam 5 centavos para mais ou para menos. A tabela abaixo mostra os dados que sugerem que esse raciocínio está correto. Desde 2006, somente em 4 meses a variação entre meses foi maior do que R$ 0,05/litro, sendo 3 delas refletindo aumento de preços e apenas 1 refletindo queda (valores nominais, sem correção para a inflação). Em 12 ocasiões, a variação mensal foi abaixo de 1 centavo (para cima ou para baixo); em 13, foi de zero a 1 centavo; em 16, de 1 a 2 centavos; em 9, de 2 a 3 centavos; em 6, de 3 a 4 centavos e de 4 a 5 centavos, e assim por diante, com reduções progressivas de ocorrência quando maior a flutução mensal, o que era de se esperar.
Tabela 1. Diferença de preços entre meses (a partir de dados do Cepea/USP)
O ponto que argumento é que, claro, quanto maior previsibilidade melhor para a gestão, mas ainda que exista volatilidade e incerteza, estas são distribuídas de forma homogênea entre momentos favoráveis e desfavoráveis. Mais ainda, excetuando-se os momentos de forte reversão do mercado, nos últimos anos (principalmente após 2007) as variações entre meses têm sido relativamente brandas.
Vale colocar que o risco é inerente a qualquer atividade. Um produto de culturas anuais muitas vezes incorre em forte investimento sem saber quanto irá colher e como estará o preço no momento da colheita. Nesse sentido, o risco é até maior do que no leite. Existem três diferenças importantes, porém: primeiro, a possibilidade de esperar um melhor momento para comercializar, coisa que no leite é impossível de ser feito; segundo, a existência de mecanismos de mercado que permitem que o produtor gerencie melhor esse risco, como seguros climáticos e mercados futuros; e, terceiro, uma melhor coordenação da cadeia em que o cliente (processadora de grãos) pode garantir a compra antecipada e oferece outros serviços que reduzem a incerteza. Mecanismos de mercado, portanto, que aproximam os elos e reduzem o risco agrícola e de mercado.
É nesse ponto que vale a pena comentar a origem da lei. Em sua versão original, a proposta continha a proibição de se fazer pagamentos diferenciados entre produtores, como se diferenças de volume, qualidade, logística e importância estratégica não existissem. Conseguiu-se tirar esta extemporaneidade, ficando porém a obrigatoriedade do aviso antecipado. Era, enfim, um pacote bem intencionado sob o ponto de vista social (em uma análise otimista), mas descasado com as tendências do mercado e com as próprias características do produto. Para ficar no exemplo mais óbvio, considerando que a diferenciação de qualidade e volume é uma tendência (ainda que demore para ser disseminada a todos), como saber o preço por antecipação se a qualidade e o volume não são conhecidos?
Mesmo que fosse possível determinar estes parâmetros, a informação de um valor prévio pela indústria representaria um risco adicional de mercado que estaria sendo assumido por esse elo, já que ela não sabe os volumes e preços de vendas de seus produtos no mês seguinte. O resultado, que já começa a acontecer, é o aviso de um valor básico, que só seria atingido se o mercado desabasse de modo improvável. A esse valor básico inatingível e seguro, devem então ser adicionados os bônus de volume, qualidade, logística, comercial, tornando o preço informado um tanto inócuo.
A Fonterra, que representa quase um terço do comércio internacional e certamente possui diversos elementos para prever oferta, demanda e preços, passa aos seus produtores um preço base no início da safra, que é corrigido eventualmente à medida que o mercado se desenvolve e novos fatores surgem. O produtor vai recebendo mensalmente uma parte dessa previsão, que é completada ao final da estação produtiva com o valor apurado ao longo do ano. Esse exemplo mostra que mesmo a principal cooperativa de lácteos do mundo não tem os elementos para garantir o preço do mês seguinte, ainda que se aproxime desse valor.
Há um aspecto adicional que tem passado batido ao largo das discussões. Hoje, as informações de preços circulam e um produtor pode mudar de cliente se achar que tem alguém na região pagando melhor. Porém, como os preços são em geral retroativos, nada garante que no futuro o comportamento dos agentes de mercado será semelhante, embora seja prática relativamente comum contratos de curto prazo com preço mais alto para atrair o produtor do concorrente. No entanto, caso a informação de preços seja antecipada e geral para determinada região, o incentivo para mudança é mais alto, já que há uma sinalização clara de que alguém pagará melhor no futuro próximo, isto é, no próximo mês. O resultado pode ser um mercado altamente especulado, com produtores indo e vindo, sem que seja possível desenvolver uma relação de cooperação, com um cunho mais de longo prazo, como acreditamos que deve e precisa ocorrer.
Nesse sentido, acredito que a lei esteja na contramão do caminho que começamos a seguir no setor, ainda que carregada de uma boa intenção que é a diminuição da incerteza. Entendo que o caminho seja caracterizado pela aproximação entre os elos e por mecanismos de mercado que farão com que produtor e indústria se alinhem. A DPA, por exemplo, tem um projeto-piloto em Santa Catarina com contrato cujo valor mensal é atrelado a variação do Cepea/USP; a rigor, está "fora da lei", ainda que seus produtores saibam que receberão um valor que flutuará de acordo com mercado. A Associação APLISI também faz contratos dessa maneira. Da mesma forma, os Conseleites representam uma evolução nesse sentido, a ponto de algumas lideranças já ponderarem que empresas que participem de algum Conseleite talvez devessem estar isentas de informar o preço.
Ainda, é interessante que se faça chegar ao produtor outros instrumentos de gestão de risco, como a utilização de mercados futuros de soja e milho, bem como que se estude efetivamente a implantação de mercados futuros de leite no país.
A interferência governamental, nesse sentido, dá uma passo atrás, ainda que seu próposito seja positivo. Há, no entanto, um mérito dessa proposta: o de levantar o fato inegável de que o setor precisa evoluir muito no que se refere a coordenação da cadeia e gestão de riscos na atividade. Nesse sentido, teremos uma enorme oportunidade de conhecer um pouco mais destas tendências no Interleite Brasil 2012, com a palestra do Dr. Andrew Novakovic, dos EUA, que falará sobre mecanismos de mercado para o gerenciamento dos riscos e também sobre mudanças nas políticas públicas para produtores de leite, que deverão embutir ferramentas como o seguro de margem.
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