A primeira colocação que faço é a seguinte: "quer trocar?!" Let´s make a deal, ou seja, vamos fazer um acordo, um combinado: "Você realmente acha isso uma maravilha, uma beleza, correto?! Então acorde a hora que eu acordo e passe um dia comigo, andando do meu lado, fazendo exatamente aquilo que faço. Você vai me ajudando, a decidir a escolher, a resolver os problemas, a... pensar". Claro que este convite acaba nunca se concretizando mas abre margem para a réplica: "mas porque você está dizendo tudo isso...? isso aqui é uma beleza!!", insistem, muitos. Realmente. Avaliar uma fazenda "de fora" é bem diferente e acaba promovendo uma visão, distorcida da realidade.
Vacas leiteiras, por sua natureza comportamental, são animais lentos, preguiçosos. Se movem devagar, não se agitam. Seja no pastejo ou no confinamento, se tudo está certo em termos de manejo, não encontramos grandes movimentações, de fato, numa fazenda de leite. Talvez este seja o motivo do aparente status de "tranquilidade" na atividade. A prática, é muito diferente. Na verdade a cabeça de um produtor de leite quase sempre "anda a mil"... Afinal, são muitas as variáveis a serem controladas. Quando este chega em casa escuta da mulher: nossa mas como você anda estressado!!
Então vamos lá (retratos imaginários cotidianos):
- “vai levantar cedo hoje? Mesmo com esse frio e essa chuva? (e você pensa: puxa é verdade, e a botina vai molhar e congelar o pé).
- Como foi a produção? Aumentou, ok. Caiu, porquê? Vamos correr atrás. Houve sobra no cocho? Faltou comida? Pode ser. E a sala de ração? A batida foi tudo ok? Vamos olhar. Ok! Deixa eu dar uma corrida no silo. Ah, certo. Tá ok, também.
- Alguma vaca entrou no cio? Hum, não sei, deixa eu checar.
- Os bebedouros estão limpos, não faltou água, não é verdade?! O Carlinhos disse que não! Ah, então tá.
- O que foi? Quebrou o cardan? De novo! De qual trator? Do do trato? P.. que p...riu! Foi turno de quem? Ele outra vez!! Já falei para esse cara que não pode ficar fazendo aquela curva com o vagão funcionando. Olha aí, olha aí. Vou ter que rasgar para a cidade agora.
- Queimou a luz? Todo o fundo o barracão tá sem luz?! E como alimentaram as bezerras de manhã?! Deixa eu ligar para o eletricista! Caixa postal, só dá caixa postal. E o gerador? Tá armando chuva pesada para hoje. Ele já arrumou?! Não???! Ele havia dito para mim que tinha passado e deixado em ordem na semana passada... Desgraçado! Eu não pude acompanhar, estava na cidade correndo atrás do pneu traseiro do Massey... Vou ligar para ele de novo agora!! Caixa postal de novo!
- Quem? quem disse que não vem mais? A Dona Celeste?! Como assim?! Não estou entendendo? não vai trabalhar? Já não vem na ordenha agora do almoço?! Mas porquê? Ela avisou alguém? Não, não avisou... certo, e agora? Quem pode substituí-la agora? O Claudio, pode ser? Vamos lá na casa dele? Saiu.. mas foi para cidade justo hoje?! Puxa é verdade, é folga dele, mesmo.
- Onde ela está? Não quer levantar? Comeu bem ontem? E hoje de manhã? Chama o pessoal lá embaixo, vamos tirar ela da cama já. Pega o soro, o cálcio, vamos aplicar para ver se ajuda.
- Quem chegou. O representante da onde? Nossa, mas agora??! Esses caras aparecem sem marcar hora. Tudo bem, avisa lá que eu vou levantar a vaca aqui, já vou atendê-lo, mais uns dez minutos...”
Outrora contei e descrevi essa situação para um colega "de fora", de outro ramo. Um "manager" urbanóide bem sucedido. Ouvi: "você está perdendo tempo". Eu fiz que sim, com a cabeça, mas sem concordar com o pensamento, convidando-o a concluir. "Você, com sua formação deveria pensar, apenas. Trabalhar estrategicamente, avaliando os pontos fracos e fortes do seu business". "Tá certo.." (pensei). Completou ainda: "você não pode fazer isso, fica muito caro... precisa arrumar um bom gerente, um cara que faça isso tudo por você". Como se estivéssemos em tempos de exportação e mão-de-obra e grande facilidade para encontrar, justamente, um "gerente produção de leite". Achei melhor concordar, nem dar início a discussão ou tentar explicar: "uma fazenda de leite". Como diria minha amiga Marlizi ("é pácabá!!").
Concordo que, analisando de modo frio, talvez acabamos nos envolvendo em nossos negócios de tal forma que "ficamos cegos" e passamos a pecar em muitos aspectos. No entanto, não é fácil. Fico assustado com o que vejo por aí. Estando presente, constantemente e diariamente, resolvendo, correndo e procurando decidir da melhor forma, acredito que falho, tenho falhado, e muito.
Quando vou a encontros do setor ainda me apresentam: "fulano de tal, produtor de leite, também". Conversa vai, conversa vem, queixas, reclamações; a atividade é difícil, tudo é muito complicado e tal, então não deixo de fazer a perguntar chave: "mas o senhor mora na propridade ou vai lá todo dia?" Resposta: "ah, não! eu passo lá nos finais de semana" ou "vou lá pelo menos 3 dias na semana". Fico calado e vem o seguinte pensamento (sem menosprezo): "o Sr. pode ser qualquer coisa, até um grande empresário rural, mas não pode ser chamado de: produtor". Produtor de leite (com "P" maiúsculo) é outra coisa...