Os parâmetros de qualidade do leite (CCS, CBT, gordura e proteína) influenciam de várias formas no rendimentos dos produtos lácteos na indústria. Confira no artigo!
O setor lácteo no Brasil tem passado por mudanças significativas nos últimos anos e, para sua consolidação, são necessárias medidas focadas em minimizar a vulnerabilidade da indústria de laticínios e dos produtores de leite.
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Um dos maiores desafios do setor no Brasil atualmente é a busca por qualidade do leite no campo, legislada pelas Instruções Normativas 76 e 77, objetivando elevar a qualidade da matéria-prima e se assemelhar padrões externos, possibilitando uma maior abertura para exportações. Algumas cadeias como a da soja e do frango, que, embora estejam passando por um momento conturbado, utilizam essa estratégia, garantindo a segurança do setor.
Dentre os parâmetros estipulados pelas Instruções Normativas, podemos destacar a Contagem Bacteriana Total (CBT), que visa determinar o nível de contaminação do leite com microrganismos. Alguns destes microrganismos fazem parte da biota natural do úbere dos animais, outros são potencializados pelas más condições de higiene na ordenha, instalações e equipamentos, e outros podem se multiplicar devido às condições inadequadas de refrigeração e transporte do leite. A microbiota presente é bastante complexa e dentre elas podemos destacar: bactérias láticas, psicrotróficas, esporuladas, coliformes e patogênicas.
Os microrganismos classificados como patogênicos podem apresentar grande risco à saúde do consumidor ao ingerir leite in natura, ou que tenha passado por processo de pasteurização ineficiente, podendo por consequência, levar a contaminação aos derivados. Grande parte dos consumidores de lácteos são crianças, que ainda estão com seus sistemas imunológicos em formação. Por isso, uma atenção especial deve ser dada à segurança deste alimento, que também pode chegar a transmitir zoonoses, como a brucelose.
Em relação à presença de bactérias láticas, quando detectadas em excesso, deixam de ser benéficas e passam a ter efeito deletério. Ao metabolizarem a lactose e produzirem ácido lático, o pH do leite é reduzido, provocando a precipitação das caseínas, interferindo na coagulação e nas características sensoriais e principalmente na termorresistência do leite, causando implicações no processo de pasteurização realizado pela indústria.
Com as bactérias psicrotróficas a problemática se intensifica, uma vez que a multiplicação pode ocorrer em temperaturas mais baixas. Deve-se ter cuidado redobrado nos tanques de expansão utilizados no campo para abrigar a matéria-prima, caso contrário, a vida de prateleira dos lácteos pode ser reduzida significativamente. Essas bactérias também são capazes de produzir enzimas (lipases e proteases) termorresistentes, causando certa degradação do material proteico e lipídico dos produtos lácteos. As proteases agem principalmente na β-caseína e k-caseína, resultando em sabor amargo e no aumento da viscosidade do leite. Em relação às lipases, quando hidrolisam a ligação éster dos triglicerídeos, são liberados ácidos graxos de baixo peso molecular, como o butírico e capróico, originando a rancificação hidrolítica, causando alteração nas características sensórias e também físico-químicas do leite e derivados.
A presença de coliformes (bactérias fecais), é um indicativo de condições inadequadas de ordenha. Estes agentes metabolizam a lactose e produzem substâncias como o ácido lático, que juntamente com as bactérias láticas acidificam a leite, interferindo no processo de coagulação do mesmo.
O dióxido de carbono, neste contexto, assume importância principalmente na fabricação de queijos, onde o CO2 fica armazenado na massa, formando pequenas olhaduras, ou o estufamento precoce.
Alguns dos microrganismos podem ter certa resistência à pasteurização, como os enterococos, que também se desenvolvem em condições de atividade de água mais reduzida, interferindo em queijos de longa maturação, competindo por substratos com demais microrganismos.
Os esporulados, como do gênero Bacillus e Clostridium, são resistentes à altas temperaturas, como a de pasteurização e UHT. Em queijos de maturação mais longa podem produzir estufamento tardio, mais presente em queijos duros e semi-duros.
Logo, elevados níveis de CBT influenciam diretamente na qualidade do leite fluido e de seus derivados. Seja pela produção excessiva de ácido lático, o qual interfere na estabilidade da caseína, no pH e acidez indesejada, impactando a coagulação e formação de grumos e na estabilidade térmica do leite. Na proteólise e lipólise, processos que interferem também nas propriedades físicas, químicas e sensoriais do leite e derivados, ocorrem a rancificação de gorduras, formação de precipitados indesejados, aumento da viscosidade do leite e interferência na sinérese.
A competição pelos substratos, principalmente pela lactose, também resulta em alterações, agindo diretamente sobre produtos fermentados, onde são adicionados culturas lácticas específicas.
A formação de olhaduras indesejadas e estufamento em queijos, além de serem responsáveis por efeitos negativos no leite fluído e derivados, pode causar danos à saúde humana pela possível presença de microrganismos patogênicos.
Outra variável importante referente a qualidade do leite é a Contagem de Células Somáticas (CCS), diretamente relacionada com a sanidade animal e a situação do sistema imunológico dos mesmos. A mastite, inflamação que acomete o aparelho mamário dos animais, é uma das principais causas de CCS elevada, acarretando em quedas na produção e interferindo nas características físico-químicas do leite, e consequentemente nos processos de beneficiamento da matéria-prima.
Podemos afirmar que este quadro infeccioso na glândula mamária interfere na permeabilidade do parênquima secretor, fazendo com que uma menor quantidade de nutrientes cheguem aos alvéolos para secreção de leite, refletindo na menor produção de leite e consequentemente na redução de sólidos, notadamente na caseína e lactose, componentes importantes para fabricação de derivados lácteos. O leite mastístico tem diminuição na caseína, aumento de ácidos graxos livres, alterações nas quantidades de minerais do leite e aumento da atividade proteolítica e lipolítica no leite.
Na indústria, o processamento do queijo é afetado principalmente devido ao aumento do tempo de coagulação do leite, diminuição da firmeza do coágulo, maior perda de componentes do leite para o soro, menor rendimento, defeitos de textura, alterações de características organolépticas, menor acidez e maior perda de gordura e proteína solúvel através do soro.
Na fabricação de iogurte, o uso de leite com alta CCS determina impacto negativo sobre o crescimento das culturas lácteas, o que pode afetar o processamento e afetar a qualidade final. O leite UHT elaborado a partir da matéria-prima com alta CCS, é mais susceptível a geleificar mais rápido que o leite com CCS controlada, interferindo nas características sensoriais.
O aumento da proteólise do leite durante o armazenamento pode resultar em acúmulo de pequenos peptídeos, causando o aparecimento de sabor amargo. Ocorre interferência na termorresistência em produtos como leite condensado e doce de leite, devido a alterações nos minerais, fosfatos e citratos.
Na manteiga, observa-se o aumento do processo de rancificação, e no leite em pó há interferência nas características sensoriais.
A mastite também é a grande responsável pela presença de antibióticos. Isto é extremamente importante, pois a presença do residual de medicamentos pode levar à seleção de bactérias resistentes, um problema de saúde pública. Na indústria contribui negativamente no desenvolvimento de culturas láticas em produtos que necessitam deste processo, como queijos, iogurtes e demais bebidas fermentadas
Além dos parâmetros microbiológicos, as IN 76 e 77 estabelecem padrões mínimos de gordura e proteína, que influenciam diretamente na qualidade, rendimento e características sensoriais, visto que estes macronutrients são indispensáveis para a fabricação de queijo, cremes e manteigas.
Devemos considerar também índices estabelecidos para densidade e crioscopia, que podem estar relacionados com adulterações do leite, como por exemplo a adição de água e outros agentes que comprometem diretamente a qualidade dos lácteos.
Outro fator que merece destaque é a relação entre produtor e indústria, que deve ser transparente e estável, de modo a esclarecer as incertezas e facilitar a tomada de decisões. O pagamento adicional por qualidade ao produtor deve funcionar como estímulo financeiro e é fundamental para incentivar melhorias na qualidade do leite produzido, ao mesmo tempo em que colabora de maneira efetiva para que o setor lácteo possa atingir seus objetivos, pela fidelização de produtores eficientes e na ampliação de mercados.
Rosa Maira Tonet, Doutoranda em Zootecnia
Ferenc István Bankuti, Professor
Julio Cesar Damasceno, Professor
Programa de Pós-graduação em Zootecnia/UEM