O primeiro ponto que merece destaque é o avanço do multilateralismo comercial, que corria risco de forte retrocesso ou mesmo perecimento se o resultado de Genebra repetisse o fracasso da reunião ministerial de Cancún, em setembro de 2003. O acordo fecha o primeiro ciclo dos trabalhos e estabelece as bases para a introdução de metas numéricas que darão o formato final do acordo. O segundo ponto de destaque é a presença do Brasil como player central e ativo nas negociações.
Genebra consolida uma nova dinâmica nas negociações, em que o tradicional "consenso" do Quad - EUA, União Européia (UE), Canadá e Japão - é substituído por um novo formato de harmonizações sucessivas de posições de países-chaves desenvolvidos e em desenvolvimento, que lideram as principais posições e coalizões. Os resultados indicam que, ao menos até o momento, a estratégia do G-20 posicionou o Brasil como um dos líderes incontestáveis do processo e trouxe resultados satisfatórios. Internamente, aprendemos a importância de juntar esforços dos diferentes ministérios envolvidos, setor privado e pesquisa aplicada para lutar pela redução das assimetrias nas regras e disciplinas para a agricultura.
No entanto, se o primeiro tempo terminou com bons resultados, ainda não dá para cantar vitória. Os temas mais sensíveis para o Brasil só serão definidos no segundo tempo, a partir dos números que serão introduzidos no documento. Certamente, conseguimos evitar um mau acordo, como era o caso em Cancún, mas ainda estamos longe de um bom acordo. Para melhor entender o desafio que se coloca à frente é preciso analisar os principais resultados do documento.
Competição das exportações agrícolas: de longe a área onde mais se avançou, o texto afirma categoricamente "que os membros estabelecerão modalidades detalhadas que garantam a eliminação em paralelo de todas as formas de subsídios à exportação e medidas com efeito equivalente em uma data a ser negociada". Decretam-se, assim, em data a ser acordada, o fim dos subsídios à exportação e avanços efetivos no disciplinamento dos créditos à exportação, das práticas distorcivas usadas por empresas estatais de comércio e do abuso dos programas de ajuda alimentar.
Apoio interno aos agricultores: aqui há boas e más notícias. A má notícia é a reforma da chamada "caixa azul", um mecanismo que permite acomodar alguns instrumentos de política agrícola criados pela Lei Agrícola 2002 dos EUA (principalmente os pagamentos contracíclicos) e pela tímida reforma da Política Agrícola Comum da UE, ocorrida em 2003 e 2004. A primeira boa notícia é que o texto determina prioridades ambiciosas e aceleradas para o problema dos subsídios ao algodão, que de fato deve avançar mais que outros produtos por conta da pressão dos países africanos e das ONGs e, no futuro próximo, pelos resultados finais do contencioso comandado pelo Brasil contra os EUA. Além disso, os painéis do algodão e do açúcar não serão afetados pelas decisões da semana passada e correrão de forma independente. Outra boa notícia é que conseguimos emplacar um corte global no teto de subsídios distorcivos que incidirá sobre a soma da caixa amarela, caixa azul e de minimis (ver tabela abaixo). Assim, já no primeiro ano haverá uma redução de 20% no teto de subsídios distorcivos, sendo que o nível do corte global deve transformar-se num dos temas mais quentes da próxima etapa das negociações.
Trata-se do "fenômeno do bode" na sua perfeição: a nova caixa azul introduz um belo bode cheiroso no ambiente e o compromisso inicial empurra a traseira do animal para fora da sala. Como o corte global só será definido na próxima etapa, pode-se fazer a analogia que o bode empacou na porta e só sairá após intensas negociações. Mas quem conhece a fundo o tema sabe que os indisciplinados bodes agrícolas costumam pastar na sala verde da OMC desde 1947, e que pela primeira vez surgem uns poucos países que querem moral e legitimamente enxotá-los para fora.
Acesso a mercados agrícolas: esse é o tema que permaneceu mais vago e, portanto, demandará enormes esforços suplementares de negociação. A única boa notícia é a proposta de que as tarifas mais elevadas sofrerão cortes mais profundos. A má notícia é a flexibilidade que será criada para certos produtos sensíveis, cujo acesso se dará por meio de cortes tarifários menores e cotas de importação. A definição exata dos produtos sensíveis fica para a próxima etapa, assim como o desmonte de um punhado de armadilhas e indefinições de última hora.
Acesso a mercados de bens industriais: nessa área o texto original de Cancún fixava metas ambiciosas de consolidação de tarifas, fórmula não-linear de desgravação, acordos setoriais de redução ou eliminação de tarifas, tratamento de preferências e outras áreas nas quais o Brasil é majoritariamente defensivo. O texto final, no entanto, mantém sob negociação a maioria dos pontos sensíveis para o Brasil.
Em suma, o programa de trabalho de Doha representa um avanço nas negociações e é certamente muito mais balanceado que o texto discutido em Cancún. O Brasil ocupa, hoje, posição de liderança nas negociações, tem enormes responsabilidades e um papel crucial de organização interna e coordenação de países a cumprir na próxima etapa das negociações. Há muitas armadilhas e ambigüidades no documento e não é hora de cantar vitória, e sim de concentrar esforços para a segunda etapa, principalmente em apoio interno e acesso a mercados. O grande desafio é obter o "enforcement" de reformas que vão além do status quo das políticas agrícolas aplicadas pelos países, cortando na carne, e não na água.