A nata é uma camada rica em gordura, que se forma na superfície do leite devido à separação macroscópica dos lipídios presentes no leite (Figura 1). Para entendermos o porquê dessa separação macroscópica, é necessário entender o que é o leite em escala microscópica.
Figura 1 - Representação da separação da gordura do leite, formando a nata.
Fonte: autoras.
O leite pode ser definido como um sistema coloidal, ou seja, é composto por fases dispersas em uma fase contínua. Nesse caso, as fases dispersas são os glóbulos de gordura, as micelas de caseína e cada uma das proteínas do soro, enquanto a fase contínua do leite é composta por uma solução aquosa contendo lactose, sais minerais e vitaminas hidrossolúveis (Figura 2).
Figura 2 – Representação esquemática do sistema coloidal leite.
Fonte: Hudson et al., 2022.
É muito importante ressaltar que a nata não é formada exclusivamente pela gordura do leite, ela contém também os outros constituintes do sistema (água, lactose, sais, vitaminas e proteínas), entretanto, a concentração de gordura é consideravelmente maior na nata do que no leite. A formação da nata ocorre quando há a desestabilização desse sistema coloidal, levando à aglomeração e à consequente separação macroscópica da fase gordurosa do leite.
A estabilidade do sistema coloidal depende de vários fatores, sendo eles termodinâmicos e cinéticos. Desta forma, há diferentes métodos de desestabilização do sistema, sendo os principais relacionados ao tamanho do glóbulo de gordura, à composição da membrana do glóbulo de gordura, à variação de temperatura, à acidez, e à agitação do sistema.
Vamos entender como é o glóbulo de gordura do leite. O glóbulo de gordura do leite é composto, em sua maioria, por triglicerídeos que estão localizados no interior da estrutura, e uma membrana formada, principalmente, por fosfolipídios, lipoproteínas e colesterol (Figura 3).
Figura 3 – Representação esquemática da membrana do glóbulo de gordura do leite.
Fonte: autoras.
O que mantém os glóbulos de gordura suspensos no leite (não separados macroscopicamente) é a ação tensoativa das moléculas presentes na membrana do glóbulo de gordura do leite (MGGL). Entretanto, como o sistema não é termodinamicamente estável, após algum tempo, alguns fenômenos de agregação podem ocorrer entre os glóbulos, sendo os principais, a coalescência e a maturação de Ostwald (Figura 4).
Figura 4 – Representação esquemática da coalescência de glóbulos de gordura e da maturação de Ostwald.
Fonte: autoras.
Uma vez que os glóbulos de gordura aumentam de tamanho, eles ficam mais susceptíveis a um fenômeno cinético conhecido como cremeação. Esta etapa é regida pela Lei de Stokes (Eq. 1), uma relação matemática que descreve o comportamento das partículas em suspensão em um fluido viscoso. Ela estabelece que a velocidade de ascensão ou sedimentação de uma partícula é diretamente proporcional ao diâmetro da partícula e à diferença de densidade entre a partícula e o fluido, e inversamente proporcional à viscosidade do fluido (MA; BARBANO, 2000).
No caso da formação da nata do leite, a lei de Stokes indica que os glóbulos de gordura tendem a se mover para a superfície devido à diferença de densidade em relação à fase contínua do leite, havendo a formação de uma camada gordurosa na superfície do leite.
Observando a equação de Stokes, é possível perceber que um dos principais fatores que influenciam na cremeação (formação de nata), além da diferença de densidade entre a fase gordurosa e a fase contínua, é o diâmetro do glóbulo de gordura. Quanto maior o glóbulo, maior será a velocidade de separação macroscópica das partículas de gordura ( e são diretamente proporcionais).
O glóbulo de gordura pode ter seu tamanho aumentado quando passa por mecanismos de desestabilização coloidal, como a coalescência, em que duas partículas colidem e se fundem, e a maturação de Ostwald, em que há transferência de moléculas das partículas de gordura menores para as maiores via difusão molecular, como foi representado na Figura 4.
Portanto, mecanismos de desestabilização coloidal que ocorrem no leite cru são os principais responsáveis pela separação macroscópica da gordura no leite. A ocorrência desses mecanismos pode ser acelerada por fatores como agitação e aquecimento do leite, por favorecerem a difusão molecular e consequente colisão entre os glóbulos de gordura.
Quando o leite é aquecido, por exemplo, há fornecimento de energia térmica, a qual se converte em energia cinética para as moléculas e partículas que compõem o leite e, assim, com maior energia cinética média, os glóbulos de gordura coalescem a uma maior taxa, e a maturação de Ostwald é também favorecida pela maior difusão molecular. Além disso, o aquecimento reduz a viscosidade da fase contínua do leite, o que também favorece os fenômenos de difusão nesta fase e a colisão entre os glóbulos, aumentando a velocidade de separação da gordura no leite (relação entre viscosidade e velocidade de separação na equação de Stokes é inversamente proporcional).
Para muitos fins, a formação da nata é indesejável e sua ocorrência deve ser evitada durante a vida de prateleira de produtos como, por exemplo, leite pasteurizado e leite UHT. Mas, então, como é possível evitar a separação da nata?
Como o leite é um sistema que não se encontra em equilíbrio termodinâmico, fenômenos espontâneos de desestabilização coloidal sempre ocorrerão. O que se pode fazer é retardar o acontecimento desses fenômenos e, assim, fazer com que a nata não se separe do leite por certo período de tempo.
A homogeneização do leite a altas pressões é o procedimento adotado para retardar a separação macroscópica da gordura no leite por reduzir e uniformizar o tamanho dos glóbulos de gordura, retardando a ocorrência da maturação de Ostwald. No entanto, essa redução de tamanho é acompanhada por um aumento na área interfacial total dos glóbulos e, assim, a MGGL passa a não ser suficiente para recobrir toda a área interfacial adicional dos glóbulos homogeneizados (JUKKOLA; ROJAS, 2017). O processo de redução do tamanho dos glóbulos de gordura pela homogeneização e consequente aumento da área interfacial total está esquematizado na Figura 5(a).
Figura 5 - Representação esquemática (a) da redução do tamanho dos glóbulos de gordura do leite pelo processo de homogeneização com consequente aumento da área interfacial total (x’ > x), e (b) da membrana do glóbulo de gordura após a homogeneização (glóbulo do canto superior esquerdo representa a membrana imediatamente após a homogeneização e o glóbulo do canto inferior direito representa a membrana após adsorção de proteínas do leite).
Fonte: autoras.
A presença de porções não recobertas dos glóbulos de gordura aumenta a tensão interfacial do sistema e, assim, uma nova agregação dos glóbulos seria iniciada para reduzir área interfacial total; no entanto, por possuírem caráter surfactante, micelas de caseína adsorvem na interface do glóbulo e se tornam parte da MGGL (Figura 5(b)), retardando a ocorrência de nova agregação dos glóbulos. A adsorção de micelas de caseína na MGGL contribui com a estabilidade cinética dos glóbulos de gordura por repulsão estérica, repulsão eletrostática (por possuírem carga elétrica líquida negativa no pH do leite) e por reduzir da tensão interfacial. As proteínas do soro também adsorvem na interface dos glóbulos após a homogeneização e contribuem para o aumento da estabilidade cinética, mas em proporções menores que as micelas de caseína (SINGH; GALLIER, 2017).
Compreender os processos de formação da nata e os mecanismos de desestabilização do sistema coloidal leite é essencial para controlar a separação da gordura e garantir a qualidade dos produtos lácteos durante a sua vida útil. A homogeneização e a presença das micelas de caseína desempenham um papel importante nesse sentido.
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Referências
HUDSON, E. A.; REZENDE, J. P.; PIRES, A.C.S. Por que o leite é branco? Milkpoint, 2022. Disponível em: https://www.milkpoint.com.br/colunas/thermaufv/a-importancia-da-quimica-do-leite-e-derivados-230878/. Acesso em: 12 de junho de 2023.
JUKKOLA, A.; ROJAS, O. J. Milk fat globules and associated membranes: Colloidal properties and processing effects. Advances in Colloid and Interface Science. Elsevier, 2017.
MA, Y.; BARBANO, D. M. Gravity separation of raw bovine milk: Fat globule size distribution and fat content of milk fractions. Journal of Dairy Science, v. 83, n. 8, p. 1719–1727, 2000.
SINGH, H., & GALLIER, S. Nature's complex emulsion: The fat globules of milk. Food Hydrocolloids, 68, 81-89, 2017.