Sentir dificuldades em entender, avaliar e lidar com essas tecnologias é normal, desde que busquemos nos atualizar, mas já indica que algo está em descompasso. Por sorte elas são meios e não o fim. O que me preocupa, no entanto, é a incompreensão por parte de uma assustadora proporção de profissionais, tanto de nível médio como superior, de qual é o fim, qual o propósito deles, onde e como são importantes. Dentre os que teem isso bem claro, uma pequeníssima fração consegue desenvolver um trabalho de resultado junto aos produtores, às vezes por deficiências e distorções das organizações a que pertencem, mas muito frequentemente, também, por suas próprias limitações. O que está por trás disso? Onde erramos e o que precisamos fazer para corrigir rumos a fim de alavancarmos o desenvolvimento da cadeia leite e de todos os envolvidos?
A busca cega por maior produtividade
Os profissionais tradicionais das ciências agrárias que estão no mercado brasileiro hoje (agrônomos, veterinários, zootecnistas, técnicos agrícolas ou em agropecuária) foram programados como “agentes de aumento de produtividade”, em especial dos fatores terra e animal.
No Brasil este processo teve início no final do império, com a criação da primeira escola de agronomia e veterinária (Pelotas, 1883); fortaleceu-se nos anos 1940, durante a II Guerra Mundial, com a criação de institutos agronômicos do Ministério da Agricultura assim como de escolas agrícolas; e recebeu importante qualificação científica na década de 60, ao enviar professores e pesquisadores em grande número para mestrados e doutorados nos EUA. Grandes avanços em formação e pesquisa focada em aumento de produtividade.
A Operação Tatu dos anos 60 é talvez o ápice de um período onde não se questionava custos, nem eficiência econômica, nem impacto ambiental, muito menos saúde dos envolvidos (era o início da chamada Revolução Verde). Nos anos 70 iniciaram-se questionamentos (p.ex. erosão e compactação do solo, organoclorados, erosão genética etc.). Mesmo assim, a marcha por produtividade continuou, tanto que nos anos 80, muito crédito e estímulos à agricultura de exportação foram despejados no país (“Plante que o João garante” é um exemplo bem conhecido da época do presidente João Batista Figueiredo).
Qual é o problema da produtividade?
Inicialmente, nenhum. Inclusive, ainda hoje, um dos pontos fracos da produção de leite no Brasil é a baixa produtividade, não só da vaca, mas também da terra, da mão-de-obra e, inclusive, do capital. A produtividade-problema é, contudo, a produtividade a qualquer custo, seja este financeiro, ambiental ou humano. O produtor não vive de produtividade, ele vive de RESULTADO ECONÔMICO que é PRODUÇÃO x PREÇO – CUSTOS. Aumentar produtividade da vaca e, consequentemente, a produção da propriedade, do município, do estado e do país são sempre interessantes para quem? Adivinharam! Para a arrecadação de impostos e para as estatísticas do IBGE. No entanto, é possível inundarmos este país de leite, gerando muitos impostos e ótimos números macroeconômicos para os governos comemorarem, sem que o produtor ganhe coisa alguma, ou até perca muito. Basta aumentar produtividade cegamente como se aprendeu e ainda se aprende nas disciplinas técnicas dos cursos tradicionais e à custa de endividamento sem critérios, como vem acontecendo também ao produtor de leite.
Se por 130 anos temos investido tanto em formação técnico-científica para o aumento de produtividade e, se agora, finalmente, o produtor de leite tem crédito abundante e mais barato, por que nossas vacas e demais recursos continuam com produtividades dos anos 1920? Eu lhes digo por quê:
1) Porque só existe aumento significativo e continuado de produtividade onde há ganhos verdadeiros e perceptíveis em conseguir tal aumento, mas nossa formação profissional agrícola predominante nunca esteve “condicionada a aumentar de forma a ganhar” e, sim, “voltada a aumentar na esperança de ganhar”.
2) Porque crédito fácil, abundante e barato é frequentemente aplicado em recursos improdutivos, supérfluos ou superdimensionados, isso quando não são totalmente desviados. “Adubo papel”, trator novo e pesado; camionete nova, imponente e da moda, nenhum deles produz mais leite ou leite de maior qualidade com menor custo por litro.
Máxima eficiência econômica (MEE)
Este é o propósito! É a isto que deveriam se dedicar os profissionais que estão a serviço do produtor ou do desenvolvimento da cadeia produtiva do leite, sejam eles membros da assistência técnica, da extensão rural, do fornecimento de insumos, da consultoria e assessoria, da pesquisa ou de políticas para o setor. Na sequência e como requisito para atingi-lo, saber que o máximo resultado econômico tem que ser buscado de forma permanente, portanto, com visão de longo prazo, de preservação dos recursos naturais (por necessidade, não lei) e de bem estar dos animais e das pessoas. Os profissionais de ciências agrárias são obrigados a levar este conjunto todo em consideração e na ordem acima. Biólogos, sociólogos e geógrafos, entre outros, normalmente não pensam desta forma, mas note que a missão deles é distinta.
O tema MEE é visto por todos, mas em uma única aula de economia rural, normalmente com equações que poucos entendem, e logo abandonado. Um que outro professor das áreas de produção demonstra saber sua importância, mas na prática nunca mais se fala no assunto. A preocupação ressurge em “análise de viabilidade econômica de projetos” (tema que o governo e os bancos deveriam reaprender antes de conceder certos financiamentos), mas esta é vista apenas em agronomia (raramente nos demais cursos citados) e, mesmo assim, sem que os alunos percebam sua enorme importância.
Vejamos um exemplo. Todos aprendem que quanto mais uma vaca produz, mais o produtor ganha. Também que ela precisa de conforto e que este depende de instalações. Seguros dessa “verdade” recomendam uma série de práticas baseadas em muitos e bons estudos científicos que demonstraram que aquelas recomendações resultam em mais leite. E o fato é que normalmente resultam. Só que poucas dessas práticas foram além do resultado físico na pesquisa. Outras são muito sensíveis às condições da propriedade e, se o técnico não enxergar o todo, corre o risco de errar.
Exemplo típico é a introdução de uma terceira ordenha, que é técnica e economicamente justificável apenas em confinamentos, para lotes de alta produção. Um desastre onde as vacas pastejam e um terror para as pessoas que a realizam, seja qual for o sistema. No sistema intensivo a pasto com suplementação (que tenho chamado de SIPS), com indivíduos que atingem até 70L/dia de pico e média de rebanho de 34L, a terceira ordenha é tecnicamente desnecessária e economicamente inviável, mas está nos livros textos para este tipo de vaca. Esquecem-se ou ignoram os técnicos que a recomendação advém de estudos em confinamento total, tipo free-stall. Muda o sistema, mudam as verdades, tem que mudar as recomendações! Hoje, 10% dos produtores neozelandeses, por exemplo, utilizam uma única ordenha diária, amparada na pesquisa, com mais qualidade de vida, ganhando mais dinheiro, judiando menos das vacas e inclusive as selecionam para esta condição. Mas é para o sistema deles! Se um entusiasta vier de lá recomendado isso aqui para o nosso tipo de vaca e sistemas de produção, vai, na melhor das hipóteses, fazer o produtor perder muito dinheiro e, mais provavelmente, ainda destruir com o rebanho (mastites, perda de quartos, gastos extras em tratamentos, perda de leite etc.). Mesmo usando a vaca de lá, no Brasil as funções de produção (quantidades, custos e resultados) são outras e bem mais favoráveis para nós. Aqui, uma ordenha é perder dinheiro, como o é com três fora do confinamento.
A figura abaixo é um indicador de que não podemos sustentar vacas de concurso leiteiro como padrão médio de rebanho se o nosso produto é leite. No sistema intensivo a pasto com suplementação (SIPS-Beskow), utilizando a medida popular de litros por vaca em lactação por dia (L/VL/dia), tem-se a máxima eficiência econômica quando a média de um rebanho Holandês (aplique-se 70% para o Jersey) permanece entre 32-34L/VL/dia, com 15-17L/dia vindos de pasto de alta energia e proteína e o restante de sua interação com 8-9kg em matéria natural (MN) de concentrado, com 13-16% de proteína bruta (PB) e alta energia.
Veja que há grande vantagem econômica em aumentar a média até 32L, depois se estabiliza o retorno e, de 34L para frente, cai. Neste sistema, se o produto é leite (não genética/novilhas), 15L de média dão igual resultado que 60L, e ganha muito mais dinheiro quem ficar no meio (note que em outros sistemas, esta função muda).
Este tipo de conhecimento e informação separa sucesso de insucesso e não o dominamos por uma questão de formação, somado à insistência brasileira em achar que os ganhos necessários em margem teem sempre que vir de preços, subsídios e protecionismo. O dia que mais pessoas despertarem para a riqueza que aguarda ser colhida com o que já se tem (com redução de custo e com endividamento zero!) teremos uma mudança de 180 graus nos discursos e demandas. Clamaremos por mais e melhores técnicos e assistência de qualidade, e estes por mais produtores com o novo perfil e esqueceremos de quando exigíamos proteções contra os “vilões” de outros países.
Operamos sistemas
A propriedade rural é um sistema complexo formado por vários subsistemas e tudo está interligado. Quem não entende isso deveria urgentemente buscar uma reciclagem (nossa formação é permanente). Os entes de ensino que não incorporaram pensamento sistêmico e dinâmica de sistemas estão atrasados e precisam se renovar, se quiserem que seus egressos tenham alguma esperança de sucesso na carreira daqui para frente.
A imagem abaixo ilustra nossa visão dominante: uma relação simples, unifatorial, desconexa e linear entre problema e solução. A ferramenta para lidar com isso? Uma mera alavanca que aumenta ou diminui a dose, seja ela de fertilizante, antibiótico, lotação, número de ordenhas, concentração de detergente, quantidade de ração etc., desde que seja um de cada vez! É o “quanto mais você adiciona, mais você produz”.
Só que, na realidade, as coisas não funcionam assim. Os problemas são multifatoriais (vários fatores causais interagindo ao mesmo tempo), os efeitos possuem um retardo (lag) e as alterações que causamos mudam o problema original proporcionalmente a nossa intervenção, ou seja, as respostas não são lineares. A ferramenta? Conhecimento mínimo de dinâmica de sistemas e uma “mesa digital” como a que vemos abaixo, que nos permita mexer numa série de variáveis ao mesmo tempo, saber em que posição deixamos cada chave, mostrar ao produtor como funciona, entregar a ele a responsabilidade de gerenciar as chaves que lhe tocam e, juntos, observar os resultados enquanto estão se desenvolvendo, para corrigir-se rumos ao longo do processo e cedo.
Parece complicado? É complicado! Mas operar uma aeronave moderna em congestionado tráfego aéreo, de forma econômica e segura, também é complicado, mas o fazemos com naturalidade, eficiência e precisão. Como? Com conhecimento, tecnologia, formação, treinamento permanente e muita cobrança. Na imagem abaixo coloquei um aluno do ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) em terra e uma dupla de piloto e co-piloto voando. A foto da direita representa nosso ensino e pesquisa, sua visão dos desafios e sua interpretação dos problemas reais.
Na imagem da esquerda estão quem precisa e aplica o conhecimento e as tecnologias gerados na pesquisa. São também os que assumem riscos: produtor (o piloto, da esq.) e seu técnico (o co-piloto, da dir.). A interação entre estes entes no céu e destes com os de terra é visceral e, quando falha, pessoas morrem e, ao morrerem, corrige-se rumos imediatamente.
Da mesma forma que a tripulação lida com sistemas hidráulico, elétrico e pneumático, computador de bordo, piloto automático, velocidade, altitude, configuração de flapes, comunicação, tráfego, regras de voo, legislação, conforto de passageiros, horário de chegada, economia de combustível etc., e tudo isso ao mesmo tempo, produtor e técnico também lidam. Só que em aeronáutica eles teem formação para trabalhar assim, muito treinamento e um objetivo comum que os faz trabalhar verdadeiramente juntos. Nós, além de interagirmos muito mal, ainda temos em mãos sistemas muito mais complexos, acreditem: muito mais complexos!
Está na hora de nos entendermos e trabalharmos juntos. No mundo moderno, o produtor não chegará a lugar algum sem seu “co-piloto”, e ambos não serão coisa alguma sem a geração de conhecimento local, formação e constante atualização profissional. As escolas e universidades, por sua vez, perderão sentido se seguirem desvinculadas da ponta como estão hoje, promovendo e cobrando “número de artigos publicados”, gerando conhecimento que não chega ao produtor graças ao seu isolamento e ao apagão da extensão rural que vivemos, cortando-se com isso a retroalimentação dos reais problemas que o campo enfrenta.
O perfil do técnico que o século XXI requer
Existem profissionais com o perfil que descrevo disponíveis hoje? Existem, só que são poucos, então produtor e empregadores teem que buscá-los com atenção. Como reconhecê-lo?
- Ele busca sempre se atualizar. Compra livros, assina revistas/newsletters/boletins, participa de palestras e treinamentos e, nestes, senta nas fileiras da frente, faz perguntas e não concorda com tudo que lhe é apresentado.
- Usa celular, responde a e-mails e domina ferramentas computacionais básicas.
- É pessoa correta, olha nos olhos e sabe escutar. Analisa, avalia e pergunta antes de se pronunciar.
- Admite não saber tudo e, quando não sabe, diz “não sei, mas vou atrás”.
- Ao longo de sua formação suas médias finais giraram entre 7,5 e 8,5, indicando dedicação equilibrada.
- Gosta e tem orgulho do que faz, mas nunca em excesso. Sabe que os problemas são complexos, mas ao explicar e orientar, simplifica ao invés de complicar.
- Respeita o produtor e seus valores (nem todo mundo busca a mesma coisa), mas sabe ser incisivo quando necessário, porque só age quando há objetivos claros a perseguir.
- Não busca criar dependência. Sabe que pode e deve ensinar o que sabe, desde que para as pessoas certas.
- Não vacila frente a dificuldades, pois tem muita energia derivada de sua vontade de fazer a diferença.
- Sabe corrigir rumos quando necessário, pois aprende constantemente com seus erros, buscando ser cada vez melhor.
- Como percebem, aquele que pegou o canudo e se considerou feito para o resto da vida, morreu profissionalmente no dia que pensou assim.
Como vejo daqui para frente
Somos ricos, sentados sobre uma riqueza imensurável, hoje trancada unicamente pelas pessoas. Se isso não fosse verdade seria impossível dobrar produtividade e reduzir custo por litro em 25% dentro de 30 dias e extrair de 300-700% mais renda líquida em 7 a 12 meses, com a mesma terra e as mesmas vacas. Isso está sendo feito e a toda hora surgem experiências de sucesso nesse sentido em nosso país. Acreditem: produtividade e renda no leite são probleminhas fáceis e rápidos de resolver, desde que com as pessoas certas (técnicos e produtores). Mais lentos e muito mais difíceis são CCS, sólidos, reprodução, longevidade, algumas enfermidades, impacto ambiental e mão-de-obra, mas quando se tem resultado econômico, tudo se torna mais fácil e o que era impossível se transforma em oportunidades.
Percebo que estamos num ponto de inflexão importante e que, felizmente, nossos atrasos são, hoje, vantagens comparativas no mercado mundial. Temos a crescer em meses o que eles não sonham fazê-lo numa vida, numa cadeia onde todos ganham, da vaca ao consumidor final, basta cada um fazer sua parte e bem feita. E antes de dizer que isso não funciona por causa dos outros, analise a si mesmo primeiro, melhore-se, e junte-se com quem acredita em você.
Nota:
Alguns cursos novos no Brasil, assim como novos currículos de alguns cursos tradicionais, perceberam parte dessas deficiências e as teem corrigindo.
Vídeo complementar (em inglês):
The Veterinary Profession in 2020: Key drivers for change and new skills required to embrace emerging challenges. Vídeo de uma fabulosa palestra proferida pelo Prof. Frazer Allan, Massey University, sobre o profissonal do futuro, imperdível se você é veterinário ou estudante e entende inglês (expanda a tela e pode pular a apresentação para a posição 00:05:50).