Fazer uso de financiamento bancário para alavancar o negócio rural é algo normal, saudável e que faz parte da história da economia agrícola em todos os países. No entanto, vem acontecendo algo novo em nosso setor: uma fração importante dos produtores de leite assumiram dívidas muito além do que deveriam, elas vêm crescendo alarmantemente e estes parecem estar pouco ou nada preocupados com a situação. Mais grave ainda, não estão agindo para reverter o quadro.
A imagem abaixo é de uma propriedade no centro-oeste, mas poderia ser em qualquer região do Brasil, pois a história se repete. Pequena propriedade (neste caso 42 ha), um casal idoso, 15 vacas em lactação, em média 9 litros por vaca, sendo 7,7 na seca e 11,3 litros durante as chuvas.
Dado o perfil acima, o que há de contrastante na foto? Trator novo, tracionado, com pá carregadeira sentado debaixo de um barracão igualmente novo, caro e superdimensionado, construído para a nova máquina. Você acha que estes dois investimentos se justificam na escala de produção desta propriedade (130-170 litros/dia)? Não. “Ah, mas sem o trator, como é que eu faço?” Vai-se levando de outra forma, seja pagando terceiros, seja alugando do vizinho, seja pedindo emprestado ou trocando favores ou até sem trator algum. Antes de um investimento desses é fundamental encontrar uma forma de aumentar a escala ou ao investir em um, amarrá-lo ao aumento significativo da produção que em curto prazo incremente a renda e permita o pagamento das prestações quando estas iniciarem.
Será que uma pequena propriedade comporta um trator? Depende. Vejamos os exemplos a seguir. Todos referem-se a uma propriedade de 25 ha em região tropical (inverno seco) tomando empréstimos de 8 anos, com 3 anos de carência e 5% de juros a.a. Os investimentos de A1 a A4 decorrem da aquisição de um trator novo. Já o Investimento B refere-se à compra e aplicação de calcário.
O impacto no custo direto é o efeito líquido do aumento de alguns custos menos redução de outros. A última linha (efeito do investimento) também reflete o efeito líquido. Para simplificação, não foram considerados os custos de oportunidade do capital desembolsado nas prestações. Todas as propriedades referem-se a um sistema intensivo a pasto com suplementação (SIPS), ou seja, base intensiva em pasto + volumoso conservado + concentrado.
No primeiro caso (Investimento A1), a propriedade não possuía trator algum à disposição. As operações agora possíveis, combinadas com um manejo do pastoreio correto e eficiente, transformam-se em muito mais leite e significativo aumento na receita. Nessas condições, o benefício do investimento é de 17,12:1 (R$17,12 de resultado para cada R$1 do investimento analisado).
Quadro 1. Análise comparativa de investimentos diferentes com as mesmas condições de pagamento.
E assim para as demais opções analisadas. Percebe-se que investir no primeiro trator é ótimo negócio nessas condições de fianciamento e utilização, mas trocar de trator é algo diferente. Isto porque o benefício de um trator novo sobre um já disponível, seja de terceiros ou próprio, é bem menor do que se imagina. O B/C (benefício/custo) comparado cai de 17,12 para 1,87 (A2) quando substitui um terceirizado, para 1,30 (A3) quando substitui um velho, com manutenção já alta e, o que virá para a provável surpresa de muitos, é um péssimo negócio quando substitui um usado (A4) em condições normais de funcionamento (B/C = 0,03, ou seja, os custos são bem maiores que os benefícios).
Infelizmente, grande parte dos tratores adquiridos nos últimos três anos pelos produtores de leite brasileiros recaem no caso A4 e, portanto, não deveria ser surpresa que começam a aparecer tais bens estacionados na frente das propriedades com placas de "VENDE-SE", alguns que foram usados quase só para "passear no povo", até porque muitos produtores nem se quer venderam seus usados (sim, dois tratores em pequenas propriedades é hoje cena comum). Um para bonito e outro para o trabalho de verdade.
Em contraste a esse cenário, vê-se que um investimento em calcário, por exemplo, com as mesmas condições de juro e prazos pode trazer um benefício de 6,63 vezes seu custo.
A importância do planejamento
Os erros acima ocorrem porque nós, brasileiros, somos um povo do improviso. A gente "toca de ouvido", fechamos os olhos e seja o que Deus quiser. Lá na frente a gente vê o que faz. É assim para tudo.
Sem um planejamento mínimo seguiremos cometendo esses erros e veremos ainda muita gente quebrar até que aprendamos a lição.
Temos uma combinação de falta de assistência de qualidade, às vezes falta total, combinada com imprudência e imediatismo e vistas grossas de bancos com metas de despejar empréstimos no mercado (só possível pelas garantias e estímulos "dados" com recursos públicos).
Combinando tudo isso, temos hoje produtores que teriam que dobrar, uns que triplicar, a produção de leite apenas para pagar dívidas que começam a vencer. Juro barato é bom, mas as prestações chegam e se o investimento não agregou na receita, de onde sairá o "dim-dim"?
O fenômeno é mundial
A crise iniciada em 2008 apenas acelerou um processo que se iniciou em 1971 quando Richard Nixon (presidente dos EUA) eliminou o lastro de sua moeda no ouro. Em 1973 o FMI ratificou a prática que passou a ser adotada por todos, inclusive o Brasil. Desde então gera-se riqueza de forma político-administrativa, com tinta, papel e aumento de dívida. Neste instante os EUA aguardam novo sinal verde do congresso para elevar a barra ainda mais.
Essa prática é geral. As economias que giravam em torno da produção real de bens e serviços, da geração de excedentes gerando poupança que, por sua vez, era o recurso emprestado para investimento e geração de mais riqueza, passou a dispensar produção real e dispensar poupança. Para quê, se hoje se tira dinheiro da cartola? Percebem?
Os tesouros nacionais geram um número quase que virtual no sistema financeiro que é disponibilizado ao mercado e empurrado por políticas de "estímulos" que estão iludindo os cidadãos do mundo todo. Riqueza volátil, mas dívidas reais e acionáveis. Venda de facilidades ilusórias. Lembre-se "there is no such a thing as a free lunch" (não existe almoço de graça).
Gerenciamento é quase tudo
Tudo isso não é intrinsicamente mau. Tudo depende de como se lança mão. Tomar um dinheiro virtual com penhor real, sem planejamento, para administrar os recursos tomados sem gerenciamento como fazemos hoje é algo infantil. É de dar pena assistir famílias que estão sendo engolidas por esse processo, mas é o preço que se paga por acreditar em soluções fáceis.
Não existe solução fácil. O avanço e o progresso do setor depende de conhecimento, planejamento e gestão, bem mais do que de sistema de produção. Vejam o exemplo abaixo que nos chega agora da Nova Zelândia (revista NZ Dairy Exporter de 09/2013, p.78).
Figura 1. Impacto do nível de gerenciamento no retorno sobre o capital investido (RCI) para três variantes de sistemas de produção de leite na região de Waikato, Nova Zelândia. (Fonte: Taylor, 2013, traduzido e adaptado).
Percebe-se que quando o gerenciamento da propriedade é muito bom (intenso), representado por um alto nível de planejamento, controle diário, levando a decisões corretas tomadas na hora certa, pouco importa o nível de insumos empregados (em termpos de RCI, não necessariamente de renda disponível). Tanto negócios com altos insumos (em verde) como baixos (azul) produziram igual efeito sobre o investimento. No entanto, basta o gerenciamento ficar um pouco aquém do ideal (nível médio) que as diferenças entre níveis de investimento já aparecem. A mesma tendência quando se desce para um pobre gerenciamento.
Note que se é para falhar no gerenciamento é melhor que não se arrisque investir, pois quanto maior o grau de investimento mais falta faz um bom gerenciamento. Tenho observado exatamente o mesmo no Brasil e isso explica porque produtores que não querem se comprometer de verdade nem adotar mudança de atitudes preferem não investir. São malhados e criticados, mas no fundo, para o que se dispõe eles estão certos (viver com mínimo esforço, mesmo que isso signifique baixa renda). Em resumo: o gerenciamento faz a diferença. As pessoas fazem a diferença!
Ao longo dos anos tenho observado e registrado muitos dados referentes ao perfil de produtores de leite. De todos com quem já me deparei pessoalmente no Brasil, apenas 0,3% (ou seja 3 em cada 1.000) os encontrei com um grau de gerencaimento considerado muito bom, mas 75% daqueles que decidem adotar um muito bom grau de gerenciamento o alcançam. Cerca de 33% dizem querer adotar, mas só 25% realmente fazem por onde (25% são os 75% bem sucedidos dos 33% que dizem querer).
Isso é ao mesmo tempo animador e revelador. Revelador porque evidentemente falta quem lhes ajude, já que um quarto da população de produtores só não está dando um salto à frente hoje porque está ou mal orientada ou abandonada. Mais ainda, muito das poucas iniciativas de assistência técnica e extensão rural têm incluído os 66% que não querem mudar, levando todos a uma sensação equivocada de que não vale a pena, de que o avanço é muito lento e que, no final das contas, a solução é brigar por protecionismo e preço, entregando ao mercado e aos políticos o poder que estaria nas próprias mãos.
Animador quando se consegue identificar essa seleta parcela e juntos todos experimentam avanços jamais sonhados. Fazer parte de um negócio em que todos ganham e se sentem gratificados é uma questão de saber com quem se envolver e com quem não se envolver. Reforço isso sempre que posso porque vivemos a falácia da distribuição igual para todos como panaceia da "justiça social" e não é assim. Acertando neste ponto, o resto é consequência de planejamento, método, trabalho e seriedade, pois nada que é bom e duradouro nos vem fácil ou sem nos cobrar alguma coisa e o planejamento define a moeda, os prazos e o peso que estaremos dispostos a pagar para ascender a um próximo degrau. De graça não será, ou você achou que era?
Encerro com uma imagem bonita de um investimento bem planejado e que está se pagando com facilidade: produção de feno de Tifton 85 irrigado no centro-oeste (a foto foi tirada no meio da seca deste inverno de 2013). A alavancagem financeira pode ser algo maravilhoso ou destruidor, quem decide é você.
Wagner Beskow
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