De 15 a 25 de março, tive o prazer de acompanhar um grupo de produtores, empresários, gestores de indústrias, técnicos, consultores, dirigentes de cooperativas, professores, entre outros, numa viagem técnica pela Nova Zelândia, muito bem organizada por Marcelo Carvalho (MilkPoint), com apoio e expertise da CAEP (Brasil) e Farm to Farm Tours (NZ).
Foram nove dias intensos visitando várias fazendas, centros de pesquisa, universidades e empresas da cadeia produtiva do leite, balanceados com descontração, cultura e belezas naturais, tanto na Ilha Norte como na Sul.
Tendo vivido e estudado lá, conheço bem os contrastes entre nossos países e sei como pensam ambos os lados. No início não é fácil para os brasileiros entenderem o sistema deles, pois naturalmente se começa avaliando as coisas de lá com os olhos e parâmetros daqui. Em consequência, as reações que observei nos primeiros dias eram:
“Não é possível, tem alguma coisa que não fecha nessa história”.
“Esses caras tão nos conversando, não pode ser”.
“Ninguém consegue chegar a esse número de vacas como esse pessoal diz que chegou”.
“Pra fazer isso tem que ter subsídio, não pode ser. Isso é impossível!”
“Esses caras vão quebrar”.
Na medida em que os relatos vão se tornando consistentes e que os parâmetros começam a fazer sentido, as pessoas sentem como se tivessem entrado numa outra dimensão. De fato lhes digo: entraram. Deste ponto em diante, os comentários predominantes eram:
“Você viu que todos eles falam em metas, um monte de números, e todos sabem na ponta da língua não só os detalhes do custo de produção, mas também o retorno sobre o capital investido? Lá a gente não fala nisso, não!”
“Você viu que impressionante esse casal aí?”
“Cara, que maneiro isso aí. Eles teem tudo no computador! Olha ali, o sujeito só puxa e tá tudo na ponta dos dedos e em todas propriedades é assim”.
“Viu só quantas pessoas ordenham essas vacas? Um cara sozinho faz tudo! (...) Também, elas entram e saem sozinhas da ordenha”.
“Vou voltar pra casa e encerrar a produção. Fiquei com vergonha”.
Acho que essas expressões dão uma ideia do impacto que uma experiência dessas representa. O grupo cresceu e desenvolveu linguagem própria. No ônibus, os percursos eram proveitosos. Havia questionamentos, dúvidas, observações valiosas. Nas visitas as perguntas fluiam sempre. Embora nunca tenha faltado tempo para boas risadas e brincadeiras, me chamou a atenção o profissionalismo dos componentes. Sinto que todos parecem ter ficado com a mesma impressão.
Dados físicos
Para que o leitor melhor dimensione a realidade do leite na Nova Zelândia, apresento abaixo um resumo de dados produtivos que compilei para o grupo antes de partirmos.
Três aspectos importantes para você poder entender estes números: 1) o produto lá não é litro de leite e sim sólidos butírico-proteicos ("sólidos GPB"), ou seja, gordura e proteína bruta pagos por kg, tanto que na composição do preço há um demérito/penalidade para volume; 2) a produção nacional é sazonal, as vacas dão cria em julho/agosto e são secadas em abril/maio; 3) as superfícies e produtividades por área referem-se a áreas efetivas com vacas, visto que a recria é toda terceirizada no país.
HF = Holandês-Frísio; JE = Jersey; HF/JE = Kiwicross.
Notem que com menos de 12.000 produtores, sem subsídios desde 1984 e criticados pela "baixa produtividade" na visão volume que domina nossas mentes, a NZ (que mal chega ao tamanho do RS) produz mais leite que todo o Brasil com seus (aproximdamente) 600.000 produtores de leite inspecionado (chego a este número aproximado, que nem o IBGE conhece!, dividindo 22 bilhões de litros inspecionados por 365 dias e por 100 litros por produtor, que é a média diária geral predominante no país hoje, segundo meus levantamentos). Nós produzimos 22 bilhões, eles 19,1 bilhões, mas quando convertemos para o nosso padrão de (falta de) sólidos, eles produzem o equivalente a 25,6 bilhões de litros de leite no "padrão Brasil" de sólidos. Ou seja, 16% mais leite que nós com apenas 2% do nosso número de produtores! E registre-se ainda que a produção lá, como no mundo todo, também é familiar.
Chocado? Não fique. Se quiser entender de onde vem esses resultados, leia este artigo que escrevi em dezembro de 2012. Em resumo, o que se constata são frutos de décadas de metas consistenes, muita pesquisa, muito trabalho e cultura. Nada lhes foi dado.
Mais dados e informações
Em um brilhante artigo, Marcelo Carvalho relata detalhes que não pretendo repeti-los, como o drama da seca deste ano, a questão econômica e as mudanças que veem ocorrendo por lá. Confira isso e muito mais clicando aqui.
Para entender melhor como se configura o sistema de produção, a enorme dependência do pasto e os níveis variados de suplementação existentes hoje, recomendo verificar estes dados que apresentei em uma frutífera discussão com Prof. Mühlbach aqui no MilkPoint, ainda antes da viagem.
Tenho muita e detalhada informação sobre custos, rentabilidade e capacidade de pagamento das dívidas pelos produtores, temas que discutimos em toda a viagem, mas precisaria de um outro artigo só para isso.
Uma longa história de aprendizagem
Em fevereiro passado havia completado 20 anos que minha esposa e eu pisamos pela primeira vez na Nova Zelândia (1993), na época para realizar meu curso de mestrado. Foram dois anos e quatro meses de intensos estudos e viagens técnicas, num país extremamente democrático, eficiente, estável, sem subsídios, sem buracos, sem carimbos, sem corrupção, sem atravessadores, sem um papelzinho no chão, de governo enxuto, onde a polícia não usa armas e políticos são servidores sem privilégios.
De volta ao Brasil em abril de 1995, em nosso primeiro dia de regresso do que viria a ser a primeira estadia por lá, assistimos dois policiais militares de serviço (RS) jogando lixo pelas janelas de sua viatura, simultaneamente. Não foi fácil voltar a conviver com essas coisas, mas era um primeiro sinal de que teríamos que ter muita paciência e ponderar muito tudo que vimos e aprendemos.
Dois anos se passaram como consultor agropecuário e professor universitário, muitas aulas, muitas palestras, estudos e mais pesquisas seguidas de continuadas tentativas de mudança de nosso setor produtivo me ensinaram três lições importantes: 1) o Brasil ainda não estava preparado para a mensagem que eu trouxera; 2) a solução que precisávamos não poderia vir pronta de fora; 3) eu precisaria me aprofundar muito mais técnica e cientificamente, porque a luta ia ser bem mais dura que eu imaginara.
Não desistimos. Entendendo o valor daquela fonte inspiradora, voltamos para a NZ em agosto de 1997, agora para meu doutorado, com muito mais experiência de vida, casca já mais grossa e determinação redobrada de ajudar a mudar nossa realidade. Quatro anos e quatro meses de aprofundados estudos e tantas outras passagens até que, em dezembro de 2001, véspera de Natal, zarpamos para o Brasil com a sensação de missão cumprida, com muita esperança e também muita saudade. Por limitações financeiras, em ambas as ocasiões estivemos direto lá, com compromisso de voltar para o Brasil por pelo menos o mesmo tempo fora.
Agora a bagagem que trazíamos era diferente e não mais esperávamos que todos ouvissem, pois sabíamos que a mensagem era para poucos. Tudo que eu precisava era de “poucos que fizessem a diferença”. Nada mais. Trabalhei por outros cinco anos, novamente como professor/pesquisador universitário, refinando e testando aqui o que desenvolvi no doutorado, descartando um bom tanto e agregando uma série de elementos novos, via pesquisa e experiência prática, que refletiam tanto nossas dificuldades nacionais como nossas riquezas, ambas inimagináveis por lá.
Acabara de finalizar e testar um modelo de produção feito para nossa realidade (o SIPS – sistema intensivo a pasto com suplementação) e partia para implantá-lo em mais propriedades rurais, quando fui convidado pela CCGL para adaptá-lo ainda mais e estendê-lo com exclusividade a seus produtores de leite. Topei e foi gratificante. Resultados em escala comercial? Em 7-12 meses: 100% mais leite nas propriedades que o adotaram com custo por litro 25% menor, resultando em 400-700% mais renda líquida ao produtor, com menos mão-de-obra, mais sanidade, maior qualidade do leite, melhor reprodução e endividamento zero. Superamos a NZ em produtividade da vaca, da terra, em custo mais baixo e maior retorno sobre o capital. Apresentei esses dados no Interleite Sul 2010.
Quanto de NZ tem nisso tudo? Uns 60%. Muito! Outros 10% devo a conhecimento gerado nos EUA e o restante (30%) foram descobertas e adaptações que teem sido realizadas em colaboração no Brasil (UFPEL, UERGS, CCGL e agora com a Transpondo, olhando o Brasil como um todo).
Durante todo esse tempo, jamais perdi o contato com a Nova Zelândia. Assino e publico na revista NZ Dairy Exporter (editada há 88 anos), mantenho trabalhos em colaboração com pesquisadores neozelandeses e sou o único brasileiro membro da Royal Society of New Zealand, a “Academia Real de Ciências da Nova Zelândia” (RSNZ) e, como membro, somos frequentemente consultados pelo parlamento, pelo primeiro ministro e por seus órgãos governamentais, contribuindo com posicionamentos técnico-científicos para as políticas públicas de lá. Um pouco de retorno de tudo que recebi...
O que fica de tudo isso para mim
A certeza de que avançam os que querem e queixam-se os que não sabem fazer melhor. Somos um país rico em tudo e nada nos impede de sermos líderes mundiais em produção de leite a baixo custo e alta eficiência. Trabalho por isso todos os dias de minha vida e, projetando os vários casos de sucesso que se somam hoje em nosso país, sinto que ainda terei o prazer de testemunhar isso como realidade nacional.
Parabenizo e agradeço ao MilkPoint pela oportunidade propiciada a todos nós. Foram momentos de aprendizagem (minha inclusive) e de grande troca de experiências. Tanto lá como após o retorno só ouvi e só tenho a relatar aspectos positivos da viagem. Que outras possam acontecer.
Por fim, deixo aqui minha reconhecida admiração pelos amigos neozelandeses com sua fibra, garra, coerência, organização e, sobretudo, pela atitude vencedora que permeia um povo em que sua mulher foi a primeira a conquistar o direito ao voto, foi o primeiro a escalar o Everest, mandou os latões de leite para museu em 1950 e aboliu totalmente seus subsídios agrícolas em 1984, para citar apenas algumas de suas proesas e exemplos para o mundo.
Wagner Beskow
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