A ureia foi descoberta na urina em 1773 pelo francês Hilaire Rouelle, mas somente no início do século XIX ficou bem conhecida, pois foi o primeiro composto orgânico sintetizado artificialmente a partir de compostos inorgânicos, por Friedrich Wöhler. Ainda no século XIX, Weiske (1879) descobriu que ovinos podiam utilizar o nitrogênio da ureia. No rúmen, a ureia é convertida em amônia e utilizada pelos microrganismos para síntese de proteínas (Huber e Kung, 1981). Como possui aproximadamente 45% de nitrogênio, seu valor de proteína bruta (PB) é de 281% (PB = %N*6,25).
O primeiro experimento com ureia na dieta de vacas em lactação foi realizado no final da década de 1930, na Universidade de Wisconsin (Estados Unidos) (Rupel et al., 1943). Neste trabalho, os volumosos utilizados foram: feno de gramínea e silagem de milho. A ureia foi comparada com o farelo de linhaça, ao longo de três lactações. As vacas produziram aproximadamente 4.000 kg de leite por lactação, independente da fonte protéica. Os autores concluíram que a ureia poderia substituir o farelo protéico com sucesso. Com base nos resultados deste primeiro experimento, que não testou níveis de ureia, os autores recomendaram o nível máximo de inclusão de ureia de 1% da matéria seca da ração total ou 3% da matéria seca da mistura de concentrados. Neste trabalho, o nitrogênio da ureia constituiu 27% do nitrogênio total da ração.
A partir daí, vários pesquisadores estudaram diferentes níveis de inclusão de ureia na mistura de concentrados. Pôde-se concluir que o limite máximo de inclusão de ureia no concentrado, sem efeitos deletérios no consumo de alimentos e no desempenho, variava entre 1,5 e 3% da MS, sendo as vacas de maior produção mais afetadas negativamente com maiores níveis de ureia. Também foram determinados outros parâmetros determinantes da inclusão máxima de ureia nas rações como 40 a 50 g/100 kg de peso vivo ou 1/3 do nitrogênio total da ração (Van Horn et al., 1967; Chalupa, 1968; Conrad e Hibbs, 1968; Huber, 1975). Por fim, passou-se a entender que os efeitos deletérios da ureia sobre o consumo de alimentos são causados pela palatabilidade e também por efeitos metabólicos (Huber e Kung, 1981).
E no caso da cana-de-açúcar, qual seria o limite de inclusão de ureia?
Um experimento bem conhecido sobre "níveis de ureia na cana" foi conduzido por Alvarez e Preston (1976), no México. Cinquenta novilhos foram alimentados com 1 kg de farelo de arroz e cana-de-açúcar picada adicionada de solução aquosa de melaço mais ureia, fornecida a vontade. As respostas mensuradas (consumo, ganho de peso e conversão alimentar) apresentaram efeito quadrático e os melhores resultados foram obtidos quando a ureia foi adicionada na dose 35 g/kg de MS da dieta, aproximadamente 1% da matéria natural.
Este e outros trabalhos realizados na região do Caribe sustentam o uso da tecnologia "cana + 1% ureia", bastante difundida em nosso país. Mas a recomendação deste nível de ureia (3,5% da MS) não vai contra os valores citados anteriormente (1% da MS)? Como ficaria a regulação do consumo via palatabilidade e/ou metabolismo?
Antes de saber a "opinião" das vacas, vamos ver o que os modelos matemáticos apontam em relação ao desempenho. Uma simulação foi feita utilizando uma vaca em lactação de 580 kg. Assumiu-se o consumo de cana-de-açúcar igual a 11 kg de matéria seca, o que equivale a aproximadamente 35 kg de cana fresca. Este é um ponto extremamente delicado, pois na prática este consumo só tem ocorrido em condições ótimas de manejo. Aqui nós gostaríamos de avaliarmos o potencial das dietas, por isto, admitiu-se um consumo elevado.
O NRC Gado de Leite (2001) foi considerado como modelo matemático padrão, ou seja, as dietas foram formuladas no NRC e avaliadas nos outros modelos (CPM-Dairy, CNCPS e Dijkstra et al., 1996) (Figura 1). Quando somente a cana-de-açúcar foi inserida na ração observamos que a produção potencial com base na energia era de aproximadamente 6 kg de leite, entretanto, não havia disponibilidade de proteína para produção e nem para atender totalmente a exigência de mantença. Por isto, a ureia foi adicionada gradualmente até que o balanço de proteína degradável no rúmen (PDR) fosse nulo (dieta "2,6% ureia"). Neste ponto, a produção de leite potencial média, indicada pelos modelos, foi 4,6 kg de leite (4,03 a 6,10 kg). A partir daí, não houve vantagem em aumentar a dose de ureia, portanto, os modelos indicaram excesso de ureia na dieta "3,3% ureia" (1% de ureia na matéria natural). O modelo de Dijkstra et al. (1996) foi pouco sensível à alteração do nível de ureia de 0,5% para 3,3% e somente este modelo apontou resposta produtiva com uso de 1% de ureia (% da MS).
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Figura 1 - Potencial de produção de leite por uma vaca de 580 kg, consumindo 11 kg de matéria seca de cana-de-açúcar suplementada com níveis de ureia (% MS) ou ureia e farelo de soja (1,8 kg de MS). Considerou-se os modelos NRC gado de leite (2001), CPM-Dairy, CNCPS e Dijkstra et al. (1996)
A adição de 2,6% de ureia na cana-de-açúcar (% MS) (0,78% de ureia na matéria natural) corrigiu a deficiência de PDR, entretanto, para que o potencial energético da cana fosse totalmente aproveitado havia falta de proteína não degradável no rúmen (PNDR). Para corrigir o déficit de PNDR nós adicionamos farelo de soja (1,8 kg de MS ou 13,9% da MS) e reduzimos o nível de ureia (1,1% da MS) até que o balanço de PDR fosse nulo e os potenciais de produção de leite com base na energia e na proteína se igualassem (dieta "1,1% ureia + F. soja") (Figura 1). O potencial de produção aumentou para 10,7 kg de leite (9,7 a 11,6 kg). Todos os modelos matemáticos responderam positivamente com a inclusão de farelo de soja.
Além disso, a menor dose de ureia diminui as chances de ocorrência de problemas com redução de consumo. Considerando o potencial de aumento na produção de leite de 4,6 para 10,7 kg, as chances de ganhos financeiros com a inclusão do farelo protéico são grandes.
Com isso, nesta primeira parte do artigo, nosso maior objetivo foi mostrar o potencial de rações com cana-de-açúcar suplementada apenas com fontes protéicas, usando simulações com modelos matemáticos. Na parte II serão mostrados dados obtidos em alguns experimentos.