A vida nos prepara desafios que, às vezes, achamos que não vamos conseguir vencer. Na atividade leiteira o desafio é diário e, além disso, têm imprevistos que em nenhum planejamento se enquadram –por exemplo, um foco de febre aftosa ou uma pandemia como a que hoje vivemos.
Uma data histórica foi em 23 de agosto de 2000 e ficará para sempre na memória dos moradores de Jóia, no Rio Grande do Sul. Nesta data, foi decretada situação de emergência sanitária, que perdurou por 5 meses, devido a um foco de febre aftosa em uma propriedade do município.
Foi o início de um filme de terror: 72 barreiras sanitárias, propriedades interditadas, as afetadas e as vizinhas. Foram mais de 900 pessoas envolvidas, entre veterinários, agrônomos, técnicos, peritos, fiscais, exército e outros.
O que mais traumatizou foi que, para atender as determinações de Organização Mundial da Saúde Animal (OIE) e do Programa Nacional de Vigilância para a Febre Aftosa (PNEFA), foram sacrificados todos os animais situados num raio de 3 quilômetros das propriedades afetadas. Os animais eram jogados em valas, mortos a tiros (rifle sanitário) e depois soterrados.
No total, foram 22 focos, que atingiram 597 pequenas propriedades da região, obrigando os produtores a sacrificarem 11.087 animais. Nossa propriedade ficou fora do raio de 3 quilômetros das afetadas, então não tivemos animais sacrificados, porém não podíamos vender o leite.
Foram 5 meses que o caminhão ficou sem ir na propriedade. Após isto, a coleta voltou gradativamente, mas era preciso levar o leite na estrada e passar pela barreira sanitária. O caminhão não podia chegar nas propriedades.
Tínhamos 12 vacas, com média diária de 7 litros. Não era muito leite, mas era nosso ganha pão.
Neste momento, pensamos várias vezes em desistir, pois o custo permanecia. Era preciso ordenhar as vacas e jogar fora o leite, para não prejudicar o úbere, não gerando receita para a propriedade. Não secamos os animais porque, a qualquer momento, a coleta poderia voltar. Mas ninguém sabia quando, então era preciso que as vacas estivessem produzindo.
Sem o dinheiro do leite, precisamos nos reinventar, continuar ordenhando as vacas sem vender o leite e ainda achar tempo para fazer outra coisa que colocasse dinheiro dentro de casa.
Eu trabalhava de diarista em uma plantação de fumo, meio turno, pois tinha aula à tarde. Conseguia me manter, ao menos. Meu pai trabalhava para um produtor de soja e esses eram os meios encontrados para conseguir por comida dentro de casa.
A paixão pela atividade, a vontade de ter um negócio próprio, independência financeira e, principalmente, a fé nos mantiveram neste período e não desistimos da atividade.
Eventos de conscientização, explicação e de ajuda para a retomada da atividade ajudaram muito. Nós participamos de todos os que eram perto, buscando estar bem informados para saber qual melhor decisão para se tomar.
Atividades de educação sanitária foram feitas em 26 cidades, 186 palestras, 69 reuniões, num total de 24662 pessoas participantes.
Saímos fortalecidos, aprendemos a nos reinventar nas crises, que elas são passageiras e que devemos nos preparar para a retomada. Tentar enxergar a frente da crise nos ajuda a ver um horizonte amplo logo a frente e planejar a chamada "volta por cima".
Hoje, 21 anos depois, o Rio Grande do Sul será reconhecido internacionalmente como um Estado livre de febre aftosa sem vacinação pela Organização Mundial da Saúde Animal (OIE). Confira aqui o parecer da OIE. A homologação por parte da OIE na assembleia geral deve ser realizada em maio, na França.
Isso nos traz uma alegria muito grande, a certeza que tomamos a iniciativa correta ao permanecer na atividade e que nunca mais queremos ter que lidar com a febre aftosa.
Baseado neste doloroso aprendizado, hoje, faço palestras para colegas produtores, ajudando-os a superar crises, a ver a atividade com outros olhos, obtendo lucro e satisfação no que fazem e a serem felizes produzindo leite.
Existem várias formas de superar as crises, independentemente do tamanho e, ainda assim, sair delas fortalecidos e com maior capacidade de enfrentar as dificuldades.
O atual momento é difícil, mas, logo ali na frente, o coronavírus vai ser só uma lembrança, assim como a aftosa é hoje para nós. Então, vamos tirar deste momento um aprendizado, para que possamos evoluir como produtores e seres humanos, entendendo a dor do próximo e ajudando quando podemos.