A utilização do leite de descarte para alimentar os bezerros em aleitamento é uma prática muito comum, mas também bastante polêmica. Barry et al. (2020) constataram que em fazendas leiteiras irlandesas mais da metade dos produtores alimentavam seus bezerros com leite de descarte.
De forma semelhante, observa-se que 44% das fazendas brasileiras analisadas utilizaram de leite não comercializável como principal fonte de dieta líquida para os bezerros até 30 dias de idade e 54% no período subsequente (30 dias ao desaleitamento), superando o uso de leite comercializável e sucedâneo, o que reforça a ampla utilização dessa prática no Brasil (Figura 1, Azevedo et al., 2025). Daquelas fazendas que utilizam leite não comercializável, 34 e 42% não realizam a pasteurização do leite fornecido aos bezerros até os 30 dias e dos 30 dias ao desaleitamento, respectivamente (Azevedo et al., 2025).
Figura 1. Tipo de dieta líquida predominantemente fornecida do nascimento aos 30 dias de vida e dos 30 dias ao desaleitamento em fazendas do programa Alta Cria
Fonte: Azevedo et al., 2025
No entanto, quando vacas em lactação são tratadas com antimicrobianos, resíduos de antibiótico podem ser encontrados no leite, impedindo sua comercialização para consumo humano, mas sendo uma possível oportunidade para fornecer aos bezerros em aleitamento. Embora a pasteurização auxilia na melhoria da qualidade microbiológica, não é capaz de eliminar os resíduos de antibióticos.
Um trabalho bastante recente (Flynn et al., 2025) investigou os efeitos de resíduos de antibiótico no leite descarte em função do tratamento de vacas com mastite sobre o crescimento, a saúde, a microbiota fecal, a inflamação sistêmica e o surgimento de bactérias resistentes a antibióticos em bezerros leiteiros, abordando lacunas na compreensão das respostas pré e pós-desaleitamento.
O estudo em questão avaliou 87 bezerras leiteiras, incluídas no estudo ao nascimento, e distribuídas em um dos três grupos de acordo com a dieta líquida fornecida:
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Antibiótico de longo prazo (LTA), bezerros aleitados com leite descarte desde os 4 dias de idade até o desaleitamento às 12 semanas;
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Antibiótico de curto prazo (STA), bezerros aleitados com leite descarte por 3 semanas, das 3 às 5 semanas de idade, no restante do período os animais receberam dieta líquida sem resíduos de antibióticos;
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Controle (CONT), bezerros aleitados dos 4 dias de idade até o desaleitamento com 12 semanas, com leite convencional (sem resíduo de antibiótico).
Neste estudo o leite com resíduo de antibiótico foi simulado através da adição de amoxilina e neomicina ao leite comercializável, em diferentes concentrações, mas em níveis semelhantes aos observados em vacas mastíticas 2 dias após o tratamento com antibiótico intramamário. Para evitar qualquer tipo de contaminação cruzada, os bezerros foram alojados individualmente, não tendo contato direto com outros animais.
Os bezerros foram avaliados quanto à saúde duas vezes por semana, do nascimento até 20 semanas de idade, os parâmetros foram:
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Frequência respiratória;
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Tosse;
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Limpeza fecal;
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Características do trato umbilical;
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Secreção nasal e ocular;
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Posição da orelha;
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Mobilidade;
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Comportamento e interesse pelo ambiente.
Foram realizadas também coletadas amostras de fezes de bezerros e swabs ambientais para identificar colônias de E. coli.
Saúde e imunidade
A transferência de imunidade passiva, avaliada pelo Brix sérico, foi semelhante entre todos os grupos. De maneira geral, os bezerros apresentaram boa condição de saúde, com escore de saúde satisfatório e baixa necessidade de intervenções veterinárias. Antes do desaleitamento, o grupo LTA apresentou menor probabilidade de apresentar escores de saúde ruins, sugerindo um efeito protetor temporário dos resíduos de antibióticos, entretanto, essas diferenças desapareceram após o desaleitamento.
Efeitos no desempenho
A inclusão de leite de descarte simulado, contendo níveis subclínicos de antibiótico, não influenciou o peso corporal nem o ganho médio diário dos bezerros, tanto antes quanto após o desaleitamento.
Tabela 1. Peso corporal de bezerros aleitados com diferentes dietas líquidas, de acordo com a fase de avaliação.
Alguns estudos indicam que podem ocorrer efeitos positivos sobre o desempenho quando os bezerros recebem níveis mais elevados de resíduos de antibióticos ou quando há variações na composição nutricional do leite de descarte. Os estudos evidenciam que níveis mais elevados podem influenciar a microbiota intestinal, diminuir competição bacteriana ou reduzir infecções subclínicas. Porém, os efeitos desaparecem após desaleitamento.
No entanto, o uso de leite contendo resíduos de antibióticos representa um risco importante, pois pode promover a seleção e disseminação de bactérias resistentes no trato intestinal dos bezerros, com potencial de contaminação ambiental e transmissão para outros animais e humanos.
Efeitos na microbiota fecal
Observou-se aumento na diversidade microbiana no grupo LTA após o desaleitamento, possivelmente refletindo adaptação do intestino à transição para alimentos sólidos. Antes do desaleitamento, os bezerros do grupo LTA eram menos propensos a apresentar escores de saúde ruins em comparação com o grupo CONT, indicando que os antibióticos nesse grupo podem ter ajudado a reduzir doenças infecciosas antes do desaleitamento. Essa descoberta é consistente com vários outros estudos que relataram melhores resultados de saúde em bezerros alimentados com leite descarte (Zou et al., 2017 ; Zhang et al., 2019 ; Firth et al., 2021).
No entanto, outros estudos, como o de Dickinson e Serawicz (2014), evidenciaram que antibióticos também podem afetar a função imunológica intestinal, aumentando o risco de inflamação e de ocorrência diarreia.
Resistência bacteriana e metabolismo
Todos os grupos apresentaram E. coli, que produz uma enzima, a beta-lactamase de espectro estendido (ESBL), com maior prevalência nos grupos STA e LTA nas primeiras semanas (Tabela 2), mas a resistência diminuiu com a idade, indicando efeito transitório. Embora a resistência também tenha sido observada no grupo controle, isso pode refletir pressão ambiental natural e não necessariamente a exposição direta a antibióticos.
Tabela 2. Prevalência de Escherichia coli produtora de ESBL isolada em ágar cromogênico ESBL, expressa como uma porcentagem do total de E. coli putativas isoladas em ágar MacConkey tipo III de amostras fecais de bezerros.
Os genes de resistência detectados incluíram aqueles associados a aminoglicosídeos, macrolídeos e tetraciclinas, e alguns estavam presentes em bactérias comensais, como Ruminococcus torques e Enterococcus faecium, que podem atuar como reservatórios de genes de resistência no ambiente intestinal. Isso é preocupante, pois esses genes podem ser transferidos entre espécies bacterianas, promovendo resistência múltipla a antibióticos.
Apesar de os níveis de resistência terem sido menores do que em outros estudos e terem diminuído após o desmame, os resultados sugerem que a exposição a leite de descarte simulado causa efeitos transitórios, porém relevantes, na seleção de bactérias resistentes. Além disso, diferenças no metabolismo microbiano entre os grupos após o desmame indicam possíveis alterações na microbiota e na atividade ruminal, justificando novas pesquisas com amostragem direta do rúmen.
Mas então, o leite residual pode ser fornecido para as bezerras?
O estudo demonstra que, independentemente da duração, a alimentação com leite contendo resíduo de antibiótico não afetou significativamente o crescimento dos bezerros. Porém, bezerros alimentados com o leite descarte simulado apresentaram escores fecais mais altos ao desaleitamento e também no período subsequente. Além disso, o resultado mais impactante é a descoberta de que essa alternativa de dieta líquida para bezerros contribui para a resistência microbiana a antibióticos, podendo também alterar o desenvolvimento da microbiota fecal.
Comentários dos autores:
A prática de fornecimento de leite descarte para bezerras leiteiras é bastante comum e muitas vezes baseada na falta de sucesso de correção de problemas na sala de ordenha e alta ocorrência de mastite. O produtor normaliza esta condição à medida que entende que pode utilizar esta dieta líquida para as bezerras. No entanto, é importante salientar que vacas com mastite têm redução na produção de leite, normalmente mantêm consumo, aumentando o custo por litro produzido.
Além disso, os tratamentos veterinários podem ser um grande peso na planilha de custo de produção e trazem também questões de uso de mão de obra. Assim, vacas com mastite produzem um leite mais caro, mas de menor qualidade. Quando fornecido para bezerros, compõe dieta líquida de menor qualidade nutricional e microbiológica, além de trazer resíduos de antibióticos, o que pode gerar resistência microbiana.
De acordo com a OMS, em 2021 houveram 4,7 milhões de mortes em função de resistência microbiana e a estimativa é que este número seja de 8,2 de mortes em 2050. Assim, é de extrema importância que as práticas de alimentação considerem questões relativas à geração de resistência microbiana. Assim, faça adequada gestão de mastite no rebanho e pare de transferir o problema para o bezerreiro!
Referências bibliográficas
Referências
AZEVEDO, R. et al. Alta CRIA 2025/2025. 1. ed. Uberaba: Alta, 2025.
BARRY, J. et al. Waste milk feeding practices on Irish dairy farms. Irish Veterinary Journal, 2020.
DICKINSON, B. L.; SURAWICZ, C. M. Infectious diarrhea: pathogenesis and role of the host immune response. Current Opinion in Gastroenterology, 2014.
FIRTH, C. L. et al. Feeding waste milk to calves: effects on health and antimicrobial resistance. Frontiers in Veterinary Science, 2021.
FLYNN, K. Effects of simulated waste milk feeding on growth, health, fecal microbiota and antimicrobial resistance in dairy calves. Journal of Dairy Science, 2025.
GOSSELIN, V. B. et al. Feeding of waste milk in Swiss dairy farms: prevalence, reasons and potential risks. Frontiers in Veterinary Science, 2022.
ZHANG, R. et al. Effect of feeding pasteurized waste milk on the growth performance and health of dairy calves: a meta-analysis. Journal of Dairy Science, 2019.
ZOU, Y. et al. Feeding waste milk to dairy calves: effects on growth, health, and antibiotic resistance. Journal of Dairy Science, 2017.