A produção de leite de uma vaca é função do nível de consumo diário de matéria seca (MS) que ela consegue atingir, bem como de sua capacidade em transformar os nutrientes ingeridos em leite (mérito genético).
Muito embora essa característica seja independente do sistema de produção, parece ser consenso que, na produção de leite a base de pasto, a produção dos animais é baixa, quando comparada aos sistemas confinados. Estariam as vacas de sistemas a pasto limitadas principalmente pelo seu mérito genético, ou pelo nível de consumo de MS?
Ainda que ambos os fatores contribuam para tanto, também há algum consenso de que o mérito genético normalmente esteja acima do “potencial do pasto”, e que, portanto, os animais estejam limitados fundamentalmente pela sua base alimentar.
Qual é o problema, então, que impede os animais de chegarem a níveis significativos de consumo de MS que resultem em altas produtividades no sistema a pasto? Quem pode responder esta pergunta são elas mesmas: as vacas. Neste artigo, mergulharemos no processo de pastejo e utilizaremos o conhecimento construído a partir do comportamento ingestivo de animais em pastejo em busca da resolução deste problema.
O problema: tempo de pastejo
Uma vaca pode ter que dar até 30 mil bocados por dia, dedicando de 7 a 11 horas diárias para colher os nutrientes de que necessita no pasto. Para tanto, é necessário obviamente ter esse tempo de acesso à pastagem, e que este acesso seja predominantemente nos horários diurnos de temperatura mais amena. O quanto estas condições, de fato, ocorrem em sistemas a pasto já ilustra o nosso ponto, ou seja, o problema do tempo!
O tempo dedicado ao pastejo compete com o tempo necessário a outras atividades, como ruminação, descanso, socialização, entre outras. Ou seja, as rotinas das vacas são naturalmente limitadas por condições intrínsecas a seu comportamento. Soma-se a isso a imposição de rotinas do sistema de produção (ordenha, suplementação, período fora das pastagens), que limitam ainda mais o tempo, já escasso.
Como consequência, muitas vezes os animais chegam ao final de sua jornada diária sem terem suprido suas exigências nutricionais. Daí a hipótese de que o consumo de forragem aquém do que é requerido pelos animais, situação esta comum em sistemas de produção a pasto, seja essencialmente um problema de tempo (Carvalho et al., 2019).
Para os animais conseguirem ingerir o máximo de alimento no período que têm à disposição, precisam pastejar nas mais elevadas taxas de ingestão (isto é, consumo de matéria seca por unidade de tempo, geralmente expresso em gramas de MS por minuto). Outra forma de abordar o tema é pensar em quantos kg de MS uma vaca consegue consumir por hora de pastejo. Quanto maior essa taxa de ingestão, portanto, mais MS será consumida no período em que os animais estão na pastagem dispostos a pastejar.
Essa taxa de ingestão depende diretamente da estrutura de pasto que os animais têm à sua disposição durante sua permanência na faixa de pastejo (ou piquete). Cabe salientar que não é desconsiderada a qualidade nutricional da forragem nesta abordagem, mas entende-se que esta somente será limitante quando não houver limitação de ingestão, uma vez que a ingestão antecede a digestão no processo de pastejo.
Compreendendo o processo de pastejo
Conhecer o processo de pastejo e o comportamento dos animais é fundamental para manejá-los. Sendo assim, para podermos falar em pecuária de precisão, ou pecuária 4.0, é necessário considerar a dinâmica do processo de pastejo desde sua escala mínima, o bocado (Carvalho et al. 2009). O bocado pode ser representado como um cilindro imaginário em frente ao animal (Fig. 1), cujas dimensões variam com a estrutura do pasto. O principal componente que afeta a massa do bocado é a sua profundidade (que corresponde, em média, a 50% da altura do dossel), seguido pela densidade da comunidade vegetal.
Figura 1. Consumo de forragem a partir do bocado.
Fonte: De Albuquerque Nunes (2022). Adaptado de Carvalho (2013).
Conforme ilustrado na Fig. 1, ao abaixar a cabeça, o animal encontra uma sequência de bocados potenciais e, no decorrer da desfolha (rebaixamento do pasto), cada bocado passa a ser menos lucrativo que o anterior. Deseja-se, portanto, ofertar ao animal uma estrutura capaz de gerar bocados de alta massa que, multiplicada por uma alta taxa de bocados (número de bocados por minuto), maximizará a taxa de ingestão (ou minimizará o tempo necessário para a ingestão de uma mesma quantidade de alimento).
Assim, a taxa de ingestão aumenta de pastos baixos em direção à altura onde é maximizada, e decresce em pastos “passados do ponto” (Fig. 2A). Daí o cuidado necessário com a altura de entrada no pasto em situações de pastoreio rotativo e, da mesma forma, com o estabelecimento (e cumprimento) de metas de altura para retirada dos animais do piquete.
É importante ressaltar que, nessa proposta, as alturas de entrada e de saída diferem de outras propostas de manejo por que passam a ser definidas do ponto de vista do animal, baseado no seu comportamento ingestivo.
Figura 2. (A) Taxa de ingestão de bovinos em pastejo em pastos de aveia-preta (verde) e Tifton (azul), adaptado de Mezzalira et al. (2017); (B) detalhe do bocado sendo formado em braquiária cv. Marandu.
Fonte: De Albuquerque Nunes (2022).
Problema resolvido: Otimizando o tempo em pastejo
Otimizar o tempo do animal. Este é o objetivo do Pastoreio Rotatínuo, um conceito de manejo de pastagens desenvolvido aqui no Brasil, pelo Grupo de Pesquisa em Ecologia do Pastejo (GPEP) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), liderado pelo Professor Paulo César de Faccio Carvalho.
Após quase duas décadas de pesquisas e validações a campo, o Pastoreio Rotatínuo foi oficialmente apresentado à comunidade científica internacional em setembro de 2013, durante o Congresso Internacional de Pastagens (IGC), em Sidney, na Austrália. Chegando em seu décimo aniversário, o Rotatínuo conta com estudos e aplicações em diferentes forrageiras, de clima temperado e tropical, e está hoje difundido em milhares de fazendas, em diversos estados do Brasil e fora do país, tanto na pecuária de corte como na pecuária leiteira.
Apesar da frequente confusão, não se trata de um método de pastoreio, podendo ser empregado tanto em pastoreio contínuo quanto rotativo (desde que sejam respeitadas as alturas de manejo correspondentes à estrutura que maximiza a taxa de ingestão para cada espécie forrageira utilizada).
Diferentemente de outras proposições de manejo que estabelecem um critério de entrada baseado em características do pasto (ex: máximo acúmulo de folhas, IAF, número de folhas, etc.) e, normalmente, buscam máxima eficiência de colheita por hectare (colher o máximo da oferta disponível a cada passada dos animais), o Rotatínuo estabelece critérios de entrada e saída baseados no comportamento animal, como aqueles mencionados anteriormente. O momento de saída dos animais da faixa de pastejo (ou piquete) é aquele no qual a taxa de ingestão, alta e constante desde a entrada, começaria a diminuir (Fig. 3).
Isto acontece quando o rebaixamento do pasto atinge aproximadamente 40% da altura inicial (ex: considerando um pasto onde a taxa de ingestão é maximizada em 20 cm, a altura de saída seria 12 cm). Pode haver confundimento com o rebaixamento que ocorre a cada bocado (~50%, mencionado anteriormente), portanto, vale ressaltar que este rebaixamento de 40% corresponde à altura média do pasto, considerando haver heterogeneidade no resíduo pós-pastejo.
Figura 3. Taxa de ingestão (g MS/minuto/kg PV) no decorrer do rebaixamento do pasto a partir da altura de entrada em sorgo forrageiro (pontos vazios) e Tifton (pontos cheios).
Fonte: De Albuquerque Nunes (2022), adaptado de Carvalho (2013).
Este ponto de retirada dos animais, com 40% de rebaixamento da altura inicial, coincide com o momento em que 30 a 35% da área ainda não tenha sido pastejada no mesmo período de ocupação (Carvalho, 2013). Em outras palavras, isto significa que o restante da área (aproximadamente 65 a 70%) tenha recebido pelo menos 1 bocado. A partir deste ponto, o animal tem dois caminhos a seguir: efetuar um bocado de menor massa (em locais onde já foi efetuado 1 bocado – “repastejo”), ou buscar um local onde o bocado seja altamente rentável (áreas “intocadas”).
Ambos os caminhos levam à redução na taxa de ingestão, seja pela redução da massa do bocado (situação 1), seja pelo aumento do tempo de busca, que afeta a taxa de bocados (situação 2), embora estes processos não estejam dissociados durante o deslocamento. Portanto, cabe ao manejador determinar que os animais deixem o piquete antes desse momento. Na prática, são alturas de resíduo de pasto mais elevadas do que o que estamos habituados no campo ao trabalhar com outras propostas. Assim como as alturas de entrada também são diferentes (menores que o usual).
Na Figura 4, são apresentadas algumas metas baseadas neste conceito de manejo de pastagens.
Figura 4. Metas de alturas de manejo preconizadas em Rotatínuo visando a maior Taxa de Ingestão, para diversas forrageiras usadas no Brasil.
Fonte: Baseado em pesquisas do Grupo de Pesquisas em Ecologia do Pastejo da UFRGS.
Com essas metas de altura de baixa intensidade de rebaixamento, ocorre como consequência o aumento da velocidade da rebrota, diminuindo os intervalos de descanso quando aplicado em sistemas rotacionado, o que permite trabalhar com poucos piquetes, e de tamanho maior que o usual. É comum que o período de descanso diminua a um terço (ou ainda menos) daquele normalmente experimentado nos manejos tradicionais. A maior velocidade na rebrota faz com que se aumente a frequência de pastejo. Dessa forma, os pastejos passam a ocorrer mais rapidamente, aumentando o número total de ciclos de pastejo.
Figura 5. Diferenças de altura residual e de entrada em manejo Rotativo tradicional (A) e Rotatínuo (B) em Serafina Corrêa/RS.
Essas características fazem do Rotatínuo um manejo que combina Baixa Intensidade com Alta Frequência de desfolhação. O emprego desse conceito na produção de leite à base de pasto tem permitido solucionar o problema do tempo, e, portanto, do consumo diário de MS de pasto, que limitava a produtividade baseada nesse sistema e que, antes, só era solucionado via suplementação no cocho.
Permitindo que a vaca alcance alto consumo de pasto por dia
Na Figura 5, elaborada pelo GPEP, imaginou-se um cenário hipotético onde foi simulado o tempo necessário para uma vaca atingir o consumo de 19 kg de MS (baseado numa produção de leite de ~25 kg). Foram utilizados dados de pesquisa obtidos em pastagem de Tifton 85 manejado sob duas estratégias de manejo distintas: o Pastoreio Rotatínuo (rebaixamento de 20 para 12 cm, visando resolver o problema do tempo pela máxima taxa de ingestão) e um manejo rotativo “tradicional” (30 – 10 cm, buscando máxima colheita a cada pastejo). Cabe observar que, nesta simulação, o tempo de pastejo foi considerado ininterrupto, desconsiderando eventuais pausas para outras atividades.
Figura 6. Simulação de ingestão de forragem comparando pastoreio “Rotatínuo” e tradicional.
Fonte: Grupo de Pesquisa em Ecologia de Pastejo / UFRGS (2018).
Pelo Rotatínuo, o animal atingiu sua demanda em 8 horas de pastejo, enquanto, sob o manejo tradicional, precisaria de 12 a 13 horas para suprir a mesma demanda, inviabilizando que o animal alcance o consumo necessário, pois não dispõe deste tempo diariamente. Essa simulação ilustra a necessidade de se buscar uma estratégia que permita que o animal, em pastejo, alcance alto consumo de MS em tempo viável.
Em estudo recente publicado por pesquisadores do INIA - Instituto Nacional de Investigación Agropecuária, no Uruguai (Gareli et al., 2023), vacas leiteiras holandesas com PV médio de 550 kg, de alto mérito genético, consumiram 16,3 kg de MS de pasto por dia e produziram, sem suplementação, 24 litros por vaca/dia, no manejo usando os princípios do Rotatínuo.
Com suplementação concentrada de apenas 0,7% do PV, as vacas atingiram 29 litros. A outra estratégia de manejo estudada usava princípios espelhados na Nova Zelândia, visando alta colheita de forragem por área (colher o máximo do que foi produzido, a cada pastejo), e o consumo diário chegou a 14 kg de MS, produzindo 19,3 l/vaca/dia quando sem suplementação e 21,7 l/vaca/dia com a mesma suplementação.
Com o Rotatínuo, em sistemas baseados em pastagens com suplementação, é comum obter altos consumos de MS no pasto, ultrapassando 10 kg de MS de pasto por dia. Com duas ordenhas, com vacas de alto mérito genético, é comum atingir níveis médios de rebanho com produtividade próximas ou superiores a 30 l/vaca/dia com a raça Holandesa, ou 20 l/vaca/dia com a raça Jersey. Como exemplo, propriedades participantes do Projeto Elite a Pasto, em Serafina Corrêa (RS) orientados pela Emater/RS, passaram a trabalhar nessa faixa de produtividade a partir de 2021, quando adotaram essa tecnologia.
Tabela 1: Produtividade média anual de rebanhos leiteiros de raças especializadas, com duas ordenhas diárias e suplementação concentrada entre 0,7 a 1,3% do PV, com adoção de diferentes estratégias de manejo do pasto.
Fonte: Elaborado a partir de dados de campo (Ebert, 2023).
Esses resultados com a adoção do Rotatínuo são semelhantes àqueles alcançados por milhares de produtores participantes do Programa PISA (Programa de Produção Integrada em Sistemas Agropecuários), conduzido pelo SEBRAE/SENAR/FARSUL e sob coordenação técnica da Aliança SIPA.
Novas perspectivas para a produção de leite à pasto
Para concluir, otimizar o tempo em pastejo é vital para aumentar a eficiência e a sustentabilidade de sistemas à base de pasto, uma vez que o tempo é o recurso mais escasso, e o pasto o recurso mais barato. Para tanto, compreender as relações planta-animal e estabelecer metas de manejo que favoreçam o consumo de pasto, por unidade de tempo pastando, é fundamental para alcançar alto desempenho animal em sistemas de produção de leite baseados em pastagens, exprimindo o potencial genético de vacas de elevado mérito produtivo. O conceito do Rotatínuo abre novas perspectivas de produtividade para sistemas de produção de leite à base de pasto, definindo novos níveis de potenciais a serem desafiados.
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Autores
Leandro Correia Ebert
Pedro Arthur de Albuquerque Nunes
Paulo Cesar de Faccio Carvalho
Referências
CARVALHO, P.C.F. et tal. Do bocado ao pastoreio de precisão: compreendendo a interface planta- animal para explorar a multi-funcionalidade das pastagens. Revista Brasileira De Zootecnia-Brazilian Journal of Animal Science - REV BRAS ZOOTECN. 2009.
CARVALHO, P.C.F. Harry Stobbs Memorial Lecture: Can grazing behavior support innovations in grassland management? Tropical Grasslands. 2013.
CARVALHO, P.C.F. et al. Métodos de pastoreio: uma perspectiva alternativa a décadas de debate e pouco avanço conceitual. Anais do V Simpapasto. Maringá, PR. 2019.
DE ALBUQUERQUE NUNES, P.A. A lógica da otimização do tempo de animais em pastejo. Boletim Técnico CCGL n.112, 2022.
GARELI et al. Effects of grazing management and concentrate supplementation on intake and milk production of dairy cows grazing orchardgrass, Animal Feed Science and Technology, 2023. https://doi.org/10.1016/j.anifeedsci.2023.115668
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PONTES-PRATES et al. Similar grazing mechanisms explain contrasting intake and sward-height dynamics under diferent grazing management. Animal Prod. Science. 2022.