Importância dos serviços de sanidade
Nesse contexto atual da sanidade animal, é de fundamental importância a eficiência dos serviços de sanidade de um país ou região. Países com um sistema de sanidade fraco certamente têm poucas restrições às importações agropecuárias, assim como têm controle fraco e convivem com alto risco de introdução de doenças específicas. Nessa mesma condição (sistema de sanidade fraco), os países têm muitas restrições às exportações agropecuárias, assim como problemas e recusas constantes e são pouco prestigiados internacionalmente.
Por outro lado, países que dispõem de um sistema de sanidade forte controlam eficientemente as suas importações e estabelecem os cenários de risco com restrições baseadas em respaldo técnico. Nessa condição, têm poucas restrições de ordem sanitária e os problemas são eficientemente controlados, gerando credibilidade no cenário internacional e agregando valor aos seus produtos, exatamente por contar com um sistema que pode inclusive ser auditado por autoridades internacionais.
Este é um grande desafio para os países em desenvolvimento e em especial para o Brasil na sua condição atual e futura. Se por um lado temos organismos oficiais que incorporaram grandes avanços na execução de programas sanitários estratégicos para o país, por outro convivemos com situações contrastantes na gestão da saúde animal e que se constituem em situações de risco para a pecuária brasileira.
A inexistência de um sistema integrado de saúde animal no país, a gestão baseada em critérios políticos, empíricos ou fora dos propósitos enumerados fragilizam substancialmente o setor produtor de carnes brasileiro. Da mesma forma, é responsável por parte dos graves prejuízos econômicos que os diversos problemas sanitários causam aos produtores.
Um sistema sanitário pressupõe uma estrutura sólida e participativa, pessoal qualificado e bem remunerado, leis e regulamentos atualizados e claros, disponibilização de infra-estrutura e equipamentos adequados e um setor privado sensibilizado e participativo.
Profissionalização na sanidade animal
As exigências do mercado e a forte concorrência internacional impõem-nos mudanças significativas de atitude e rápida profissionalização em questões sanitárias que ainda, por ingenuidade ou desconhecimento, consideramos irrelevantes. Longe da injustiça de desconsiderar os avanços e conquistas no controle de diversos problemas sanitários específicos e constantes da antiga Lista A da OIE, como a febre aftosa no gado bovino, a peste suína e a doença de Newcastle nas aves, ou ainda na implantação dos Programas de Rastreabilidade e de Controle e Erradicação da Brucelose e Tuberculose Bovina e Bubalina (PNCEBT), é flagrante a fragilidade brasileira em diversas questões envolvendo a sanidade animal, principalmente na bovinocultura.
A horizontalização da pecuária bovina resultou na ocupação de 220 milhões de hectares, com um rebanho atual em torno de 190 milhões de animais, distribuídos por mais de dois milhões de proprietários e em sistemas de produção contrastantes.
A pecuária extensiva se viabilizou inicialmente pelo baixo custo das terras, pouca exigência e qualificação da mão-de-obra, baixos custos de produção, pouca complexidade dos problemas sanitários e pelo desenvolvimento e incorporação de tecnologias de produtos e processos.
Embora a situação atual demonstre claramente uma inversão profunda, com investimentos e mudanças significativas no setor, diversos procedimentos sanitários ainda praticados nos sistemas de produção de carne e leite resultam de experiências pessoais dos produtores e não são devidamente considerados pelas autoridades sanitárias.
O modelo de gestão da saúde animal no país, em que se concentraram esforços no combate às enfermidades de alta contagiosidade (antiga Lista A da OIE), com os órgãos oficiais normatizando e fiscalizando as ações sanitárias, revelou-se um exemplo de sucesso, mesmo com todas as dificuldades e atrasos na sua execução.
A efetiva participação dos produtores, que investem anualmente mais de 300 milhões de reais somente com a aquisição de vacinas contra a febre aftosa, demonstra claramente que o setor está consciente, disposto a agregar valor aos seus produtos e aberto a novos desafios. No entanto, a opção política por um sistema de gestão que prioriza o combate de uma enfermidade por vez está defasada diante no novo cenário internacional, que considera o princípio da equivalência. Isto significa que os nossos procedimentos sanitários devem ser compatíveis com os adotados pelo país importador.
As mudanças neste cenário decorreram das crises da encefalopatia espongiforme bovina (mal da vaca louca), dioxina e da própria febre aftosa, e que colocaram em questionamento diversos procedimentos na gestão da saúde e produção animal, anteriormente desconhecidos pelos consumidores, ou mesmo considerados normais pelos produtores e autoridades sanitárias. O fato é que as barreiras sanitárias se intensificaram no comércio internacional justamente para garantir a segurança do alimento e a preservação da saúde humana e animal.
Portanto, é urgente e necessário o desenvolvimento de meios para que o controle sanitário possa ser exercido com rigor e eficiência desde as unidades de produção. Isto exige não somente desprendimento e ousadia por parte das autoridades sanitárias do país, como também o envolvimento ativo dos produtores e de toda cadeia produtiva, pois as mudanças devem ser em todos os níveis.
Dois aspectos cruciais na saúde bovina, e que podem se transformar em sérios problemas para a pecuária brasileira são a falta de um sistema de diagnóstico das causas de mortalidade nas unidades de produção e a inexistência de regras claras sobre os procedimentos na eliminação de cadáveres nas propriedades rurais.
Considerando um coeficiente médio de mortalidade de 3% nas unidades de produção, morrem anualmente no país mais de 5,7 milhões de animais por diversas causas não diagnosticadas na sua quase totalidade. Aliado ao fato de a maioria das propriedades não ter assistência veterinária permanente e não ser uma prática comum recorrer ao diagnóstico laboratorial, inexiste um sistema integrado de laboratórios que estejam habilitados a estabelecer o diagnóstico etiológico e diferencial das principais causas de mortalidade, incluindo as doenças de sintomatologia nervosa.
O número de laboratórios com rotina para esta finalidade é extremamente baixo se considerarmos a dimensão continental do país, tamanho do rebanho e as suas localizações. Com isto, os dados oficiais da vigilância epidemiológica estão muito aquém da realidade, são subnotificados e não refletem o que ocorre no campo. Esta situação, já explorada indevidamente pelos canadenses, revela a fragilidade da nossa vigilância epidemiológica, que deve necessariamente se iniciar nas unidades de produção. É impossível assegurar o status sanitário dos rebanhos e do país, se não implantarmos um sistema eficiente e integrado de laboratórios de diagnóstico que forneça informações estatísticas e epidemiológicas fidedignas e confiáveis.
Pelo princípio da equivalência, a União Européia exigiu a implantação da rastreabilidade como condição para a importação da carne bovina brasileira. Visto inicialmente como uma oportunidade de negócio, as ações de marketing resultaram em várias denominações para o nosso boi criado a pasto e devidamente identificado, sem considerar que o processo exige, sobretudo, mudanças de atitude, e que certamente as unidades de produção também serão auditadas.
A União Européia regulamentou a exclusão dos animais mortos e de todas as matérias condenadas da cadeia alimentar animal (CCE, 2001), estabelecendo que a rastreabilidade perde o seu sentido quando cadáveres de animais entram em decomposição nas pastagens. No Brasil, é voluntária qualquer ação dos produtores no sentido de se eliminar cadáveres, inexistindo na legislação qualquer menção sobre o destino a ser dado aos animais mortos nas propriedades rurais (Dutra, 2001).
Desta forma, ou invertemos este quadro ou teremos que convencer os consumidores de que a presença ou mesmo o enterro de cadáveres nas pastagens não traz risco sanitário algum para os animais, nem ameaça a saúde pública. Deve-se ressaltar ainda que os europeus investem mais de ?400 milhões anualmente para a eliminação de cadáveres das propriedades rurais, sendo uma prática regulamentada mesmo antes da ocorrência da vaca louca.
Portanto, é necessária a implantação no país de um sistema integrado de laboratórios de diagnóstico veterinário e a certificação sanitária das unidades de produção de corte e leite. Estas duas ações, em conjunto com a erradicação da febre aftosa, consolidariam com segurança nossa posição de liderança na pecuária mundial.
Enquanto a ampliação do diagnóstico laboratorial traria significativo suporte aos produtores, à estatística e vigilância epidemiológica, à pesquisa veterinária, e às ações da defesa sanitária animal, conferindo credibilidade através de um modelo de gestão inovador, a certificação sanitária daria aos produtores os indicadores claros e objetivos a serem relevados na gestão da saúde bovina dentro da propriedade, e passíveis de serem auditados.
Ao mesmo tempo, reconheceria as unidades de produção de carne e leite que já investem na qualidade dos seus produtos, cuidam das questões ambientais e da qualificação do seu pessoal, executam os programas oficiais de controle de doenças, desenvolvem ações de vigilância epidemiológica das doenças do sistema nervoso, eliminam cadáveres corretamente por meio da incineração ou compostagem, utilizam somente produtos veterinários autorizados, observam o período de carência dos produtos, contam com assistência veterinária e têm seus animais rastreados.
Com toda certeza, esta seria uma verdadeira revolução qualitativa na produção animal brasileira, consolidando a confiança do consumidor interno e dos mercados importadores, evitando-se as possíveis sansões de ordem sanitária.
Referências bibliográficas
COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPÉIAS. Documento 301R0999. Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de maio de 2001, que estabelece regras para a prevenção, e o controle e a erradicação de determinadas encefalopatias espongiformes transmissíveis. Jornal Oficial n. L 147, de 31/05, p. 1-40, 2001.
DUTRA, I.S. Epidemiologia, quadro clínico e diagnóstico, pela soroneutralização em camundongo, do botulismo em bovinos no Brasil, 1989-2001. 2001. Tese de Livre-docência, Curso de Medicina Veterinária, Unesp, Câmpus de Araçatuba. 133p.
MOURA, J.A. Sanidade Animal no Mundo: Relatório Técnico sobre a 70ª Sessão Geral do Comitê Internacional da Organização Mundial de Saúde Animal, Paris, França, 2002. IICA, Brasília. 132p.
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Fonte: Anais do II Congresso Latino Americano de Nutrição Animal, realizado em São Paulo, em abril de 2006. Painel Manejo e Nutrição de Ruminantes.