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Produção de leite nas regiões de fronteira agrícola: o caso de Carlinda/MT

ESPAÇO ABERTO

EM 17/01/2005

20 MIN DE LEITURA

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Por Alexandre de Azevedo Olival e Andrezza Alves Spexoto1

1. Introdução

Atualmente torna-se cada vez mais evidente a importância da produção de leite nas regiões de nova fronteira no Brasil. Enquanto Estados tradicionais na produção de leite apresentaram nos últimos 12 anos um crescimento próximo à média do crescimento nacional (próximo a 3,5% ao ano), Estados até então inexpressivos na produção de leite apresentaram taxas de crescimento bastante elevadas. Este foi o caso dos Estados da região Norte e região Centro Oeste, entre eles o Mato Grosso.

Especificamente com relação a este Estado, o Gráfico 1 apresenta a produção de leite/ ano de 1990 a 2002, de acordo com o IBGE.


Observa-se que a produção de leite no Mato Grosso cresceu 118,63% durante o período de 1990 a 2002, um crescimento muito acima do crescimento nacional (próximo a 45% no mesmo período). Apesar de tal constatação, ainda não se conhece como funciona a dinâmica do leite nestas regiões de fronteira. Qual o perfil do produtor médio, suas dificuldades, seus desafios? Muitas vezes a discussão sobre a produção de leite acaba centralizada no eixo Sul - Sudeste, talvez pela importância que estes Estados ainda assumem na produção nacional. No entanto, os números atuais mostram que pode haver modificação na distribuição de leite no Brasil a um médio prazo. Isto faz com que seja de fundamental importância a inclusão destes novos Estados produtores na discussão sobre a produção de leite no país.

Sabendo disso, o Instituto Ouro Verde iniciou um projeto de pesquisa em um município típico desta região. Trata-se do município de Carlinda, na região Norte do Mato Grosso. Carlinda é um município 750 km distante de Cuiabá (aproximadamente 2.700 km de São Paulo), já dentro da área considerada como Floresta Amazônica. O projeto do Instituto tem como principal objetivo diagnosticar a situação da produção de leite no município, sendo que os dados servirão de base para futuras ações na região. O diagnóstico foi feito através de 161 entrevistas com produtores locais, em todos os setores do município. Procurou-se identificar tanto características quantitativas da produção (produção diária, área total, área de pastagens, número de vacas ordenhadas etc.) quanto qualitativas (problemas enfrentados, percepções sobre a produção de leite, desafios futuros etc.).

Atualmente Carlinda possui, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 12.296 habitantes, sendo 75% desta população residente na zona rural e somente 25% na zona urbana. Trata-se de um município evidentemente rural e que depende deste setor para a sua sobrevivência, daí a importância de pesquisas como esta.

O que chama atenção no município, assim como em inúmeros outros pertencentes a região dita de "fronteira agrícola", é a completa dependência da atividade leiteira, não apenas para os produtores mas para toda a economia local. É o leite o grande responsável pela movimentação do comércio local e regional; quando o leite vai bem, todo o município vai bem, quando o leite vai mal, o município segue o mesmo rumo. Desta forma, entender o perfil do produtor da região e suas demandas específicas torna-se fundamental para pensar estratégias de desenvolvimento regional. Para municípios como Carlinda, espalhados por toda a região Norte do país, entender a pecuária leiteira é o primeiro passo para assegurar um desenvolvimento pleno e que se mantenha ao longo dos anos.

Além disso, as regiões de fronteira agrícola são geralmente regiões ainda em formação, havendo muitos municípios com menos de 30 anos desde a sua fundação (Carlinda, por exemplo, foi emancipada há cerca de 10 anos). Este fato faz com que seja possível observar em conjunto os problemas típicos da produção de leite, comuns a praticamente todo o país, e também problemas específicos, típicos de uma região distante dos centros consumidores e ainda com graves problemas de infra estrutura. Por outro lado, por serem regiões ainda extremamente novas, pode-se pensar que ainda existe espaço considerável para a implementação de modelos alternativos de desenvolvimento rural, modelos que não sejam excludentes e sim capazes de abraçar os produtores familiares que predominam nestas regiões.

Desta forma, antes de mais nada, vale a pena discutir o processo de formação destes municípios e em especial a sua relação com a produção de leite. Como observaremos a seguir, muitos pontos ocorridos na história justificam o quadro socioeconômico atual.

2. Histórico da produção de leite de Carlinda

Carlinda foi emancipada no ano de 1994, mas sua origem se remete ao final da década de 70 e início de 80, uma vez que este município nasceu a partir de um projeto de assentamento do INCRA formado durante este período. Coube a este órgão selecionar agricultores cooperados junto a Cooperativa Agrícola de Cotia (CAC) provenientes basicamente do Sul do Brasil, a partir de áreas consideradas de "pressão urbana". Da mesma forma, muitos outros assentamentos em toda a região Norte do país foram criados com este objetivo: retirar indivíduos de áreas consideradas populosas e ocupar terras até então inabitadas do Brasil (fazendo parte da política de "ocupar para não entregar"). Muitos destes assentamentos acabaram tornando-se municípios posteriormente.

O projeto de assentamento de Carlinda foi considerado modelo uma vez que contava com toda a infra estrutura no seu planejamento (escolas a cada 8 km nas estradas vicinais, postos de saúde, núcleos habitacionais entre outros pontos). Além disso, a produção de culturas perenes nativas da região estava destinada à exportação, ou seja também estaria com o mercado garantido (produtos como o cacau, o cupuaçu, o guaraná entre outros eram o foco dos planejadores do assentamento). A assistência técnica estaria nas mãos da própria CAC, que inclusive planejou a implementação de uma estação experimental na região. Nota-se que a pecuária leiteira não estava nos planos iniciais do assentamento.

Infelizmente, como é comum de observar no Brasil, o planejamento não foi traduzido para a realidade. A falta de crédito aos agricultores, a dificuldade em implementar um sistema de assistência técnica e extensão rural efetivo aliadas ainda à inaptidão dos produtores para a produção de frutas regionais e a degradação do solo resultaram em sérios problemas para os assentados. Com a queda na produtividade e impossibilidade de comercialização dos produtos, o processo natural para a sobrevivência foi a migração para atividades tradicionais - é neste momento que surge a pecuária leiteira como saída para a região, tendo em vista que grande parte dos assentados vinha de regiões onde esta atividade desempenhava um papel econômico importante (norte e oeste do Paraná).

E a produção de leite chegou com bastante força não apenas em Carlinda, mas em toda a região Norte de Mato Grosso (municípios que sofreram o mesmo processo de colonização). Para exemplificar, os gráficos 2 e 3 mostram a evolução da produção de leite neste município de 1997 a 2002.


Observa-se que, desde a sua emancipação em 1997, Carlinda só apresentou taxas crescentes de produção, com um aumento na ordem de 101,35% (muito acima da média brasileira e próxima a média do Estado do Mato Grosso). No entanto, observa-se que este crescimento foi conseguido quase que inteiramente através da aquisição de animais uma vez que o número de vacas ordenhadas cresceu ainda mais durante o mesmo período (138,03%), ou seja, o aumento de produção ocorreu na região basicamente pelo aumento do número de animais em lactação. Exatamente o inverso do que vem ocorrendo no Brasil, onde o aumento de produção ocorre, via de regra, concomitantemente à redução do número de vacas ordenhadas, revelando um claro aumento de produtividade.

Para demonstrar mais ainda este fenômeno, basta observar o gráfico que apresenta a evolução da produção de leite/vaca ordenhada/ano (litros/ vaca ordenhada/ ano) neste mesmo período. Estes dados estão apresentados no Gráfico 3.



O que os gráficos revelam é que, ao contrário da tendência observada no país, não houve incremento de produtividade em Carlinda. Observando os dados de todos os municípios do Norte do Mato Grosso, região denominada de Portal da Amazônia, vamos chegar as mesmas conclusões: a produção cresce constantemente, mas sempre através da aquisição de novos animais (Gráfico 5). A produção de leite na região e o número de vacas ordenhadas nesta região crescem na faixa de 14% ao ano. Com relação a Carlinda, após um primeiro momento com produtividade na faixa de 970 litros/animal ordenhado/ano, esta se manteve constante, sempre na casa de 828 litros/animal/ano (abaixo da média da região, que é de cerca de 1.100 litros/ vaca/ ano). Ou seja, não há aumento na produção individual das vacas mas sim há aumento no número de vacas sendo ordenhadas. Pode-se concluir que são dados típicos de uma região na qual a produção de leite apresenta-se como uma saída para os produtores locais, mas ainda carente de uma estruturação maior.


3. Das questões técnicas para a social: entendendo a situação do pequeno produtor de leite na região norte do Mato Grosso.

Para demonstrar a importância que a produção de leite assumiu em Carlinda, basta observarmos que 73,29% dos produtores entrevistados durante a pesquisa relataram que a produção de leite é uma das principais fontes de renda para a propriedade. Considerando os dados da população e do número de propriedades rurais, isto significa que cerca de 1/3 das propriedades dependem, de alguma maneira, diretamente da produção de leite para a sua sobrevivência. No entanto, deve-se destacar que grande parte dos produtores citou mais de uma fonte de renda considerada como principal. Isto revela que, assim como em outras regiões do país, o produtor de Carlinda utiliza a diversificação de atividades como uma estratégia de sobrevivência, ficando difícil pensar em uma atividade considerada "principal". Cabe destacar que em 100% das propriedades a única mão de obra envolvida com o leite é a familiar.

Em segundo lugar, de maneira surpreendente, aparece a "aposentadoria" e a "prestação de serviços", como outras fontes de renda consideradas fundamentais (com 42,24% dos entrevistados citando uma destas opções). Para entender o porquê desta relação temos que analisar outros dados.

Destacou-se a elevada idade média do produtor na região: mais de 45% dos produtores possuem mais de 50 anos de idade. Apenas 14% dos produtores têm até 29 anos - menos de 5% dos produtores tem até 20 anos. A idade média ficou próxima aos 50 anos. Outro ponto interessante é que poucos jovens permaneceram nas propriedades. A maior parte dos indivíduos com menos idade tende a ir para outros municípios para adquirir novas terras (repetindo o processo de colonização) ou ir para o centro urbano dos municípios vizinhos, principalmente Alta Floresta. Desta forma, além de uma idade avançada, o produtor médio de Carlinda não conta com o auxílio dos filhos diretamente no trabalho de produção. Pode-se observar então que existe uma migração dos jovens para fora da propriedade, embora muitas vezes permaneçam no meio rural. Qual a relação deste fato com a produção de leite?

Em primeiro lugar temos a dificuldade em planejar projetos futuros para a região. Sem a mão de obra jovem e sem a perspectiva de retorno destes jovens à propriedade, torna-se difícil planejar com os produtores um cenário para daqui 10 anos, por exemplo. É graças a estes fatores que qualquer planejamento realmente preocupado com a produção familiar de leite (ou outro produto qualquer) deve considerar o aspecto da educação rural e perspectivas para os jovens no meio rural. Apesar da infra estrutura física de escolas na região observa-se uma carência bastante grande na qualidade do ensino oferecido, sendo ainda um ensino padronizado e direcionado para a realidade urbana. Muitas vezes nos preocupamos em traçar grandes planos para a produção familiar mas nos esquecemos que é necessário pensar na pessoa que habitará o meio rural no futuro. É mais lógico e mais barato garantir uma formação adequada no meio rural do que correr atrás do prejuízo depois, o que, aliás, vem sendo feito sistematicamente em praticamente todas as regiões do país, salvo importantes casos pontuais.

A área da propriedade média de Carlinda é de 29,22 hectares. Cerca de 20% dos produtores possuem mais do que 30 hectares de terras. Foi encontrada associação estatisticamente significativa entre os produtores que possuem entre 10 a 29 hectares e aqueles que relataram ter no leite a principal atividade econômica, ou seja, o produtor típico de Carlinda, aquele tem no leite atividade economicamente importante (podendo ter também outras atividades), possui uma área de 10 a 29,9 hectares. Estas propriedades possuem cerca de 70% da área destinada ao pastejo dos animais.

Cada produtor produz diariamente uma média de 39,54 litros. E esta média não é deturpada pela existência de grandes produtores e pequenos, como a média brasileira, por exemplo. Na região todos são pequenos produtores, quando comparados a produtores ditos "especializados" de outras regiões do país (somente 3,4% dos produtores de Carlinda produzem mais de 150 litros de leite/dia). Pode-se pensar de outra forma: na região, o grande produtor é aquele que produz cerca de 150 a 300 litros de leite (maiores produtores da região). Deve-se ressaltar que quase 30% dos produtores entrevistados tinham uma produção de até 20 litros de leite/dia. Observa-se, assim, tratar-se de uma região onde há grande capilarização da produção: muitos produtores produzindo individualmente muito pouco, sem haver grandes discrepâncias.

O número médio de vacas ordenhadas em cada propriedade é de 9,06, sendo que cada vaca contribui com cerca de 4,37 litros/dia para a produção total da propriedade. Deve-se destacar que existe uma enorme sazonalidade de produção, com reduções de até 80% no volume produzido entre os meses de chuva e seca. Isto faz com que a renda média obtida com o leite seja baixa e extremamente irregular durante o ano, sendo estas preocupações constantes com os produtores locais.

Outros índices podem ser calculados a partir destes dados. Destaca-se, porém, que são índices aproximados uma vez que não levam em conta a sazonalidade, sendo elaborados utilizando como referência a produção de leite na época das chuvas:


Considerando que os dados estão extremamente super valorizados (pois consideram a produção da época de chuvas), pode-se dizer que a produção/hectare é extremamente baixa - cada hectare de terra produz uma renda muito pequena durante o ano para o produtor, o que leva a necessidade de abrir mais terras para aumentar a produção uma vez que cada animal ocupa uma área de pasto muito grande (2,4 hectares). Este é o processo que vem ocorrendo desde a formação do assentamento e que contribui, em parte, para a degradação ambiental que pode ser observada na região. A cada novo financiamento, novos animais e novas áreas de pastagens. É desta forma que a produção supre as necessidades dos produtores e do município. No entanto, problemas financeiros e ambientais acabam por minimizar esta forma de crescimento.

Mas porque será que a produtividade é tão reduzida na região? Vários fatores técnicos são apontados pelos produtores para explicar tal fato, sendo, talvez, o mais grave deles a degradação de pastagens. A falta de um manejo racional de pastagens aliada à infestação pela cigarrinha das pastagens e a diferença de chuvas durante o ano contribuem para este processo. Além disso, dos 161 produtores entrevistados apenas 1 relatou possuir algum tipo de alimentação especial para o período seco. Parte dos produtores oferece um complemento com cana para os animais (sem uréia); no entanto muitos produtores oferecem somente o pasto durante todo o ano.

Outro problema, não mencionado pelos produtores mas observado durante as visitas pelas propriedades, foi a falta de mineralização dos animais: o oferecimento de sal mineral é, via de regra, insuficiente e feito de maneira não adequada (é comum ouvir relatos de uma suposta doença que acomete os animais e que provoca perda de dentes, animais fracos e que ingerem paus e pedras do pasto e que pode levar à morte).

No entanto, talvez o mais contundente entrave para o desenvolvimento sustentável do setor seja a falta de apoio às atividades produtivas. Quando indagados sobre a assistência técnica, 96,27% dos produtores informaram que não recebem qualquer tipo de assistência regular, seja pelos órgãos oficiais (que existem na região) ou pela assistência técnica privada. É interessante observar o nível de insatisfação com os serviços oferecidos na região: muitos produtores não compreendem o porquê devem deixar uma taxa relativa à assistência técnica quando conseguem algum financiamento se esta assistência, segundo os próprios, não aparece na propriedade (quando muito, de acordo com os produtores entrevistados, se atém a um trabalho burocrático de elaboração teórica de projetos, sem acompanhamento prático). Apesar da imensa insatisfação, nenhuma medida é tomada para contornar este quadro. A assistência técnica é encarada como uma atividade pontual e emergencial.

Este fato também pode explicar o porquê de quando indagados sobre quem seria a referência sobre produção animal na região os produtores terem citados as lojas agropecuárias, único ramo que, de alguma maneira, procura trabalhar em conjunto com o produtor (mais de 60% dos produtores buscam apenas as lojas agropecuárias para resolver qualquer problema na produção).

Outra situação comum na região diz respeito ao preço do leite. Toda a produção de Carlinda é captada por um dos 3 laticínios que existem na região, 2 no município de Colíder, distante cerca de 100 km (estes possuem um tanque resfriador para a coleta diária no município) e 1 no município de Alta Floresta, distante cerca de 30 km. Quando a pesquisa foi iniciada, em Maio de 2004 o preço do leite pago ao produtor pelos laticínios girava na ordem de R$ 0,16/litro. No momento final da pesquisa, em Outubro do mesmo ano o preço estava R$ 0,30/litro. Algumas tentativas de melhoria do preço do leite, como a entrega através de grupos de produtores, estão sendo constantemente combatidas pelos laticínios.

Com respeito à qualidade do leite, não há qualquer referência no município: não há programas de pagamento por qualidade e a coleta ainda é 100% feita em latões, latas de óleo vazias, baldes ou panelas. Não há relatos freqüentes por parte dos produtores de perda do leite devido à acidez, embora seja comum ouvir estes relatos dos encarregados pelo transporte dos latões (leiteiros) ou pelos laticínios - o argumento utilizado para a manutenção de um preço baixo é justamente a grande perda na captação do leite. Começa a existir um rumor sobre uma "possível necessidade de entregar leite frio" para o laticínio a partir do ano quem, mas ainda nada foi feito de efetivo no município sobre esta questão.

Um dos pontos questionados aos produtores durante as visitas foi com respeito aos motivos para existirem tantos problemas na produção; das doenças até a baixa produtividade dos animais. Queríamos com isso avaliar qual a percepção dos produtores sobre o ponto crítico, sobre o primeiro problema a ser combatido. Para nossa surpresa a resposta que mais escutamos foi (aqui exemplificada por uma frase tirada durante uma das 161 conversas):

"Sabe Alexandre, aqui nossos animais são fracos e a produção é pouca porque a gente é tudo pobre."


Esta consideração por si só daria uma bela reflexão sobre a percepção popular sobre os problemas da produção rural. No entanto, apenas para não perder o foco da discussão cabe destacar o seguinte: para os produtores entrevistados os problemas técnicos estão intimamente relacionados aos problemas sociais e estruturais da região, sendo que a pobreza e todas as questões a ela relacionadas não são vistas como conseqüências, mas sim causas para os baixos índices técnicos encontrados. Em outras palavras: a perspectiva popular para a existência de tantos problemas é o fato dos produtores locais serem pobres, não terem acesso aos recursos financeiros e humanos que poderiam possibilitar o seu crescimento. Com certeza não se trata de uma visão equivocada da realidade mas que pode não concordar com a visão técnica, na qual os problemas seriam simples de serem resolvidos.

Aqui cabe uma reflexão importante: dentro de uma visão técnica, a solução para alavancar de vez a produção de leite de Carlinda (e com isso alavancar o crescimento do município, que atualmente possui um Índice de Desenvolvimento Humano abaixo do índice do Estado do MT) seria extremamente fácil: basta dar sal para os animais; melhorar o manejo das pastagens; fazer um amplo programa de suplementação durante o período seco; incentivar a inseminação artificial; melhorar a qualidade do leite e outras recomendações técnicas que com certeza muitos leitores estarão pensando. A questão a ser respondida é se realmente estas novas informações conseguirão resolver a totalidade dos problemas que o município enfrenta: a questão os transportes, da saúde, da educação, da dominação exercida pelos laticínios na região, da falta de assistência técnica oficial (e que é paga, porém inoperante).

Desvincular a questão técnica destas outras questões é reproduzir um modelo de desenvolvimento preocupado unicamente com a produção e não com os produtores. Em outras palavras: quando pensamos em programas coletivos, temos que pensar em maneiras dos benefícios serem apropriados pela maioria e não por um grupo seleto de pessoas.

No entanto, algumas pessoas podem classificar os produtores de Carlinda, ou mesmo os demais da região, como "não especializados" ou mesmo "não profissionais", ou seja, não fazem parte do "agronegócio brasileiro". Fazemos uma leitura diferente para a questão. Existe um grande número de produtores que dependem intimamente do leite para a sua sobrevivência, apesar de garantirem alguma renda com outras atividades agrícolas ou não agrícolas. São sim profissionais do leite e especializados em produzir, porém respeitando a estrutura que lhes foi oferecida. É por isso que os problemas técnicos vivenciados, sem dúvida alguma gravíssimos e que comprometem a renda e a qualidade de vida das pessoas, não podem ser tratados simplesmente como questões técnicas. Suas raízes estão fincadas na estrutura social a qual os produtores da região estão inseridos.

Programas despreocupados com estas questões, cujo foco está somente na modernização das propriedades, provavelmente não chegarão a todos os produtores da região. Com certeza estes programas, entre eles o "treinamento para a melhoria da qualidade do leite", conseguirão resolver os problemas de alguns produtores, o que trará reflexos na produção total do município. No entanto, o que se busca para uma região nova na qual a produção de leite está se estruturando não é a elitização da produção, mas sim uma forma de construir e permitir que os benefícios cheguem ao maior número de produtores possíveis. Uma região que depende dos produtores rurais não pode se dar ao luxo de perder produtores por conta de uma "especialização" da produção (embora não se negue a necessidade de adequação técnica da produção local). A própria história do Brasil revela que resolver o problema da produção não está vinculado necessariamente à resolução dos problemas dos produtores.

Estes comentários são importantes pois, apesar da particularidade local, os modelos de desenvolvimento tidos como exemplares para a grande maioria dos produtores entrevistados são modelos claramente "modernizantes", que entendem a técnica como a saída para os problemas da região: é neste sentido que a aquisição de animais com mais aptidão leiteira (principalmente da raça holandesa) e a refrigeração do leite são vistas como medidas prioritárias pelos produtores e técnicos locais - a salvação e garantia da sustentabilidade da pecuária leiteira na região. A repetição tecnológica.

Não se trata de negar que estes são pontos cruciais e que devem ser combatidos urgentemente. Trata-se, no entanto, unicamente de entender que não são respostas milagrosas à situação dos produtores da região. O que a história da produção de leite em outros Estados mostra é que, tão fundamental quanto aumentar a produtividade, é o trabalho conjunto dos produtores, do planejamento à ação final para garantir o desenvolvimento com inclusão social. As melhores respostas não são aquelas importadas ou padronizadas, mas sim aquelas construídas pelas pessoas. Acreditar que somente informações e técnicas garantirão a sobrevivência do produtor familiar de leite é desconsiderar toda a história e esforço dos produtores de todo o Brasil que, por razões estruturais, não têm acesso a estas técnicas. Ao falarmos que este produtor de leite não é especializado estamos reproduzindo um discurso que em nada contribui para o desenvolvimento de uma classe tão oprimida como é o produtor familiar de leite (isso sem falar nos assentados da reforma agrária...).

Neste cenário a questão poderia ser resolvida através de projetos que conciliassem movimentos sociais e discussão técnica da produção. Projetos que transformam as questões técnicas em questões políticas e comunais. Isso porque é preciso resgatar o potencial dos produtores para a resolução dos seus próprios problemas, em um trabalho de união e, ao mesmo tempo, pressão aos órgãos responsáveis por parte da infra estrutura existente (ou inexistente). Ignorar esta questão é ignorar as pessoas e preocupar-se unicamente com técnicas vazias. O que a região necessita é primeiro pensar e trabalhar com as pessoas para depois pensar nos projetos específicos. E o interessante é que existem, dentro da própria região de fronteira agrícola, modelos de desenvolvimento diferenciados, preocupados de igual maneira com a inserção social do produtor e com a sua produtividade. No entanto, estes modelos acabam diluídos dentro da realidade nacional. Nos próximos artigos traremos algumas propostas e ações que estão sendo discutidas para garantir um futuro promissor para todas as pessoas da região Norte do país.

________________________________________________________
1 Médicos veterinários, diretores do Instituto Ouro Verde - Alta Floresta, MT.

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FERNANDO ENRIQUE MADALENA

BELO HORIZONTE - MINAS GERAIS - PESQUISA/ENSINO

EM 18/01/2005

Gostaria de apoiar o enfoque abrangente dos autores. Parabéns e ficamos a espera das outras partes prometidas. Há tempos que estou incomodado pelo uso que vinha sendo feito da expressão "produtor profissional", para se referir a quem trabalha utilizando certas técnicas de produção (as do primeiro mundo), e por isso gostei de ver vocês resgatando essa expressão para seu verdadeiro sentido. Aí fui consultar meu Aurélio de cabeceira, que diz: "Profissional. Que exerce uma atividade por profissão ou ofício". Profissão. Meio de subsistência remunerado resultante do exercício de um trabalho, de um ofício". Assim, seus pequenos produtores, mesmo pobres e sem recursos técnicos, são tão profissionais quanto qualquer outros. Discutir palavras pode parecer trivial frente à dimensão dos conceitos que vocês expressam, mas é também necessário, para evitar deturpações.

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