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O leite nas novas fronteiras agrícolas: Construindo uma proposta de ação para a região do portal da Amazônia

ESPAÇO ABERTO

EM 24/02/2005

23 MIN DE LEITURA

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Por Alexandre de Azevedo Olival e Andrezza Alves Spexoto1

1. INTRODUÇÃO

O principal objetivo deste texto é discutir sobre algumas estratégias alternativas de desenvolvimento da produção de leite para o território do Portal da Amazônia. No entanto, para isso, torna-se necessária a discussão de uma série de questionamentos anteriores. Isto porque, sendo um plano alternativo, é importante demonstrar a lógica no qual foi construído, suas bases teóricas e as experiências em que foi baseado.

Assim, em primeiro lugar, será feito um retrato através da avaliação dos pontos fortes e fracos da fronteira agrícola brasileira para a produção de leite. Esta é uma reflexão importante, pois poderá contextualizar ao leitor as questões atualmente discutidas na região, destacando ainda como o leite já é uma realidade para os municípios que formam o território. O próximo ponto discutido é justamente como otimizar os pontos fortes e minimizar os fracos, além de definir a prioridade de ação, em um verdadeiro processo de planejamento estratégico para a região. Pretende-se demonstrar que as questões a serem combatidas têm pouca relação com a modernização e muita relação com as questões sociais e estruturais do território. Apresentamos também todo o referencial utilizado para a construção da proposta de ação na região, que é apresentada na última parte do texto, com destaque para a metodologia adotada e seus objetivos.

2. DEFININDO O CONTEXTO LOCAL: O QUE SIGNIFICA ESTAR EM UMA REGIÃO DE FRONTEIRA AGRÍCOLA?


O Território do Portal da Amazônia é uma região compreendida por 16 municípios localizada ao norte do Estado de Mato Grosso. O município mais próximo da capital do Estado localiza-se a cerca de 650 km, enquanto o município mais distante se localiza a 1.100 km de Cuiabá. Trata-se de uma área nova, com colonização a partir da década de 70 e que está compreendida dentro do chamado "arco do desflorestamento da floresta amazônica", ou seja, um ponto de pressão onde de um lado existem regiões ainda de preservação natural e de outro o avanço da agricultura e pecuária.

Praticamente todos os municípios deste território formaram-se a partir de projetos de colonização, com a estruturação de assentamentos públicos e privados que posteriormente tornaram-se municípios. Apesar da produção de leite não estar nos planos de praticamente nenhum município, alguns dados atuais podem demonstrar de maneira muito precisa que o leite vem sendo apontado como uma das saídas para a produção rural local. Conforme demonstrado no Gráfico 1, observa-se que no período de 1996 a 2002 houve um crescimento na ordem de 98% do volume de leite produzido, ou seja, um crescimento médio de 12,30% ao ano. No entanto, conforme o Gráfico 2 demonstra, este crescimento se deu pelo aumento do número de vacas ordenhadas. De acordo com este gráfico, as vacas ordenhadas cresceram em 12,74% ao ano, resultando em um crescimento total de 1996 a 2002 de 101,88%, muito próximo ao crescimento da produção. Assim, observa-se uma variação extremamente pequena na produtividade dos animais da região. Os dados relativos a produção/ vaca ordenhada/ ano estão no Gráfico 3. De acordo com estes dados a produtividade caiu cerca de 1,7% no período (cerca de 0,21% ao ano). Todos os gráficos foram elaborados a partir dos dados da Pesquisa Pecuária Municipal do IBGE.

Pode-se perceber então que o crescimento ocorreu e ainda ocorre de uma forma horizontal, ou seja, através da aquisição de novos animais. Estes animais devem ser alojados em áreas novas, tendo em vista a baixa lotação animal e produção/ hectare, agravando a questão ambiental, tão marcante na região. Deve-se destacar que não é somente a pecuária a responsável pelos agravos ao meio ambiente em todo o arco do desflorestamento. Contribuem para este fator a produção de soja (que pressiona os produtores de gado a irem para áreas distantes) e a indústria de madeira, além de outras questões que envolvem o tema.



Uma análise empírica dos pontos fortes e fracos pode dar alguma dimensão das questões atualmente discutidas no território. Conforme destacado por Fonseca e Carvalho (2004), talvez um dos principais pontos favoráveis da produção de leite na fronteira agrícola é a possibilidade de baixo custo de produção, tanto do ponto de vista dos custos fixos (preço da terra, por exemplo) quanto de alguns custos variáveis, principalmente devido a grande possibilidade de alimentação a baixo custo. Além disso, a mão de obra utilizada é basicamente familiar, formada a partir da colonização por migrantes de origem dos Estados do Sul, com tradição neste tipo de produção. A pecuária leiteira permite ainda uma renda contínua durante o ano, o que grande parte das culturas não permite. Em uma região onde a aposentadoria é uma das maiores fontes de renda, a garantia de um ganho extra pelo leite torna-se fundamental para a qualidade de vida. Do ponto de vista ambiental, a atividade, que já foi vista como um perigo ao meio ambiente, começa a ser pensada como estratégia de impedimento da progressão do arco do desflorestamento, através da implementação de sistemas silvipastoris e manejo ecológico de pastagens. A idéia é garantir uma renda adequada aos produtores de leite, criando um "cinturão" de proteção à floresta amazônica. Estas características podem explicar em parte o porquê a cada ano a produção de leite cresce em todo o território.

No entanto, é preciso também considerar os limitantes que são encontrados na região. Um dos primeiros pontos é a ineficiência tecnológica, ou seja, atualmente cada produtor produz muito pouco e possui uma quantidade de animais muito grande. A degradação das pastagens talvez seja a questão técnica mais importante a ser combatida, tanto do ponto de vista da eficiência de produção quanto do ponto de vista ambiental (pois quanto mais área for necessária para a produção de leite, menor será a preservação ambiental). Além disso, problemas estruturais como transporte (estradas inacessíveis parte do ano), educação e saúde tornam problemática da vida do produtor familiar de leite no território. Talvez um dos grandes problemas enfrentados é o elevado custo do frete, que ultrapassa 30% do preço final do leite. Poucas empresas compradoras de leite, distância dos grandes centros consumidores e falta de ações dos órgãos de extensão rural complementam o quadro.

Assim, considerando que a produção de leite já é uma realidade na região mas enfrenta graves problemas estruturais, uma possível estratégia de desenvolvimento para todo o território é o fortalecimento da produção de leite. Para que ocorra este fortalecimento, entretanto, é fundamental que as questões técnicas sejam trabalhadas em conjunto com as questões estruturais e sociais objetivando não apenas o crescimento do volume de leite produzido, mas acima de tudo, a melhoria da qualidade de vida dos produtores da região. O que se busca não é o desenvolvimento de alguns poucos produtores mas sim, que o leite sirva como modelo para a agricultura familiar da região. Este é o desafio a ser vencido.

3. REFERENCIAL TEÓRICO PARA PROPOR UM MODELO DE INTERVENÇÃO NA REGIÃO


Grande parte dos programas e projetos de desenvolvimento voltados ao setor rural parte de algumas variáveis consideradas fundamentais. Dentre estas variáveis encontram-se os recursos financeiros (capital, representado pelo crédito rural), recursos humanos (capacidades e habilidades dos indivíduos envolvidos, sendo esta uma função ligada aos órgãos de extensão rural) e recursos físicos (acesso a terra e bens de produção). É fácil perceber a presença destes 3 componentes na maioria dos programas de desenvolvimento da produção de leite. Um exemplo comum são os programas para aquisição de equipamentos (como tanques de resfriamento, por exemplo), geralmente acompanhados de créditos subsidiados e programas de capacitação de produtores.

No entanto, basta observar, para o perfil dos produtores de leite no Brasil, que iremos facilmente perceber que nem todos conseguem apropriar-se dos benefícios gerados por tais programas. Na verdade, uma parcela muito pequena acaba "avançando", enquanto o restante fica para trás, permanecendo nas mesmas condições que antes, caindo na informalidade ou abandonando a atividade. São os famosos "produtores não profissionais". A questão que aparece então é: por que nem sempre estes programas garantem o desenvolvimento dos produtores? Em outras palavras: quais os limitantes que existem que fazem com que, ao se oferecerem os mesmos recursos físicos, financeiros e humanos, exista uma variação de respostas bastante significativa? Será algo relacionado ao tipo de tecnologia oferecida (existiriam práticas ideais a serem adotadas por todos os produtores)? ou seria alguma coisa relacionada ao perfil do produtor (existiriam produtores mais avançados e outros menos avançados)? Ou será que existem mais variáveis neste jogo que não estão sendo consideradas?

Talvez um dos grandes limitantes desta forma de encarar o desenvolvimento rural seja não considerar o aspecto político na distribuição dos benefícios, ou seja, desconsiderar que dentro de um sistema no qual há desigualdade de forças, indivíduos (ou grupos) com maior poder tendem a centralizar os benefícios (entende-se benefícios como sendo desde a influência para decidir políticas públicas até mesmo a possibilidade de geração de renda a partir de uma certa tecnologia).

A cadeia do leite é um exemplo que pode ser muito bem utilizado para entender este fenômeno. Sabe-se da força desigual que existe dentro da cadeia como um todo. Elos mais fortes apropriam-se de muitos benefícios gerados pelos outros elos. Além disso, a desigualdade dentro de um mesmo elo faz com que seja praticamente impossível a união por interesses comuns, gerando uma grave crise de representatividade (basta nos perguntarmos quem seria o produtor típico do Brasil. Será que ele tem acesso às formas de representação disponíveis?) , ou seja, mesmo dentro de uma mesma classe os benefícios são aproveitados de maneira desigual.

Assim, respondendo a questão, a variação de resultados não se deve as características intrínsecas da tecnologia a ser difundida, seja ela granelização, manejo de ordenha ou alimentação a pasto, visto que isto seria resolvido com a generalização de diferentes padrões produtivos (o que é extremamente fácil tendo em vista a tecnologia de comunicação atualmente disponível). Na verdade, o problema tecnológico é o efeito e não a causa do processo de subdesenvolvimento. A disparidade tecnológica é fruto da diferença de acesso ao conhecimento que decorre de impedimentos de ordem econômica, social e cultural e que se perpetuam ao longo do tempo. Não descartando diferenças individuais que podem explicar o comportamento diferenciado entre produtores, os fatores estruturais, compartilhados por um grande número de produtores, acabam pesando muito mais. Esta é a razão para o processo de "seleção natural" dos produtores de leite.

A questão a ser respondida agora é: existe alguma forma de modificar este quadro?

O que diversos estudos vêm mostrando é que em regiões dinâmicas, nas quais o crescimento econômico é compartilhado de forma mais homogênea, existia previamente uma densa rede de relações entre serviços e organizações públicas, iniciativas empresariais urbanas e rurais, agrícolas e não agrícolas. Assim, mais importante que as vantagens competitivas dadas por atributos naturais, de localização ou setoriais é a proximidade social entre os diversos "atores" que permite a valorização do conjunto do ambiente em que atuam, servindo assim de base para empreendimentos inovadores. Neste sentido, as estruturas sociais devem ser vistas como recursos, de forma semelhante a um ativo de capital de que os indivíduos podem dispor - nasce então o conceito e a denominação de "capital" social (ABROMOVAY, 2000).

Conforme apresentado em BRASIL (2003) pode-se encontrar regiões onde as dificuldades naturais (clima e solo) foram vencidas pela capacidade organizativa, ou seja, pela construção de uma rede de relações que permitiu a ampliação das possibilidades de valorização da produção. Ao mesmo tempo o inverso também vale, ou seja, regiões onde os recursos naturais eram abundantes mas, devido a desarticulação social, estes benefícios não puderam ser apropriados pela maioria da população, ficando centralizados nas mãos de poucos. Na verdade a história brasileira é um grande exemplo do segundo caso, ou seja, de como a desarticulação entre setores leva a depauperação progressiva da sociedade como um todo.

Um exemplo atual pode ser encontrado no território do Portal da Amazônia. Ao mesmo tempo em que o preço do leite pago ao produtor em uma tradicional cooperativa da região (formada e administrada de forma extremamente eficiente por produtores rurais) estava na ordem de R$ 0,50, no município vizinho, distante somente 70 km mas onde não existe qualquer forma de organização comunitária direcionada para a produção de leite, o mesmo litro de leite era pago a R$0,36. Uma diferença de 26% explicada unicamente devido a capacidade organizacional dos produtores, ou seja, devido unicamente a questões sociais (incluindo o comprometimento entre produtores, confiança, acesso a informação entre outros pontos).

De forma mais técnica, Harpham et al. (2002) conceitua capital social como sendo o grau de conexão e a quantidade e qualidade das relações sociais de uma população. Quanto maiores e melhores estas relações sociais dentro de uma comunidade, maior será a capacidade desta comunidade em usufruir dos seus recursos para a melhoria da qualidade de vida. Para os autores, o capital social possui 2 componentes fundamentais: um estrutural, relacionado ao que as pessoas fazem dentro de uma comunidade (atividades produtivas desenvolvidas e seu grau de inter-relação), e um componente cognitivo, relacionado ao que as pessoas sentem, ou seja, como percebem os fenômenos da reciprocidade, compartilhamento e confiança entre os membros da comunidade. Este capital deveria ainda ser considerado de forma horizontal (capital social dentro da comunidade) e de maneira vertical (capital social relacionado à capacidade da comunidade em relacionar-se com instituições públicas e privadas exteriores a ela).

É interessante observar que grande parte das características que formam o conceito de capital social podem ser enquadradas como aspectos culturais, relacionados aos valores e percepções existentes dentro de cada comunidade. Desta forma, fortalecer a cultura local, permitindo que a comunidade trabalhe de forma organizada em torno de um objetivo comum, compartilhando valores e uma visão de mundo específica e com canais de comunicação que possibilitem um diálogo com instituições públicas e privadas, internas e externas a ela, seria um caminho para garantir a qualidade de vida das pessoas desta comunidade uma vez que os benefícios gerados por este processo poderiam ser distribuídos da melhor forma possível dentro da própria comunidade. Ao contrário, ações que procuram substituir os valores locais por valores exteriores, quebrando com a estrutura social existente, priorizando determinado setor em detrimento de outro, tenderiam a "selecionar" os produtores, ou seja, aqueles que, por motivos muito mais individuais que coletivos, adotassem os novos valores centralizariam também os benefícios, permanecendo assim na atividade.

Outro exemplo relacionado diretamente à cadeia do leite pode ser levantado. Atualmente fala-se muito da necessidade de união entre produtores, seja na forma de associações ou cooperativas. Trazendo o referencial de capital social, pode-se dizer que tão ou mais importante do que as instituições formadas (cooperativas ou associações que nada mais são do que tecnologias de organização da comunidade), será o comprometimento de cada integrante e sua capacidade de relacionamento com agentes externos (o que inclui obviamente a capacidade administrativa) que garantirá o sucesso do empreendimento. Comprometimento, confiança, responsabilidade e eficiência: estes talvez sejam sim os responsáveis pelo sucesso da organização dos produtores e não apenas a formalização de uma instituição na forma de uma Associação ou Cooperativa. Fica claro assim que os resultados originados das tecnologias de produção estão submetidos a regras maiores, que não dizem respeito ao indivíduo (produtor), mas sim a sua comunidade com um todo.

Apesar de ser ainda uma área extremamente carente de trabalhos, o estímulo a formação de capital social parece ser uma saída viável para possibilitar o desenvolvimento sustentável das comunidades rurais, respondendo então a questão anteriormente colocada. Alguns trabalhos que exemplificam e aprofundam esta idéia podem ser encontrados em Mayorga et al. (2004) e Reis (2003).

Finalizando, um último aspecto precisa ser trabalhado. Por que não simplesmente repetir fórmulas já realizadas em outros países focando todo o processo de desenvolvimento na modernização das propriedades e deixando o mercado conduzir a mão de obra excedente para outros setores, como aliás foi feito nos países considerados modelos de produção? Por que deve-se ter uma preocupação especial com a produção familiar de leite? Em outras palavras, será que a sociedade não se tornaria melhor para todos caso houvesse esta seleção de produtores? Estas questões são importantes, pois, caso chegássemos a conclusão que realmente é interessante para a sociedade a migração dos produtores de leite para outro setor, não haveria motivo para implementar ações diferenciadas, bastaria deixar o bom e velho mercado ajeitar todos em seus lugares.

No entanto, para responder a esta questão um primeiro ponto deve ser destacado: o mercado não é uma entidade criada por passe de mágica ou Dom da natureza. Ele resulta de uma forma específica de interação social (BRASIL, 2003). Desta forma, nem sempre o mercado caminha de acordo com o interesse da maioria, mas sim de acordo com o interesse dos grupos com maior poder social. Acreditar que a exclusão da atividade leiteira repetirá, obrigatoriamente, os mesmos resultados de outros países é, no mínimo, ingenuidade, tendo em vista que nossa estrutura social é bem diferente da estrutura dos países considerados como referência.

Deve-se destacar ainda que a agricultura familiar representa uma força econômica e social fundamental ao país. Estima-se que mais de 30% da produção de leite venha de estabelecimentos familiares. Este fato demonstra que a questão da exclusão deve ser discutida com seriedade e compromisso, pois trará não somente impactos sociais mas também econômicos - conforme destacado por Veiga (1997) o crescimento econômico do Brasil passa, obrigatoriamente, pela agricultura familiar.

A questão acima mencionada envolve a relação entre "modernização do setor leiteiro e desenvolvimento da sociedade". Pois bem, tratando-se de um aspecto mais "macro" (sociedade), cada vez menos se fala em desenvolvimento através de setores específicos (por exemplo: produção de leite). O que se busca atualmente é uma forma de integrar os diversos setores em uma proposta de ação construída de maneira conjunta e que represente os ideais de diversos segmentos da sociedade. Este é o enfoque territorial de desenvolvimento. Não há mais lógica em se falar no "desenvolvimento da produção de leite", mas sim no desenvolvimento do território X, no qual a produção de leite pode ser uma das estratégias. Isso porque o desenvolvimento de um setor não está invariavelmente relacionado ao desenvolvimento de um território.

Explicando melhor: o desenvolvimento do setor leiteiro estaria relacionado à capacidade de alguns produtores em conseguir produzir mais leite de maneira mais eficiente possível. Já o desenvolvimento de um território dependeria da capacidade dos produtores locais em apropriarem-se dos benefícios gerados pelo novo padrão produtivo, o que implica em existência de capital social, conforme já mencionado. Sabendo da concentração de forças dentro da cadeia de produção, sabendo que grande parte do preço pago pelo consumidor do leite fica retida nos supermercados e laticínios, sabendo que grande parte dos programas de pagamento ainda se atém demasiadamente ao critério "volume" (mesmo o frete sendo descontado do produtor) e sabendo da dificuldade de acesso do produtor pobre em acessar benefícios como crédito ou programas de fomento, é difícil aceitar que unicamente a modernização da atividade trará conseqüências benéficas para grande parte dos produtores. Deve-se considerar ainda a dificuldade de migração dos produtores familiares para outras atividades, principalmente as não agrícolas. Isto tudo leva a crer, já respondendo as questões impostas, que a modernização, sozinha, não é sinônimo de desenvolvimento territorial, ou seja, não há garantias de que unicamente a especialização da produção de leite trará benefícios para a sociedade local.

Assim, dentro deste novo enfoque não é possível desvincular as questões técnicas das questões culturais e sociais. E para isso, uma possível abordagem, embora ainda extremamente incipiente, seja o fomento ao capital social, passando pelo fortalecimento da identidade regional (valores culturais, sociais e produtivos), clima favorável ao empreendedorismo, existência de uma rede pública e privada de serviços e respeito ao meio ambiente.

Concluindo o referencial teórico para a construção de um Plano de Ação, é importante frisar que dentro da perspectiva de desenvolvimento territorial não há espaço para formas não eficientes de produção. Manter na atividade produtores de maneira artificial apenas para garantir sua permanência no campo não deve fazer parte dos planos de um país em desenvolvimento como o Brasil (que não possui recursos para tal). Desta forma, o desenvolvimento técnico deve estar integrado sempre aos demais aspectos do desenvolvimento, embora não seja capaz, sozinho, de garanti-los. Conforme destacado por Mubangizi (2003): o capital social deve ser o meio para se atingir o objetivo do desenvolvimento econômico das comunidades (no qual a modernização racional é passo fundamental), resultando em regiões sustentáveis.

4. A PROPOSTA DE AÇÃO PARA A REGIÃO DE ALTA FLORESTA


A proposta de ação construída pelo Instituto Ouro Verde se insere dentro do programa governamental GESTAR - Gestão Ambiental Rural. Desta forma, vale comentar rapidamente o contexto deste programa para posteriormente apresentar o Plano de Ação para o território.

4.1 GESTAR: explicações gerais e o papel do IOV


O projeto GESTAR, Gestão Ambiental Rural é um projeto desenvolvido pelo Ministério do Meio Ambiente, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e conta com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação - FAO/ONU. O projeto visa uma nova maneira de formar e realizar políticas públicas por meio da participação ativa da população. Nesta iniciativa, a população deve assumir papel fundamental no levantamento de demandas para o meio ambiente e desenvolvimento sustentável, formular políticas públicas e promover meios para a execução destas políticas.

Desta maneira, é objetivo do GESTAR melhorar a qualidade de vida e do meio ambiente nos assentamentos humanos rurais, por meio de ferramentas de gestão que visam estimular a participação e o comprometimento dos agricultores e sociedade civil como garantia para a sustentabilidade plena (social, ambiental, institucional, econômica, cultural) no meio rural.

O Instituto Ouro Verde é um dos parceiros do Ministério do Meio Ambiente, juntamente com outras instituições da região, para desenvolver o GESTAR no Portal da Amazônia.

4.2 A proposta metodológica do IOV


Considerando todos os aspectos acima mencionados, a questão a ser discutida passa a ser não mais qual a forma de produção mais adequada para a região, mas sim, como permitir que os produtores participem do processo de escolha desta forma adequada de produção, fortalecendo os laços de solidariedade e confiança entre eles, criando um ambiente adequado para o crescimento contínuo. Trata-se de uma solução muito mais metodológica (como fazer) do que tecnológica (o que fazer), apesar de ambos componentes fazerem parte da proposta.

Assim, o Instituto Ouro Verde, dentro do âmbito do programa GESTAR, propôs a realização de um programa piloto de intervenção em 2 comunidades rurais pertencentes ao território do Portal da Amazônia. Não acreditando em soluções mágicas, a proposta é construir um modelo de intervenção capaz de, pouco a pouco, trabalhar temas técnicos em união aos temas sociais, em um verdadeiro processo de comunicação (comunhão) entre técnicos e produtores rurais.

Para isso, o programa está desenvolvido em 4 fases principais. Trata-se apenas de um esqueleto fundamental, garantindo a coesão do programa. Isso porque o dia a dia das atividades será conduzido em conjunto com os produtores participantes em um processo de co-gestão do programa. As etapas fundamentais são:

a) Identificação e mobilização das instituições representativas e lideranças locais: etapa inicial de identificação e mobilização dos agentes que servirão como referências e líderes para as comunidades envolvidas nesta proposta. Serão considerados prioritariamente indivíduos participantes de movimentos formais ou informais, tais como: Pastoral da Juventude Rural, Movimento dos Trabalhadores sem Terra, Movimentos dos Pequenos Agricultores, Cooperativas, Associações, entre outros. Para esta mobilização, está programado um amplo diagnóstico participativo considerando os aspectos sociais, culturais e tecnológicos (incluindo o aspecto ambiental). É importante frisar que, mesmo com todo o levantamento de dados já realizados e disponíveis sobre a região, o processo de diagnóstico participativo permite que os produtores validem e atualizem estes dados (um diagnóstico só é verdadeiro na medida em que é reconhecido como auto-diagnóstico).

b) Capacitação inicial das lideranças e representações locais: uma vez identificados, os líderes locais receberão uma capacitação específica envolvendo aspectos relacionados à sustentabilidade da produção de leite, bem como aspectos relacionados à mobilização social. A idéia é atuar em dois pontos considerados gargalos do território: carência de informações técnicas e carência de ações relacionadas à extensão rural. Desta forma, pouco a pouco, a própria comunidade se encarregará de identificar limitantes e identificar soluções. Dentre alguns pontos mais diretamente relacionados com a produção de leite que poderão ser trabalhados estão: produção de leite a pasto; manejo de pastagens e qualidade do leite. Os pontos relacionados à mobilização social estarão relacionados à metodologia de mobilização da comunidade, métodos de diagnóstico participativo e métodos de resolução de problemas.

c) Apoio e acompanhamento da formação de Centros Integrados para a Troca de Experiências Rurais (CETRERs): cada liderança capacitada será responsável por montar centros nas comunidades rurais dos seus municípios denominados de Centros Integrados para a Troca de Experiências Rurais. Os CETRERs serão grupos informais de produtores que se encontrarão em tempos determinados para troca de experiências e conhecimentos. Durante estes encontros (que apesar de informais precisam ser planejados e conduzidos) os produtores trabalharão na construção de um Plano de Desenvolvimento, identificando demandas e caminhos para as soluções dos problemas identificados. Esta forma de organização informal facilita a multiplicação de conhecimentos (pois os próprios líderes locais funcionarão como multiplicadores) e gera confiança e cumplicidade entre os indivíduos. As estruturas informais de organização serão utilizadas tanto do ponto de vista pedagógico (ambiente de aprendizagem) quanto do ponto de vista social (pressão aos órgãos responsáveis pela prestação de serviços públicos). Trata-se de criar um ambiente propício para o trabalho com valores como solidariedade, comprometimento e confiança (bases para a formação e fortalecimento do capital social).

d) Apoio e acompanhamento da formação de Micro Cooperativas para comercialização e/ ou beneficiamento do leite nas comunidades rurais: os CETRERs formados serão a base para a construção de micro cooperativas (ou outras estruturas formais de organização) para a comercialização conjunta e/ou beneficiamento do produto (agregando valor ao produto). Esta etapa final é importante na medida em que solidifica e materializa os interesses comuns dos produtores. A criação de instituições fortes, que representem os novos valores e ideais adquiridos, pode propiciar assim a garantia de sustentabilidade das ações.

O que se espera como resultados deste programa é o avanço técnico da produção e o estímulo à formação de capital social. A construção do Plano de Gestão Ambiental Rural, contendo as diretrizes técnicas e populares para o desenvolvimento sustentável do território, deverá refletir todos os princípios discutidos neste texto. Fazer a sua parte para o desenvolvimento territorial e criar canais de comunicação e relacionamento que possibilitem que as instituições públicas cumpram com a sua é parte fundamental para o fortalecimento do capital social.

Concluindo, este é um projeto piloto que deverá ter início em Fevereiro/2005. Sabemos que se trata de uma ação pontual e extremamente limitada. A escassez de recursos torna possível apenas o trabalho com um número limitado de comunidades, o que com certeza representa um limitante significativo. No entanto entendemos que é preciso, urgentemente, conciliar as discussões teóricas com a execução prática, mesmo que extremamente pequenas e pontuais. Talvez a soma de diversas ações pequenas possam construir um modelo efetivamente maior de desenvolvimento.

REFERÊNCIAS CONSULTADAS

ABROMOVAY, R. O capital social dos territórios: repensando o desenvolvimento rural
Economia Aplicada, v.4, n.2, 2000.

BRASIL, MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO Referências para o desenvolvimento territorial sustentável. Brasília: Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2003. 36p.

CASAROTTO FILHO O., PIRES, L. H.. Rede de Pequenas e Médias Empresas e Desenvolvimento Local - Estratégias para a Conquista da Competitividade Global com Base na Experiência Italiana, São Paulo: Atlas, 1998.

FONSECA, L. F. L.; CARVALHO, M. P. Leite, políticas e derivados. São Paulo: Quiron, 2004. 181p.

HARPHAM, T.; GRANT, E.; THOMAS, E. Measuring social capital within health surveys: key issues. Health Policy and Planning, v.17, n.1, p.106-111, 2002.

MAYORGA, F. D. O.; KHAN, A. S.; MAYORGA, R. D.; LIMA, P. V. P. S. Capital social, capital físico e a vulnerabilidade do sertanejo: o caso das comunidades de Lustal e Sítio Lagoa no município de Taua, Ceará. Revista de Economia e Sociologia Rural, v.42, n.1, p. 111-132, 2004.

MUBANGIZI, B. C. Drawing on social capital for community economic development: insights from a South African rural community. Community Development Journal, v.38, n.2, 2003, p.140-150.

REIS, B. P. W. Capital social e confiança: questões de teoria e método. Revista de Sociologia Política, v.21, p. 35-49, 2003.


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1 Diretores do Instituto Ouro Verde, Alta Floresta - MT.

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LUIZ JANUÁRIO M. AROEIRA

OUTRO - MINAS GERAIS - PESQUISA/ENSINO

EM 08/03/2005

Quero cumprimentar os Diretores do Instituto Ouro Verde, Alta Floresta - MT pelo enfoque do artigo e pela abordagem ecológica da produção leiteira em sistemas silvipastoris.

Sou pesquisador da Embrapa Gado de Leite e trabalho com o tema. Acredito que só com o uso de sistemas silvipastoris, poderemos ter uma produção sustentável na região.

Gostaria de manter contato com este Instituto. Estou em Juiz de Fora, MG. Meu telefone é 032 3249-4860 e meu email é laroeira@cnpgl.embrapa.br.

Terei muito prazer em estabelecer contato.

Atenciosamente,
Luiz Aroeira

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