Eliseu Alves é daquelas poucas pessoas que têm autoridade para discorrer sobre diversos assuntos relacionados à economia da produção de leite no Brasil. Seu currículo e sua experiência o credenciam para tal. É engenheiro agrônomo, formado em 1954 pela Universidade Federal de Viçosa, MG. Obteve Mestrado e Doutorado em economia rural, pela prestigiada Universidade de Purdue, nos Estados Unidos. De 1955 a 1972, foi servidor da Emater-MG. De 1973 até o presente, é pesquisador da Embrapa Gado de Leite, onde ocupou o cargo de diretor entre 1973 e 1979 e presidente, de 1979 a 1985.
De 1985 a 1990, foi presidente da Codevasf, Companhia do Desenvolvimento do Vale São Francisco. De 1990 até o presente, é pesquisador em economia rural, abordando os temas política agrícola, tecnologia, pobreza rural, migração rural-urbana, dinâmica da agricultura, em especial, do leite. De 1990 a 2002, foi assessor da presidência da Embrapa. Mesmo como administrador, não interrompeu sua carreira de pesquisador, marcada por 110 trabalhos publicados, entre artigos de revista e monografias. Eliseu Alves deu entrevista exclusiva ao MilkPoint, comentando diversos aspectos da cadeia produtiva do leite no Brasil.
MilkPoint: Como o Sr. avalia a atratividade do leite no Brasil, do ponto de vista da cadeia?
Eliseu Alves: Do ponto de vista da demanda, é muito promissor o futuro do leite. O consumo per capita é muito baixo. Por isto, há muito que expandir. A elasticidade renda aponta na mesma direção: 10% de incremento da renda per capita disponível traz um aumento médio de 4% do consumo. No primeiro extrato de renda, o aumento do consumo é de 10%. No segundo, de 6%; no terceiro de 1%. Estes dados estão num importante artigo de Rodolfo Hoffman. Além disto, acresce-se o crescimento anual de 1,8% da população. Logo, considerando-se este incremento da renda per capita, em média, a demanda interna cresceria a 5,8% ao ano, e bem mais do que isto, se o crescimento econômico beneficiar os mais pobres. Ainda, em vista de termos custos baixos de produção, comparado com os principais países exportadores, temos um mercado internacional para ser conquistado, o que já estamos fazendo, os primeiros passos, é verdade.
Mkp:Quais são as oportunidades para que o setor cresça com rentabilidade?
EA:Perdemos a classe média e alta, como mostram os dados de Hoffmann. Temos que saber porque. Pela pequena diversidade de derivados que se ofertou no passado? Pela qualidade do leite em relação à demanda sofisticada? Por falta de imaginação de marketing? Perdemos também um imenso espaço no mercado internacional, porque não se optou por exportar. Então, mãos à obra: trate-se de conquistar as classes média e alta e o mercado internacional. E este é o caminho do crescimento rentável.
Mkp:E as ameaças?
EA: Existem ameaças de imaginação e reais. Imaginam-se tropeços externos, como os subsídios. E internos, como a incapacidade de conquistar as classes mais favorecidas. Somente travando as batalhas saberemos distinguir o fantasmagórico do real. Quem exporta soja sabe o que é mito e o que é real. Elucubrações a priori são como nuvens ameaçadoras que vento logo desfaz.
A ameaça real reside na qualidade do leite. É uma batalha dos produtores, das indústrias e do governo. Lei e aplicação da mesma. Convencimento e investimento. Qualidade custa dinheiro e conhecimento, e precisamos de investimentos específicos para matar esta ameaça real.
"A ameaça real (para o crescimento rentável do mercado) reside na qualidade do leite. É uma batalha dos produtores, das indústrias e do governo."
Mkp: Como o Sr. vê a relação produtor-indústria
EA:Será sempre um problema, enquanto os produtores forem centenas de milhares e as indústrias dominantes se contarem pelos dedos das mãos. A queda do número de produtores e a internet equilibrarão melhor as forças. Penso que movemos rapidamente nesta direção, em relação à produção de maior volume e de qualidade, que será cada vez mais abrigada por contratos. Resta a centena de milhares de pequenos produtores. Estes o governo tem que ajudar, sem paternalismo, removendo os obstáculos inerentes ao pequeno tamanho. Um bom caminho é fortalecer as associações e as cooperativas; devem-se criar instrumentos de financiamento com este propósito.
Mkp: O Sr. acompanha há vários anos a atividade leiteira. O que tem mudado?
E.A: Tem havido várias mudanças nos últimos anos:
- Os produtores velhos foram substituídos pelos novos, muito deles, de outros setores e urbanos. Vieram com outra mentalidade e abertos às novas idéias e à assistência técnica.
- A pesquisa gerou tecnologias importantes e ajudou difundir os conhecimentos acumulados;
- O advento da assistência técnica, particular, especializada em leite, é o fato mais importante do decênio. Pena que os pequenos produtores não possam pagá-la, e, por isto, estão à margem da festa do progresso. A extensão do governo, se não for reformulada e especializada, imitando de alguma forma a particular, não tem como ajudar esta massa de pequenos produtores.
- O gir leiteiro tem um papel fundamental, principalmente nos cruzamentos, em ajudar o Brasil vencer a competição internacional. É o sonho que virou realidade.
- Um grupo expressivo de produtores dominou a tecnologia do free-stall que tem um enorme poder de responder à demanda de leite de qualidade e às exportações. O mesmo é válido para gado europeu a pasto.
- Aprendemos a fazer um mestiço produtivo, sem preconceitos, quanto ao grau de sangue.
- Fracasso: a mosca do chifre e o carrapato, para os quais, no gado a pasto, a única solução efetiva são os agrotóxicos. Aí está o maior empecilho ao gado a pasto. Como afunilamento e mais rigor dos controles de qualidade, se a ciência não resolver este enorme problema, o gado deixará as pastagens rumo ao confinamento, e os pequenos produtores de leite deixarão a atividade, quase sempre rumo às cidades.
"A queda do número de produtores e a internet equilibrarão melhor as forças entre produtores e indústrias."
Mkp: A vocação do leite no Brasil é partir para a dita produção profissional, com redução no número de produtores e maior tecnificação, ou fixação do homem no campo, com realce da função social?
EA:Temos quase um milhão de produtores de leite no campo, porque uma grande parte produz menos de 50 litros por dia. Se cada produtor somente produzisse 200 litros diários, nem mais e nem menos, com um lucro, depois das despesas desembolsáveis, de R$ 0,10 por litro, e uma renda mensal de R$ 600,00, portanto de dois salários mínimos, quantos produtores produziriam a produção de 2003? Para 22,4 bilhões de litros, apenas 311 mil produtores!
A modernização da pecuária leiteira corresponde a aumentar substancialmente a produção de cada estabelecimento. Se a demanda não crescer, os preços vão cair, o que freia a velocidade de modernização, e contribui para reduzir o número de produtores. Assim a modernização persistente da pecuária de leite, sem traumas, exigirá que se faça a demanda crescer, além da taxa de crescimento da população. Isto significa a necessidade de fazer a renda per capita disponível crescer, portanto crescimento econômico, se possível com melhor distribuição de renda. Significa ampliar as exportações, e requer programas de curto prazo, como merenda escolar e cesta básica.
Mkp: Sempre houve discussão em relação aos custos de produção de leite. Porque não se chega em um consenso de metodologia, como em outras atividades?
EA:A rigor, o cálculo de custo somente deveria ser usado para ajudar no processo de decisão do empreendedor. A fim de verificar como ele situa em relação ao preço do produto. Mas, há outros usos, como na política de preços mínimos e de crédito - na fixação da taxa de juros e do montante. É, ainda, importante para medir o poder de mercado das firmas que processam a produção, e, assim, permitir contramedidas do governo para proteger os produtores. Pode-se apontar as seguintes dificuldades inerentes ao cálculo do custo de produção:
- As controvérsias de natureza teóricas são irrelevantes, frutos de pouca reflexão sobre o que é custo de produção. Por exemplo, é necessário separar o capitalista, o dono do capital, do empreendedor, aquele que faz a produção ocorrer, mesmo que sejam a mesma pessoa. O custo de produção é para o ano seguinte, assim em tese tudo pode variar. Portanto, não existe custo fixo.
- Outra questão complicada é como medir custo para itens sobre os quais não existe um mercado de aluguéis. Caímos no terreno escorregadio das imputações, onde existe muito lugar para subjetivismos e opiniões divergentes.
- Controvérsias que têm como base o uso que se fará do resultado, como na fixação de preço e de montante de crédito. Os produtores querem mais e o governo, menos. Do embate, nasce a negociação, e a regra geral tem sido o bom entendimento.
- Há, mesmo em nível de municípios em dado momento, algumas tecnologias em uso. Qual delas tomar como base para o cálculo do custo? Aquela de menor custo? Ou a modal? A rigor deveria ser a de menor custo, se o objetivo fosse estudar a convergência dos custos. Como se pensa nos objetivos de política agrícola, é usual preferir-se a tecnologia usada pelo maior número de produtores, e, assim, deixa-se de estimular a busca pela eficiência.
"O maior empecilho ao gado a pasto está na mosca-do-chifre e no carrapato. Se a ciência não resolver isso, o gado vai para o confinamento."
Mkp: Em julho de 2005, para o Centro-Sul, estará vigorando a Instrução Normativa 51, que trata das novas normas de produção. Qual é a sua expectativa em relação a isso?
EA: O objetivo da Instrução é garantir aos consumidores produtos de acordo com os padrões internacionais e criar condições para fazer do Brasil um grande exportador de lácteos. Melhor qualidade requer conhecimentos e investimentos. O setor e o governo precisam criar condições para que todos, principalmente a agricultura familiar, se enquadrem nos seus limites. Quando possível, a persuasão deve substituir o poder de polícia. É importante que o consumidor entenda o seu significado e o seu alcance, e, assim, seja um aliado importante que pressionará sua implementação.
Mkp:O que falta mudar?
EA: No atacado, estamos certos. Há uma riqueza de informações, veiculadas na imprensa. Há revistas competentes. Aí está a eletrônica, de elevado nível profissional, a serviço de produtores e da indústria: veja o MilkPoint. Os produtores são competentes e ávidos por conhecimento. A indústria tem nível internacional. O governo melhorou muito, quando acabou com os subsídios e se aliou com o setor na briga contra a política agrícola do primeiro mundo. Mas, há muito a caminhar e vejamos uma lista reduzida de desafios:
(a) O governo não tem sabido ou podido implementar as normas que defendem a pecuária nacional;
(b) Como está, a extensão pública não tem como competir com a assistência técnica particular. E, por isto, os pequenos produtores estão mal assistidos e estão à margem do progresso. Assim, a modernização do setor agravará a distribuição de renda, e, conseqüentemente, os conflitos sociais.
(c) O leite a pasto representa uma enorme vantagem do Brasil em relação aos competidores. Mas, o carrapato e a mosca-do-chifre representam uma enorme pedra de tropeço, em função das modernas exigências de qualidade. O dinheiro para pesquisa destes dois problemas é ridículo. O setor precisa se juntar ao governo para financiar as pesquisas, e se trata de um desafio não vencido pela pesquisa internacional.
(d) Também nas exportações de leite e derivados há muito a fazer e a aprender. O governo não entendeu o quanto vital elas são para o país, e, especialmente, para deixar parte do mercado interno para a agricultura familiar.
(e) Quem vai vencer a competição internacional não são as vantagens comparativas de natureza física, mas a ciência. Os investimentos públicos em pesquisa são minguados, e ensaiamos, com grande atraso, a pesquisa particular, e esta em associação com a pública. Pelo menos, neste respeito, temos agora uma boa legislação. Precisamos, empreender, e este é o grande desafio.
(f) Nestas três décadas, emergiu um número de produtores competentes e arrojados, capazes de muito exportar e de abastecer o Brasil. A indústria é igualmente competente. Assim, o governo, a indústria e os produtores têm plenas condições, se trabalharem em conjunto, de remover as pedras do caminho.
(g) Sabemos muito pouco da dinâmica da pecuária leiteira. Para onde caminha? Que ocorrerá com a pequena produção e os pequenos produtores? Que ocorrerá com o leite a pasto?
Mkp:O Sr. teria uma mensagem para o setor leiteiro em 2005?
EA:Que 2005 permita aos produtores e à indústria entenderem que os caminhos, diferentes que sejam, chegam aos mesmos propósitos de convencerem os brasileiros a consumirem mais e fazer do Brasil um grande exportador de leite e de derivados.