Nos comentários dos artigos anteriores sobre cruzamento entre Holandês e Jersey, diversos questionamentos sobre temas relacionados a sistemas de cruzamento foram enviados, tema que iremos abordar neste texto.
Normalmente os sistemas de cruzamento objetivam a complementaridade entre raças e a obtenção de vigor híbrido ou heterose. Devido às peculiaridades das raças Holandesa e Jersey, procura-se através da complementariedade combinar a elevada produção de leite de raça Holandesa com a alta concentração de sólidos no leite, maior fertilidade, facilidade de parto e longevidade da raça Jersey. Os potenciais dos animais mestiços em relação às vacas puras foram abordados nos textos anteriores desta série de artigos.
Entende-se como heterose a diferença entre o desempenho dos animais mestiços e as médias das raças puras formadoras. A heterose é o resultado do aumento da heterozigose, devido a alterações nos efeitos genéticos não aditivos (dominância e epistasia), sendo que os animais de raças puras normalmente apresentam elevada homozigose devido à seleção e à consanguinidade. A heterose depende da diferença entre as frequências de alelos nas raças formadoras e é maximizada quando um alelo é fixado em uma raça e o alelo alternativo é fixado na outra raça. Devido a isto, independente da magnitude da heterose, a máxima heterose sempre é obtida na primeira geração de cruzamento (F1). Outra variável que afeta a heterose em um programa de cruzamento é o número de raças envolvidas, sendo que, o aumento do número de raças eleva a heterose média na população. A heterose para características produtivas em animais ½ Holandês x Jersey são geralmente baixas (até 7%), enquanto características funcionais como longevidade, fertilidade e facilidade de parto normalmente superam os 10% (Sorensen et al., 2008). Entretanto, níveis de heterose mais elevados podem ser obtidos quando se avalia varias características em conjunto, como mérito total das vacas (Mcallister, 2002; Sorensen et al., 2008).
Existem algumas alternativas para sistemas de cruzamento entre raças leiteiras especializadas, destacando-se o sistema rotacionado, utilizando-se touros de 2 ou mais raças puras em um esquema alternado e a utilização de touros mestiços. Destaca-se que em qualquer sistema de cruzamento a heterose sempre irá diminuir a partir da segunda geração (ou da terceira quando se utilizam três raças).
O sistema de cruzamento rotacional é o mais utilizado para raças leiteiras especializadas, especialmente devido ao fato de ser aquele que mantém os níveis de heterose mais elevados na população. Este sistema de cruzamento já foi apresentado no Milkpoint por Rafaela C. Polycarpo e Junio C. Martinez (2007) e encontra-se reproduzido na Figura 1, sendo que neste caso, após várias gerações todos os animais do rebanho terão 67% H : 33% J ou 67% J : 33% H dependendo da geração e heterose de 67%.
Uma das vantagens deste cruzamento é a simplicidade na sua execução em relação a utilização de três ou mais raças, o que levou McAllister (2002) a concluir que o cruzamento rotacional de duas raças pode ser uma opção viável em várias situações, assim como Lopez-Villalobos et al. (2000), que a partir de pesquisas em sistema de produção baseado em pastagem na Nova Zelândia, também sugerem para aquele país um cruzamento rotacional com duas raças, como sendo a melhor opção. Uma limitação dos cruzamentos rotacionais com touros puros é a menor complementaridade que se obtém, principalmente em decorrência da flutuação na composição genética de uma geração para outra, assim como a variabilidade no desempenho e tamanho das vacas.
Para a situação em que o produtor está preocupado com a variabilidade das vacas quanto ao tamanho e produção (peculiaridade especialmente observada em cruzamento de Holandês com Jersey em virtude da diferença em tamanho das duas raças), uma alternativa de cruzamento de duas raças pode ser o retorno parcial a uma das raças originais (retrocruzamento). Neste caso, por exemplo, em rebanhos originalmente da raça Holandesa, a partir das vacas ½ sangue fazer cruzamento de volta com touros da raça Holandesa por mais de uma geração (chegando a animais 7/8 ou 15/16 Holandês) e, posteriormente, inseminar novamente com touros Jersey. Entretanto, neste caso, os ganhos médios em complementariedade e principalmente em heterose no rebanho serão menores.
A utilização de uma terceira raça em um sistema rotacional pode ser uma alternativa interessante, uma vez que mantém a heterose em níveis mais altos do que o cruzamento com duas raças. Conforme Caraviello (2004), teoricamente o cruzamento de 3 raças é mais vantajoso, apesar de poucos estudos terem utilizados este esquema em bovinos leiteiros. No cruzamento rotacional com três raças, as proporções genéticas se estabilizam com 4/7 (57%) da raça pai, 2/7 (29%) da raça do avô e 1/7 (14%) da raça do bisavô. A heterose esperada neste caso corresponde a 86% do valor máximo observado na F1 (Bourdon, 2000). McAllister (2002) indica sistema rotacional com 3 raças, como sistema que pode apresentar um bom retorno. Entretanto, deve-se considerar que a utilização de um maior número de raças dificulta o manejo do rebanho quanto à escolha dos touros para inseminar cada uma das vacas.
Outra opção de sistema de acasalamento é a utilização de touros mestiços, técnica que vem se tornando mais popular na Nova Zelândia, onde aproximadamente 25% do sêmen comercializado atualmente é de touros mestiços Holandês x Jersey (Dairy_Nz, 2011). Em um questionário aplicado aos produtores que utilizam sêmen de touros provados naquele país, o principal argumento utilizado pelos produtores foi a uniformização de tamanho dos animais (Zonneveld, 2010). Deve-se salientar que, se por um lado a utilização de touros mestiços facilita o manejo do rebanho e mantém estável a complementariedade entre as raças, a heterose é reduzida, sendo equivalente a 50% da heterose esperada para as vacas mestiças de primeira geração. Uma das dificuldades neste caso é a disponibilidade de touros mestiços provados, os quais podem ser encontrados na Nova Zelândia, porém existe grande limitação de sêmen de touros provados das empresas de inseminação artificial da América e Europa. Esta baixa disponibilidade de touros mestiços provados restringe uma maior utilização deste modelo de sistema de cruzamento em nosso meio, visto que a utilização de sêmen de touros não provados pode comprometer o ganho genético.
A partir do aumento da importância dos cruzamentos na pecuária leiteira novas ferramentas e serviços começam a ser disponibilizadas. As biotécnicas da reprodução, tais como a transferência de embriões e fertilização in vitro permitem a produção de fêmeas F1 em maior escala, aumentando o nível médio de heterose nos rebanhos, técnica que se difunde rapidamente na produção de mestiços Europeu x Zebu e que começa a ser utilizada na produção de mestiças Holandês x Jersey. Na nova Zelândia, serviços informatizados de escolha de touros visando a obtenção de maior nível de heterose estão disponíveis. Além disto, a genética molecular apresenta elevado potencial para apresentar novas soluções neste sentido.
Um aspecto fundamental é que, assim como na criação de vacas puras, independente do sistema de cruzamento a ser adotado, a seleção baseada no valor genético de touros provados é fundamental para o sucesso do empreendimento, visto que os ganhos devido a heterose não são transmitidos para a geração seguinte. O que é transmitido é a genética aditiva, sendo que a maior parte do ganho genético obtido em bovinos de leite deve-se ao uso intensivo de inseminação artificial com touros provados.
Deve-se considerar ainda que pesquisas sobre sistemas de cruzamento demandam longo tempo para a obtenção de resultados e que a maioria das instituições de pesquisa que estudam cruzamento entre raças especializadas ainda não possuem resultados de longo prazo, exceto na Nova Zelândia. Além disto, para qualquer espécie em que se utilize o cruzamento nas estratégias de recursos genéticos não existe um único sistema de cruzamento que satisfaça as necessidades de todos os produtores. Este fato é muito evidente na bovinocultura de leite, onde os sistemas de produção são bastante diversos, em especial no Brasil. Embora várias pesquisas tenham sido feitos, é preciso aliar informações econômicas aos dados obtidos e procurar transportá-los aos vários sistemas de produção considerando clima, topografia, disponibilidade de forragens, sistemas de pagamento de leite e outras mais antes da recomendação generalizada. Devido a diversidade de sistemas de produção essa tarefa não é fácil, embora a discussão mais embasada em torno da utilização de cruzamentos já esteja acontecendo na maior parte dos países com expressão em bovinocultura de leite. Enfim, ao adotar um determinado sistema para o cruzamento entre raças é importante aproveitar pontos fortes de cada uma das raças que participam, procurando maximizar os efeitos genéticos (heterose e complementariedade), porém sem desconsiderar as peculiaridades de cada unidade de produção de leite.
Referencias Bibliográficas
BOURDON, R.M., Ed. Understanding Animal Breeding, p.523 p.ed. 2000.
CARAVIELLO, D. Crossbreeding Dairy Cattle. Babcock Institute/University of Wisconsin. 2004. Disponível em https://babcock.wisc.edu/sites/default/files/documents/productdownload/du_610.en_.pdf
DAIRY_NZ. New Zealand Dairy Statistics 2010-11. 2011. Disponível em <https://www.lic.co.nz/pdf/DAIRY%20STATISTICS%2010-11-WEB.pdf>.
LOPEZ-VILLALOBOS, N.; GARRICK, D.J.; BLAIR, H.T.; HOLMES, C.W. Possible effects of 25 years of selection and crossbreeding on the genetic merit and productivity of New Zealand dairy cattle. J Dairy Sci, v. 83, p.154-63, 2000.
MCALLISTER, A.J. Is crossbreeding the answer to questions of dairy breed utilization? J Dairy Sci, v. 85, p.2352-7, 2002.
POLYCARPO, R.C.; MARTINEZ, J.C. Cruzamento em gado leiteiro - novidades lácteas. 2007. Milkpoint. Disponível em <https://www.milkpoint.com.br/radar-tecnico/melhoramento-genetico/cruzamento-em-gado-leiteiro-novidades-lacteas-38687n.aspx>.
SORENSEN, M.K.; NORBERG, E.; PEDERSEN, J.; CHRISTENSEN, L.G. Invited review: crossbreeding in dairy cattle: a Danish perspective. J Dairy Sci, v. 91, p.4116-28, 2008.
ZONNEVELD, L. The Use of Crossbred Sires (Holstein-Friesian/Jersey) in the New Zealand Dairy Industry. A Farmers Perspective. 2010. Disponível em <https://edepot.wur.nl/166369>.
* 1 Professor do Depto de Prod. Animal e Alimentos - Universidade do Estado de Santa Catarina – Centro de Ciências Agroveterinárias (CAV/UDESC)
2 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciência Animal - CAV/UDESC