Após analisarmos o problema que advém de uma (falta de) política para encorajamento à produtividade e à melhor qualidade do leite no país, vemos que os problemas não param por aí.
Com a instituição da IN 51/2006 – MAPA e atualmente IN 62/2012, as indústrias de laticínios foram pouco a pouco alterando sua estrutura de transporte e refrigeração do leite. O problema é que, excetuando-se algumas empresas, a maioria delas pouco ofereceu de treinamento aos caminhoneiros.
Isso é extremamente danoso, pois é ele o segundo elo (após o produtor de leite) da cadeia que interfere – direta ou indiretamente – na qualidade que esse leite possa possuir. No momento de sua chegada à propriedade, poucos verificam condições mínimas como, por exemplo: se o tanque está sob agitação contínua (ao longo da noite e/ou após ordenha matinal/vespertina); se o sistema de refrigeração está adequado e a temperatura é uniforme, constante e adequada. Além disso, quando coletam amostras para análises de CBT (Contagem Global de bactérias), CCS (Contagem de células somáticas) e/ou testes de antibióticos não o fazem de maneira correta, uma vez que muitos deles recolhem o leite cru sobrenadante (rico em gorduras), desconfigurando a contagem real dos índices.
Ao contrário do que deveria ser, o caminhoneiro é ainda o principal (ou único) elo entre o produtor e a indústria. Raro é ver um profissional desse devidamente capacitado, ciente da sua responsabilidade perante as coletas, apontamentos e transporte do leite. Muitos nem sabem o que representam os testes, não orientam o produtor pra (e como) melhorar esses índices, faltando a figura de um técnico da indústria no caminhão que pudesse estar presente para aproveitar aquele momento para auxiliá-los.
É talvez durante o transporte que ocorram os maiores “crimes” contra nosso valoroso alimento. Muitos caminhões rodam em rotas desconexas (sem qualquer pré-planejamento prévio), sob chuva constante, sol escaldante, em estradas precárias, sinuosas , montanhosas e com muitos buracos (rompimento dos glóbulos de gordura e pré-oxidação do leite cru) e muita lama/poeira. Resultado: níveis alarmantes de microorganismos no leite e uma dificuldade enorme pra avançarmos em políticas de produção e exportação de nossos produtos lácteos.
Isso é agravado porque o caminhão de leite possui um ponto crítico de controle pouco observado pela maior parte das indústrias lácteas: a mangueira de leite. Feita de material plástico, atóxico, transparente e resistente representa a possibilidade de grande contaminação inicial ao leite. Isso porque fica localizada externamente no caminhão, muitas vezes com resíduos de leite e é preenchida constantemente por aerossóis de poeira, asfalto e microorganismos. O problema, muitas vezes não é nem minimizado quando se chega na indústria, visto que os caminhões muitas vezes são mal lavados (e a mangueira também) e são rapidamente descarregados em silos e/ou pra dentro das fábricas. Uma solução possível é que cada produtor de leite tivesse sua própria mangueira vendida junto com o tanque de expansão e que ficasse responsável pela higienização adequada da mesma, sob supervisão da indústria em testes constantes de swab.
Outrossim, o caminhão, estruturado com um tanque inox (unipartido, bipartido ou tripartido) não pode ser visto como um depósito de leite gelado somente, mas como um equipamento importante para se tentar manter a qualidade original do leite coletado. Inaceitável é ver que muitas fábricas trabalham com tanques em péssimo estado, equipamentos de baixa qualidade e com problemas de solda, nos sistemas de vedação, bombas e válvulas.
É inclusive nessa área (transporte de leite) que temos visto no Brasil se iniciarem os constantes escândalos frutos de picaretagem de determinados profissionais que realizam transbordo clandestino de matéria-prima, além de adulterações com adição de soda cáustica, água oxigenada, água, uréia, amido e outros; antes mesmo da entrada dentro da fábrica.
Talvez falte realmente maior fiscalização, maior consciência, maior cidadania, maior regulamentação do setor. O que com certeza não falta é o potencial de melhora e avanço para regulamentação de uma política de transporte do leite no país, com melhor estrutura, profissionais mais qualificados e motivados e uma atuação governamental mais firme, com maior fiscalização e construção de melhores acessos e estradas.
Em visita recente ao maior laticínio da Argentina (La Serenisima) que efetuava transbordo de 5.5 milhões de litros por dia, o dono fez questão de levar à mesa o gerente de qualidade de leite cru,. Com um trabalho de 20 anos de treinamento no campo, conseguiram colocar no rótulo de todos os seus produtos os dizeres: “Menos que 10.000”, numa referência à contagem global de inicial de germes no leite cru, antes dos tratamentos da indústria, representando um ponto forte de marketing assertivo aos consumidores portenhos.
Restam-nos então as perguntas: haverá um dia alguma indústria do país que terá coragem de fazê-lo também? E mais: como teremos um bom produto final se sua matéria-prima já chega muitas vezes adulterada ou em péssimas condições sanitárias nas nossas fábricas? Vale a pena (re)pensar sobre tudo isso.
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