Cinco meses já se passaram desde o primeiro e grande sinal de que uma nova crise econômica voltaria a atormentar o mercado mundial: o pedido de concordata do Lehman Brothers - quarto maior banco de investimentos dos Estados Unidos - em 15 de setembro de 2008. Desde então, o cenário tem sido marcado por notícias pessimistas, como demissões em massa, investimentos empresariais cancelados, queda de produção, desaceleração econômica, dificuldade de crédito e desconfiança crescente dos consumidores. Resta saber: todos os setores serão afetados? Há quem se sobressaia com a crise?
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informou esta semana que o PIB brasileiro do quarto trimestre de 2008 teve retração de 3,6% (com ajuste sazonal) na comparação com o terceiro trimestre - a maior contração da série histórica iniciada em 1996, de acordo com o IBGE. Mas considerando a comparação com o quarto trimestre de 2007, o indicador teve alta de 1,3%, lembrando que no 4º trimestre de 2007 a economia brasileira ia bem, como o resto do mundo. Outro dado divulgado pelo órgão foi sobre o consumo das famílias brasileiras no 4º trimestre/08, que caiu 2% em relação aos três meses anteriores. Há 19 trimestres, o consumo doméstico só aumentava. E esse consumo, em sua maior parte, está ligado a bens duráveis, com maior dependência de crédito para aquisição.
A última edição da Revista Exame (11/03) traz exemplos de empresas e negócios que tiveram na crise oportunidades de crescimento, baseados principalmente nas mudanças de consumo da população e, é claro, considerando a dependência de seus negócios em relação ao mercado internacional. Nesse sentido, percebe-se que empresas de bens de consumo duráveis (automóveis, eletrodomésticos) são as que mais sentem os efeitos da crise, por terem seu crescimento ligado à dependência de crédito. Já as produtoras de alimentos, roupas e outros produtos de alta necessidade conseguem manter e até mesmo maximizar seu ganhos e investimentos. E aqui podemos voltar a análise ao nosso setor. Até que ponto essa crise pode afetar o setor lácteo brasileiro?
Como exemplos, a reportagem traz o desempenho de algumas empresas em janeiro/09 comparado a janeiro/08. Entre elas está a Danone, com crescimento de 26% em vendas. Outro destaque é a rede de supermercados Pão de Açúcar, com alta de 10% nas vendas. A Natura (maior empresa brasileira da área de cosméticos), espera crescer 18% em 2009. Do outro lado, estão as empresas mais ligadas ao mercado externo e, portanto, mais afetadas pela crise econômica. Montadoras de automóveis viram seu ritmo de crescimento cair nos últimos meses; a Fiat teve queda de 13,3% nas vendas de carros. A Mabe (fabricante de eletrodomésticos das marcas GE e Dako) teve suas vendas reduzidas em 18,7% comparadas a janeiro de 2008.
Nesse contexto, nota-se que produtos voltados à exportação (commodities) são os mais afetados pela crise de crédito, variação cambial e barreiras comerciais (medidas protecionistas, por exemplo). E aqui entra o mercado do leite em pó - atualmente o pivô das dificuldades no setor lácteo. Por ser um produto negociado no mercado internacional, sente diretamente qualquer mudança na economia do setor, refletindo nos preços internos e com efeitos na produção.
Impulsionadas pelos altos preços ofertados pelo produto - resultado da queda de estoques dos maiores produtores mundiais de leite em pó em 2007 - indústrias brasileiras passaram a produzir em maior escala o leite em pó, o qual é vendido principalmente à Venezuela, geralmente a preços acima dos praticados no mercado internacional, gerando inclusive um descolamento em relação aos preços de importação (notadamente a partir de maio/2008). Animadas com o crescimento do setor e acreditando em ganhos certos com as exportações, empresas que não atuavam na produção de leite em pó iniciaram investimentos em novas plantas, para fabricação do produto. Contudo, o cenário se inverteu. Com a queda na demanda internacional de leite em pó e consequente redução de preços, o produto passou a ser direcionado para o mercado interno, resultando em sobre-oferta e preços mais baixos, atingindo R$ 5,50 a R$ 6,00/kg nos patamares mais baixos. Desta forma, por mais que a crise não afete tanto o setor de alimentos, o leite em especial teve um problema específico de portfólio: muito pó, sem condição de ser exportado em grandes volumes, sendo comercializado no mercado interno.
Gráfico 1. Preços médios e volumes das exportações e importações de leite em pó (US$/ton).
De fato, o cenário tem sido muito ruim para o comércio de leite em pó. O mercado mundial passa por dificuldades de escoamento da produção. Dados do USDA mostram que os estoques de leite em pó desnatado, em 31 de janeiro/09, nos Estados Unidos, eram de mais de 92 milhões de quilos, 22,1% acima em relação ao mesmo período de 2008, e até 162,9% comparado aos estoques de dois anos atrás. Também em resposta às dificuldades de escoamento da produção, a União Europeia voltou a subsidiar a exportação de lácteos, o que gerou muitas críticas, de diversos países.
Ao que se sabe, através de fontes do setor, novos contratos de exportação não têm sido feitos, e nesses dois primeiros meses do ano, os volumes exportados são referentes a contratos fechados no final do ano, com a maior parte destinada à Venezuela. Nesse sentido, nos últimos meses de 2008, o produto que melhor respondeu no mercado interno foi o leite longa vida. No atacado, o preço do litro do produto gira em torno de R$ 1,35 a R$ 1,45, com demanda pelo varejo e, portanto, sem estoques. Em uma fase ruim para o leite em pó e com melhoras no segmento do UHT, grandes empresas estão desviando parte considerável de seu volume captado de leite para produção do longa vida. Segundo agentes do setor, o varejo tem demandado o produto (que chegou a faltar em alguns pontos) e a tendência é de aumento do consumo, devido ao início do período escolar.
Nesta semana, a notícia da Nestlé entrando no mercado de leite longa vida trouxe otimismo ao setor. A empresa, que não atuava neste segmento, anunciou o projeto de R$ 100 milhões para produção da sua linha de leites longa vida premium, que estará no mercado a partir de abril. Isso pode ser um grande sinal de que há espaço para o segmento crescer, impulsionado principalmente pelo rigor quanto à qualidade dos produtos fabricados e investimentos maciços em marketing. A Itambé, outro peso-pesado que há anos havia reduzido em muito sua produção de leite UHT, anunciou investimentos no segmento.
A pergunta é o que esperar para frente, lembrando que continuamos sem conhecer ainda variáveis importantes, como a extensão da crise, que afeta a demanda.
Um aspecto que pode sinalizar mudança vem do mercado internacional. No último leilão da Fonterra, o preço médio alcançado para todos os produtos e períodos contratuais para o leite em pó foi de US$ 2.158/ton (antes do embarque), valor 16,6% superior ao do leilão anterior. Também, uma tendência de recuperação nos valores dos contratos futuros de leite classe III nos Estados Unidos começa ser vista a partir de março/abril, estendendo-se até novembro. No Oeste da Europa e na Oceania, os preços de exportação do leite em pó pararam de cair e já mostram leves reajustes. O baque de preços afetou os principais países produtores e o crescimento da oferta será menor. Os preços no mercado futuro dos EUA também sinalizam recuperação.
No mercado interno, alguns reajustes de preços ao produtor estão ocorrendo, na casa de 2 a 3 centavos por litro. Há quem acredite que há espaço para alta de 10 a 12 centavos até meados do ano. A oferta interna de leite será fator de peso na recuperação de preços, principalmente se a dificuldade de exportação se mantiver ainda por algum tempo. Mas como mostrado pelo Índice de Captação de Leite do Cepea-USP, o volume de captação tem caído mês a mês, comparado ao mesmo período de 2008.
Gráfico 2. Variação da captação em relação ao mesmo mês do ano anterior (%).
A extensão da recuperação dos preços depende em parte da quantidade e da origem do leite importado. Se a oferta continuar se retraindo e a demanda não for tão afetada, as importações do Mercosul aumentarão nos próximos meses. Se esse leite não for suficiente, sendo necessário importar de fora do bloco, pagando 27% de tarifa e, em alguns casos, tarifa-antidumping, o que se verá é uma maior procura por leite e elevação dos preços, que ficarão descolados do mercado internacional.