Ao contrário do que ocorreu na mesma época do ano passado, em que produtores e indústrias ganharam dinheiro, o momento atual preocupa. Produtores estão com custos bem mais elevados (entre 20 e 30%) e a indústria, também com custos maiores, não consegue repassar ao varejo e volta-se ao produtor para melhorar sua situação, reduzindo os preços.
Mas, como explicar essa repentina mudança e, de certa forma, frustração de expectativas?
Essa reversão se deu basicamente por três fatores. Primeiro, a produção respondeu às boas condições de mercado e cresceu. Segundo o IBGE, no primeiro trimestre a produção cresceu 9,3% sobre 2007. O Índice de captação de leite do Cepea apontou valores ainda maiores para os 5 primeiros meses do ano, sobre 2007. Em maio, por exemplo, o Cepea indicou 25,57% a mais de leite sobre maio de 2008.
Segundo, ao contrário de 2007, muitos itens básicos subiram de preço, aumentando o custo de produção. A cesta básica, segundo o DIEESE, teve elevação de custos de até 29% no primeiro semestre. Segundo o órgão, o trabalhador remunerado pelo salário mínimo precisou cumprir, em junho, jornada de 115 horas e 25 minutos para adquirir estes bens na média das capitais pesquisadas. Este tempo de trabalho é superior ao exigido em maio (111 horas e 08 minutos) e ao requerido em junho de 2007, quando ficou em 91 horas e 33 minutos. Após o desconto da Previdência Social, a aquisição da cesta exigiu 57,03% do rendimento líquido, contra 54,91%, em maio e 45,06%, em junho de 2007.
Por fim, a atratividade das exportações não está tão boa quanto o aumento dos volumes sugere. Os preços internacionais estão em patamares próximos aos do ano passado, mas a trajetória não é a de elevação, como verificada em 2007 nessa mesma época. Com o câmbio valorizado, os preços da matéria-prima em dólar apertaram as margens da exportação. O gráfico 1 mostra a relação de troca entre kg do leite em pó integral exportado pelo Brasil (Fonte: MDIC) dividido pelo valor da matéria-prima (Fonte: preço Cepea). A relação de troca se deteriorou nesse primeiro semestre.
Gráfico1. Relação de troca entre kg de leite em pó integral exportado e valor da matéria prima, sendo o índice 100 para janeiro de 2006.
Mesmo assim, pode-se argumentar que as exportações cresceram no primeiro semestre. A tabela 1 resume a quantidade estimada de leite que exportamos e importamos de janeiro a junho de 2007 e 2008. Percebe-se que retiramos do mercado interno quase 4 vezes o montante do primeiro semestre de 2007.
Tabela 1. Estimativa de litros de leite exportados e importados de janeiro a julho de 2007 e 2008 (em milhões de litros).
Esses números são interessantes, mas não representam uma resposta suficiente para o aumento da oferta no primeiro semestre. Faltam-nos os dados relativos a captação das indústrias no segundo trimestre, mas se aplicarmos a média do fator de correção do Índice de Captação de Leite do Cepea em abril e maio, em cima da produção do IBGE do primeiro trimestre, chegaremos à estimativa de um acréscimo de 860 milhões de litros de janeiro a junho de 2008 em relação ao mesmo período de 2007. Desta forma, conseguimos retirar do mercado cerca de um terço desse volume (exportações menos importações); o restante, ficou no mercado interno.
Dividindo esse valor pela população brasileira, concluiremos que, nesse primeiro semestre, cada habitante teve à sua disposição o equivalente a 3,1 kg de leite a mais do que em 2007. Para efeito de comparação: de 2006 para 2007 (considerando os 12 meses e não apenas 6 meses, como acima), ano em que a produção cresceu bastante e o consumo também, o consumo aparente, considerando a produção inspecionada, cresceu 3,5 kg por pessoa (ver tabela 2).
Tabela 2. Consumo per capita aparente em 2007, considerando apenas a captação inspecionada.
Nesse cenário, a expectativa de elevação dos preços ao consumidor, permitindo melhor remuneração à cadeia produtiva, acabou não ocorrendo da forma esperada. O gráfico 2 abaixo traz os reajustes mensais no varejo, de acordo com o IBGE (obs: o IBGE engloba o Longa Vida no item Pasteurizado). Percebe-se que, após um início de ano em algum grau promissor, os reajustes perderam força de abril em diante - momento que coincide com o início de certa turbulência na economia.
Gráfico 2. Reajustes mensais no varejo, de acordo com o IBGE.
O panorama desse momento, julho de 2008, mostra continuidade desse processo. O mercado fala em estagnação do leite longa vida no atacado, ficando entre R$ 1,30 e R$1,50/litro, dependendo da região. O produto também está com custos de embalagem e frete mais altos. O valor do kg de queijo, ao contrário do que se esperava para essa época do ano, caiu cerca de R$ 1,00/kg e hoje está entre R$ 7,20 e R$ 8,50/kg. O leite em pó também se retrai, com valores entre R$ 6,50 e R$7,50/kg (saco de 25 kg; o fracionado chega a R$ 9,00/kg) e estoques elevados. O leite spot já caiu R$ 0,10 a 0,13/litro, do pico de final de maio até a segunda quinzena de julho, sendo hoje comercializado entre R$ 0,72 e R$ 0,79/litro, dependendo da região.
O reflexo disso chegou ao produtor, em um momento complicado. Em algumas regiões, a redução de preços nos últimos dois meses gira em torno de R$ 0,10/litro. É a conta que não fecha: ruim para a indústria, ruim para o produtor. Não há, porém, espaço para choques muito grandes sem comprometer a oferta futura. O gráfico 3 mostra relação entre o preço da arroba dividido por 100 litros de leite. Os valores vêm subindo e atingindo patamares que estimularão o abate de matrizes. Se a queda continuar, em 2009, vai faltar leite.
Gráfico 3. Relação entre o preço da arroba do boi por 100 litros de leite.
O que pode mudar esse cenário?
Redução da oferta: alguns agentes consultados falam em queda na venda de ração e menor produção em função da seca que já prolonga. Ainda é cedo para traduzir isso em números, mas sem dúvida se a oferta se reduzir, a conta pode começar a fechar. O aumento de produção no segundo semestre em relação ao mesmo período do ano passado, se houver, tende a ser significativamente menor do que no primeiro semestre. A menor oferta pode permitir uma "aterrissagem suave".
Preços externos, câmbio e aumento das exportações: há quem diga que o dólar subirá ainda este ano. Se isso ocorrer, a competitividade das exportações melhora e o gráfico 1 inverte a tendência. Quanto a aumento de preços externos, não há indicativo de elevação nos próximos meses. Mesmo que as exportações fiquem atrativas, há quem diga que haverá gargalo na quantidade de fábricas habilitadas para exportação. Salvo engano, até agora não exportamos mais do que 10.000 toneladas de leite em pó por mês. Conseguiremos tirar do mercado 20.000 toneladas por mês?
Consumo: prognóstico difícil. Talvez com a volta às aulas, tenhamos algum alívio, mas os fundamentos não indicam grande evolução nos próximos meses.
É provável que o ajuste ocorrerá via menor oferta e retomada da competitividade das exportações, em linhas que em algum momento vão se cruzar. O duro é saber em que patamar de preços.
Fica a sensação de que, após um ano inteiro de euforia, nos deparamos com os velhos problemas. Acabou então o encanto do leite?
Resumo minha visão nas seguintes colocações: 1) O cenário continua favorável para a atividade no mundo, com demanda crescente e espaço para países como o Brasil ocuparem seu espaço; 2) É preciso pensar na agenda de longo prazo, que irá sustentar esse crescimento independentemente dos picos. Marketing institucional, melhoria dos custos de produção, maior poder de barganha da indústria (menos empresas, empresas maiores), maior representatividade do produtor, são temas que precisam ser trabalhados; 3) É preciso melhorar a transparência das informações na cadeia, melhorar a coordenação entre produtor e indústria e, com isso, criar as bases para um crescimento mais sustentado; 4) Uma atividade com poucas barreiras de entrada dificilmente será altamente rentável para todos o tempo todo, pois essa condição estimula o aumento da produção e o reequilíbrio da oferta e demanda. Ou seja, nessa condição, vai ganhar, na média, o produtor eficiente.
Enfim, o cenário de médio/longo prazo é favorável, mas só de panorama favorável o setor não vive - é preciso trabalhar as questões recorrentes e que, em meio a euforia de 2007, parecem ter sido deixadas de lado, como se não mais existissem. É hora de retomar essa agenda.