*Autores:
Silvia Amorim Gomes; Graduanda em Medicina Veterinária, Faculdade de Medicina Veterinária, PUC Minas Betim.
Isabella Bias Fortes, Medica Veterinária CRMV-MG 2284, Doutora em Medicina Veterinária Preventiva, docente, Faculdade de Medicina Veterinária, PUC Minas Betim.
Resumo
A tripanossomose é uma doença causada pelo Trypanossoma vivax e foi relatada pela primeira vez em Minas Gerais no ano de 2008. Apesar de ser uma doença de origem africana, o protozoário conseguiu adaptar- se à países da América do Sul mesmo sem seu vetor biológico, a mosca tsé-tsé. No Brasil a transmissão ocorre de forma mecânica, por picadas de insetos como mutucas, moscas dos estábulos e também por fômites contaminados. Desde então, passou a causar diversas alterações nos animais acometidos, refletindo no desempenho e produção dos mesmos. Estes sinais, muitas vezes inespecíficos, dificultam o diagnóstico e o tratamento desta enfermidade.
O presente trabalho tem como objetivo relatar um surto de tripanossomose em uma propriedade composta por 61 animais em lactação no município de Esmeraldas, Minas Gerais, onde 45 animais do rebanho foram acometidos. O protozoário foi identificado a partir de dois testes parasitológicos, sendo eles, a técnica de microhematócrito de Woo e o teste da gota espessa. Diante da confirmação da doença, foi preconizado o tratamento de todo o rebanho a base de cloreto de isometamidium.
Introdução
O Trypanossoma vivax é um protozoário que acomete o sistema circulatório dos ruminantes (MIDAU et al., 2016) causando a tripanossomose e acarretando em grandes impactos econômicos em rebanhos leiteiros (ABRÃO, 2009). De origem Africana, este hemoparasita é transmitido ciclicamente pelas moscas tsé-tsé, enquanto que nas Américas, devido a sua capacidade de adaptação, conseguiu se manter na ausência do vetor biológico, sendo transmitido de forma mecânica pela picada de insetos nativos como as mutucas e as moscas dos estábulos (PAIVA et al., 2000). Outra forma de transmissão mecânica já relatada é a forma iatrogênica por fômites contaminados, além da introdução de animais infectados no rebanho (SILVA et al., 1997; BARBOSA et al., 2015).
A tripanossomose geralmente ocorre em forma de surtos causando grandes perdas econômicas, uma vez que tem sido responsável por provocar abortos, infertilidade, queda na produção de leite, anemia, mortalidade, além dos gastos com diagnóstico e tratamento (SEIDL et al., 1999). Os principais métodos de diagnósticos podem ser divididos em três grupos, sendo eles, parasitológico, sorológico e molecular (SILVA et al., 2002). Os métodos parasitológicos são os mais utilizados, dentre esses a técnica do esfregaço, técnica de microhematócrito de Woo e Buffy Coat (SILVA et al., 1997).
O primeiro relato de tripanossomose em bovinos no Brasil foi em 1946 por Boulhosa, no estado do Pará (SNARK, 2017) enquanto que no estado de Minas Gerais somente em 2008 (CARVALHO, 2008). Desde então essa doença vem se destacando por seu crescente impacto econômico em rebanhos leiteiros (ABRÃO, 2009), além do despreparo dos envolvidos perante a tripanossomose. O objetivo do estudo é relatar um surto de tripanossomose bovina em Minas Gerais e evidenciar a importância da profilaxia desta doença infectocontagiosa uma vez que são vários os prejuízos causados.
Casuística
O estudo foi realizado em uma propriedade rural de criação de bovinos leiteiros, localizada no município de Esmeraldas, Minas Gerais no mês de agosto de 2017. O rebanho era constituído por 61 animais em lactação, divididos em 3 lotes equivalentes a produção, alta, média e baixa. Os animais possuíam uma dieta a base de silagem de milho, cana e capim na época da seca. O lote de alta produção consumia cerca de 6kg de ração por animal/dia. O manejo de ordenha era realizado duas vezes ao dia, com auxílio de hormônio ocitocina antes da ordenha e não era realizada a troca de agulhas entre os animais, apenas imersão em uma solução desinfetante.
Na anamnese, segundo o proprietário, cerca de 10 animais haviam morrido e apenas as fêmeas adultas apresentavam o quadro clínico. Há 30 dias antes do surto, houve compra de animais oriundos da cidade de Rio Manso, Minas Gerais. Os sinais clínicos apresentados foram:
- diarreia fétida;
- geofagia (consumo de terra);
- agravamento nos problemas de cascos;
- abortos;
- perda de escore corporal e;
- significativa queda na produção de leite, sendo que aproximadamente 20 animais tiveram sua lactação interrompida devido à baixa produção.
A partir do quadro que os animais apresentavam, além do uso inadequado de ocitocina no manejo de ordenha, sendo esta, uma causa de transmissão iatrogênica, suspeitou-se que os animais estavam infectados por T. vivax. O diagnóstico foi feito a partir de dois testes parasitológicos, sendo eles, a técnica de microhematócrito de Woo e o teste da gota espessa (SILVA et al., 1997). Para isso, de cada animal em lactação, foram colhidos em torno de 2 ml de sangue por venopunção da veia epigástrica cranial superficial utilizando-se agulhas 25x0,8 mm em tubos contendo anticoagulante (EDTA), para realização do procedimento.
Avaliou-se também o volume globular dos animais. Os animais positivos para Trypanossoma spp. no teste de gota espessa eram confirmados como infectados, entretanto, os animais que foram negativos nesse teste foram submetidos ao teste método de Woo, uma vez que esse apresenta maior sensibilidade e é considerado o melhor teste para ser feito à campo (BASTOS, 2015). Ao teste de gota espessa, 57% dos animais mostraram-se positivos enquanto que no teste de Woo, 73% dos animais foram positivos. Além disso, foi constatado que 60% do rebanho apresentou quadro de anemia.
Foi preconizado o tratamento para todo o rebanho em lactação, utilizando a base cloreto de isometamidium na dose de 1,0 mg/kg de peso vivo, sendo necessário 3 aplicações com intervalo de 4 meses, juntamente com uma terapia suporte de fluidoterapia aos animais anêmicos graves e que não estavam se alimentando. A fluidoterapia oral utilizada era constituída de 160 gramas de cloreto de sódio, 20 gramas de cloreto de potássio, 10 gramas de cloreto de cálcio, 300 ml de propilenoglicol, misturados em 20 litros de água morna, sendo administrados uma vez ao dia.
Após 50 dias do início do tratamento, retornou-se à propriedade para avaliar a resposta dos animais diante da primeira dose do tratamento preconizado. Foi relatado que os animais haviam cessado o hábito de geofagia, os quadros de diarreia e os abortos. Outros valores relevantes são que 16 animais vieram a óbito desde o início do surto e a média de produção de leite do rebanho caiu em 4kg por animal/dia.
Novas amostras de sangue foram coletadas nos animais em lactação e de algumas vacas secas para que fosse feito o teste de gota espessa, o método de Woo, e avaliação de quais animais ainda estavam em um quadro anêmico. Todos os animais foram negativos aos dois testes parasitológicos, 7% dos animais ainda apresentaram um quadro de anemia. Tal resultado demonstrou a eficiência em resposta a primeira dose do tratamento, como também uma consequência resultante da parasitemia.
"Outros valores relevantes são que 16 animais vieram a óbito desde o início do surto e a média de produção de leite do rebanho caiu em 4kg por animal/dia".
Discussão
Dentre os fatores que acentuaram a ocorrência da doença nessa propriedade incluem o compartilhamento de agulhas entre os animais para aplicação de endovenosos como relatado por Cadioli et al, 2012, principalmente a administração de ocitocina. Segundo Bastos et al., 2013, normalmente é utilizada a mesma agulha para todo o rebanho, sendo então uma forma de transmissão de patógenos, além de levar as flebites e o incomodo na hora da aplicação - fato que também foi encontrado nos animais doentes.
Além disso, outro fator relevante foi a entrada de novos animais na propriedade que até então era uma área livre. Oliveira et al., 2009 afirmam que o trânsito de animais para diferentes regiões favorece a disseminação da enfermidade. Apesar do contínuo fornecimento de alimentos, observou-se o emagrecimento progressivo dos animais, decorrente da diminuição do apetite, devido à alta parasitemia e manifestações clínicas como anemia, sendo essa um achado comum em infecções por T. vivax (SEIDL et al., 1999). No presente relato, 70% dos animais apresentaram na primeira visita um quadro anêmico e queda no peso corporal.
Foi relatado que haviam ocorrido casos esporádicos de abortos, número esse que não foi constatado devido à falta de organização e anotações zootécnicas por parte da propriedade. Todavia, SEIDL et al, 1999 afirmaram que apesar da enfermidade não apresentar sinais patognomônicos, o aborto é um dos sinais apresentados por animais infectados por T.vivax.
A morte de animais com um curso clínico inferior a 48 horas e a presença de animais crônicos evidencia que a enfermidade se manifestou na propriedade tanto na forma aguda quanto na forma crônica. ABRÃO, 2009 afirma que podem ocorrer casos agudos e levar o animal a morte ou progredir para uma fase subaguda e crônica, ambos vistos na propriedade.
Conclusões
O estudo permitiu relatar mais uma ocorrência de um surto de tripanossomose bovina no estado de Minas Gerais. As condições identificadas na propriedade, como ambiente propício aos vetores, a introdução de novos animais no rebanho, uso compartilhado de agulhas e seringas para a administração de ocitocina são aspectos importantes que provavelmente estiveram associados à instalação e disseminação do agente no rebanho.
Com toda a complexidade em contabilizar os prejuízos resultantes da enfermidade diagnosticada, uma vez que envolvem mortes de animais, abortos, redução da produção de leite, redução do ganho de peso, problemas de cascos, altos custos das drogas tripanocidas além das despesas com assistência técnica, fica evidente que essas perdas foram significativas na propriedade em questão.
Referências bibliográficas
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BASTOS, T. S. A. et al. Surto de Tripanossomose bovina desencadeado após manejo inadequado durante aplicação de medicamento endovenoso. Ars Veterinária, Jaboticabal, v. 29, n. 4, p. 63, 2013.
BASTOS, T. S. A. et al. Detecção de Trypanosoma vivax por diferentes técnicas de diagnóstico parasitológico realizadas à campo. Ars Veterinária, Jaboticabal, v. 31, n. 2, p.181 40, 2015.
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SNARK, A. Prevalência e fatores de risco associados a infecção por Neospora caninum e Trypanossoma vivax em bovinos leiteiros e ocorrência de N. caninum e parasitos gastrointestinais em cães de propriedades rurais do Oeste do Paraná, Brasil. 2017. 120f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em Ciência Animal, Universidade Federal do Paraná, Palotina, Paraná, 2017.