É justamente nesta época do ano, no entanto, que muitos técnicos começam a receber "cobranças" sobre o desempenho "abaixo do esperado" dos animais neste tipo de dieta. Muitas vezes estas reclamações se originam de comparações com produções em anos anteriores ou com a produção dos vizinhos.
É preciso ter em mente que este tipo de comparação é extremamente vaga. Mesmo que a dieta tenha tido o mesmo volumoso (cana), de um ano para o outro sua composição pode ser completamente diferente em função de inúmeros fatores: variedade de cana plantada (veja artigo anterior nesta seção: Qualidade de dezoito variedades de cana-de-açúcar como alimento para bovinos ); idade e época de plantio do canavial; condições climáticas; nível de adubação e tratos culturais, etc.. Somado a isto, outros fatores ligados aos animais também têm influência nos resultados: potencial genético; época e ordem do parto dos animais (um maior número de vacas de primeira cria no rebanho pode diminuir a média); condição corporal; condições climáticas no período, entre muitos outros. Sendo assim, não é possível esperar que a produção seja semelhante nos diferentes anos, muito embora seja saudável estar sempre em busca de melhor desempenho, desde que se tenha objetivos possíveis de ser alcançados, dado um determinado conjunto de condições.
O fato é que, em muitos casos, o produtor constrói expectativas que não condizem com a realidade. Isto provavelmente tem origem no desconhecimento dos "pontos fracos" da cana-de-açúcar como volumoso. A cana, próximo ao seu ponto de colheita, tem cerca de 24% de matéria seca (MS), 60 a 65% de nutrientes digestíveis totais (NDT), 2 a 4% de proteína bruta, 45 a 55% de fibra detergente neutro (FDN), 30-40% de fibra detergente ácido (FDA). Ela se classifica, portanto, como um alimento energético, comparável à silagem de milho em seu teor de energia. Pode-se então esperar resultados semelhantes? Infelizmente a resposta é não. É aí que algumas diferenças "sutis" precisam ser consideradas.
Colocando de uma forma bem simples, a cana possui duas "frações" bastante distintas: o caldo (ou garapa), que representa o conteúdo celular, composto em grande parte por açúcares de fácil e rápida digestão; e o bagaço, que representa a estrutura fibrosa da planta. Não é à-toa que esta fração fibrosa é chamada de bagaço: é nela que reside grande parte das limitações da cana. Especialmente a casca da cana é de baixíssima digestibilidade por possuir grande porcentagem de lignina. Isto faz com que ela demore muito a passar pelo rúmen do animal (2,6%/h). Seu tempo de retenção no rúmen é da ordem de 40 horas, ou seja, do momento em que a vaca consome uma porção de cana, até que ela seja digerida e desocupe o rúmen, se passaram 40 horas. O rúmen tem uma capacidade limitada de contenção de alimentos; sendo assim, para que o animal possa comer novamente é preciso que algum alimento "desocupe" espaço. Em função dessa característica da fibra da cana, vários estudos comprovam que, quando utilizada como volumoso exclusivo, seu consumo é limitado, se comparada, por exemplo, à silagem de milho. O interessante é que, mesmo quando a silagem tem teor semelhante de fibra seu consumo é maior, já que esta fibra normalmente é de maior digestibilidade.
O consumo é fator crítico para a produção de leite. Menor ingestão significa menor quantidade de nutrientes disponíveis para o animal. Vamos fazer um cálculo simples como exemplo: se admitirmos dois animais semelhantes, um consumindo 25 kg de cana-de-açúcar (24% de MS e 65% de NDT) e outro consumindo 30 kg de silagem de milho (30% de MS e 65% de NDT), o primeiro (cana) estará consumindo: 25x0,24x0,65 = 3,9 kg de nutrientes digestíveis totais, enquanto o segundo (sil. de milho) estará consumindo: 30x0,30x0,65 = 5,85 kg de NDT. Esta diferença de somente cinco quilos de consumo, somada aos distintos teores de matéria seca dos volumosos, garante 50% a mais de nutrientes digestíveis totais ao animal que consome a silagem de milho! Isto não significa que as vacas na silagem irão produzir 50% a mais em leite, mas demonstra sim a maior necessidade de suplementação da cana-de-açúcar, se o intuito for obter produções semelhantes à silagem e também a limitação da cana como volumoso para animais de produção mais elevada, já que, a partir de um certo ponto, não será possível mais aumentar a quantidade de concentrado fornecida aos animais sem comprometer sua saúde.
Admitindo-se que o NDT é uma forma de se avaliar o valor energético dos alimentos, a primeira conclusão que se tira é que a cana pode exigir até mesmo suplementação energética, dependendo do resultado esperado.
Outra limitação da cana é seu baixo teor protéico. Muitos vão se apressar em dizer que isto pode ser facilmente resolvido com a adição de uréia. Realmente, a adição de 0,5% de uréia à cana já iguala seu teor de proteína bruta ao de uma silagem de milho. Muitos chegam a utilizar até 1% de uréia. Este valor superior, além de representar maior risco aos animais (intoxicação), também aumenta consideravelmente o teor de proteína solúvel da dieta, muitas vezes ultrapassando a capacidade do animal em aproveitá-la, o que, atualmente, tem sido associado a problemas reprodutivos nos animais. A necessidade de uma suplementação básica da cana com 0,5% de uréia é indiscutível e essencial para seu bom aproveitamento. Em função desta limitação protéica, a cana como alimento exclusivo (sem uréia) teria seu consumo ainda mais reduzido, o que não permitiria sequer sustentar produções da ordem de 4-5 litros de leite (tabela 1).
Por último, mas não menos importante, a cana possui ainda uma séria deficiência de fósforo, mineral de grande importância no metabolismo energético. Em função disso, mesmo considerando que os animais tenham à disposição um suplemento mineral de boa qualidade, é bastante recomendável que se garanta o suprimento de fósforo através da "ingestão forçada" de 50 gramas de fosfato bicálcico por vaca/dia (colocado no cocho sobre a cana ou na ração), especialmente quando a suplementação com concentrados é pequena.
Estas limitações precisam ser consideradas e corrigidas para que se possa ter desempenho adequado de animais alimentados com cana-de-açúcar. Quando estas correções não são observadas, até mesmo a composição do (pouco) leite produzido pode ser comprometida (veja artigo anterior nesta seção: Síndrome do Leite Anormal: um problema nutricional )
Após todas estas "críticas", os que lêem este artigo devem estar pensando que sou contrário ao uso da cana como volumoso. Antes que comece a "chover" cartas na redação, adianto que não é este meu ponto de vista. Minha intenção foi colocar de forma clara, alguns pontos normalmente "esquecidos" quando se fala de cana-de-açúcar. A cana tem seu (grande) lugar como volumoso em nosso meio. Ela se enquadra na maioria de nossas fazendas em função do tipo de exploração predominante (pasto), área disponível para cultivo (pequena), padrão genético do gado (mestiço), etc.. Para que ela possa permitir máximo desempenho dentro desses sistemas é preciso que se conheça suas limitações, e se façam as correções necessárias.
A tabela 1 traz uma simulação da necessidade de suplementação com concentrados, de animais mestiços, com cerca de 500 kg de peso vivo, em dietas à base de cana-de-açúcar como volumoso, para que se possa atingir diferentes níveis de produção.
Tabela 1: Necessidade de suplementação da cana em vários níveis de produção
Observe que para que se possa obter 5 litros de leite uma vaca precisa consumir mais de 30 kg de cana + uréia (antes de tudo é preciso que o cocho esteja cheio!), além de pelo menos 1 kg de farelo de algodão 28%. A partir daí as quantidades de concentrados aumentam progressivamente, enquanto o consumo de cana diminui (efeito parcial de substituição) até os 18 litros, quando seria mais interessante utilizar alimentos mais "concentrados" como o farelo de algodão 38% e o milho ao invés do rolão, para que não seja necessário aumentar ainda mais a quantidade de ração. Nos dois primeiros níveis de produção é recomendável a suplementação adicional com o fosfato bicálcico já que o fósforo contido nos concentrados não é suficiente para complementar a deficiência da cana neste mineral. Também vale a pena notar que a tradicional relação de 1 kg de "ração" para cada 3 litros de leite não funciona no caso da cana. A relação tem que ser mais "estreita" para que a suplementação atenda às necessidades dos animais.