No Espaço Aberto de 18/02/10 propus a existência de um ciclo de três anos dos preços internacionais das commodities lácteas. Neste artigo, veremos a metodologia utilizada, detalhes sobre a provável origem do ciclo, como funciona, quão confiável parece ser e para onde parece estar nos levando.
Os ciclos são mais a regra do que a exceção
Ciclos resultam de sistemas. Um sistema é um conjunto de mecanismos funcionando em cadeia, onde uma coisa leva à outra. Para crescer e durar, todo e qualquer sistema necessita de mecanismos de regulação que, a certa altura do processo, aliviam a pressão de demanda por mais recursos - ou porque estes são limitados, ou porque seu uso excessivo causaria algum dano irreversível. Esse mecanismo se chama feedback negativo ou retroalimentação negativa. Sem ele o sistema entra em colapso (se autodestrói).
Todo o sistema equipado com feedback negativo produz movimentos oscilatórios.
Populações animais e vegetais quaisquer, pragas, doenças, hormônios na corrente sanguínea, comportamento animal ou humano, disponibilidade de pasto para o rebanho, estoques quaisquer e inflação monetária são exemplos de variáveis oscilatórias advindas de sistemas com feedback negativo. Alguns exemplos de feedbacks negativos: sensações de fome e saciedade; dor; escassez de alimento; falta de luz para a planta; cirrose hepática; bóia da válvula da caixa d'água; elevação da taxa de juros etc. Todos eles são reguladores de excessos para a sobrevivência do sistema.
Metodologia em poucas palavras
O método de análise utilizado chama-se transformada wavelet. Ele decompõe o sinal (os dados originais) em distintas ondas formadoras do movimento geral.
Comparo este procedimento, figurativamente, à decomposição de uma música sinfônica em sons vindos de seus vários instrumentos musicais.
Tecnicamente, o índice ANZ de preços (Figura 2, Espaço Aberto, 18/02/10) foi submetido à transformada wavelet do tipo à trous de acordo com Multiresolution Analysis of Time Series de Starck e Murtagh (2001) para discriminação das ondas, expressas em desvio padrão. Para visualização topográfica da potência das ondas e comparação do índice ANZ com o fenômeno El Niño, utilizei transformadas wavelet dos tipos Gauss e Morlet, respectivamente, de acordo com A Practical Guide to Wavelet Analysis, por Torrence e Compo (1998).
De onde vem aquela onda?
O primeiro método produziu sete ondas vindas das forças que têm determinado o comportamento dos preços. Seus períodos médios (intervalos entre cristas), seguidos dos desvios padrão em meses, foram: 3 (±0,9), 7 (±2,4), 15 (±7,2), 32 (±7,6), 41 (±3,8), 95 (±5,7) e 286 meses (desvio não disponível para esta onda por insuficiência de oscilações até o momento). Veja na Figura 4 como elas se mostram.
Figura 4. Ondas formadoras do índice ANZ de preços de commodities lácteas no mercado internacional, obtidas pela transformada wavelet, expressas em desvio padrão do índice. Números junto às linhas são seus períodos médios em meses.
Para facilitar a interpretação, essas sete forças foram agrupadas em três categorias: ondas curtas, médias e longas, resultando em períodos de 4, 36 e 96 meses, respectivamente (Figura 5), como se analisássemos os instrumentos da orquestra por cordas, sopro e percussão. A linha amarela mostra o aumento da volatilidade das ondas médias, mas note que esta tem aumentado nos três grupos (ou seja, no curto, no médio e no longo prazo).
Figura 5. Grupos de ondas formadoras do índice ANZ, obtidas da união das forças da Figura 4. Números junto às linhas são períodos médios em meses.
Conhecemos, agora, as ondas que determinam o movimento do índice ANZ, como elas se parecem, como se comportam, mas o que são e de onde veem?
Como vimos antes, o padrão oscilatório resulta de sistemas ou de subsistemas equipados com feedback negativo (com limites contra o crescimento excessivo). Isso é boa notícia, pois...
...é evidência de que o sistema maior, a grande cadeia láctea mundial, tem mecanismos internos poderosos que, até então, têm impedido seu colapso.
As ondas médias determinam o padrão de 36 meses (3 anos), que é o mais marcante da série devido a maior regularidade e volatilidade. No entanto, o que temos em nossa frente é uma combinação de vários ciclos operando em conjunto. Consequentemente, o movimento que vemos no índice é o resultado líquido dos movimentos dos vários ciclos somados. A ausência da crista 2004/05 é um bom exemplo. As forças que determinariam a crista neste período (32 e 41 meses) encontravam-se mais fracas e se anularam ao coincidir com a força oposta da onda de 95 meses (Figura 4), resultando apenas num sobe e desce das ondas curtas sobre a escalada maior da onda de 286 meses (Figura 2, Espaço Aberto, 18/02/10). Da mesma forma, o pico histórico de preços em setembro de 2007 foi um grande evento porque todas as ondas se encontravam subindo, estavam mais fortes que o normal e suas cristas coincidiram.
Embora o índice seja compilado na Nova Zelândia, numa economia globalizada, os efeitos sobre commodities no mercado internacional têm várias origens geográficas e políticas. Tendo isso em mente, ...
...proponho as seguintes hipóteses como prováveis causas para os padrões das ondas:
(a) As ondas curtas parecem se originar de variações sazonais de oferta e demanda de lácteos, tanto intra como entre hemisférios terrestres. Estas ocorrem associadas a duas importantes forças que também fazem o mercado oscilar: ambição e medo por parte dos compradores (importadores, atacadistas e varejistas). Uma expectativa de falta de leite, como extensa seca na Oceania, ou de forte aumento de demanda, como a recuperação da economia mundial, desencadeia acirrada concorrência pelos produtos e o preço sobe. Ao subir demais, sofre logo nova correção para baixo. Este é um processo permanente.
A dificuldade de antever os acontecimentos leva os compradores a tomar decisões com base num horizonte de tempo futuro que eles se sentem confortáveis, o que raramente vai além de três a sete meses.
Estabelece-se, assim, o efeito serrilhado das ondas curtas (Figuras 4 e 5).
(b) As ondas médias são mais importantes em magnitude e parecem ser mais complexas em sua origem.
Talvez a melhor explicação para as oscilações de três anos seja o tempo de formação de uma vaca em lactação.
Perspectivas de mercado são muito importantes para os produtores decidirem se mantém, diminuem ou aumentam seus rebanhos. Quando o cenário futuro é encorajador, mais animais são retidos e mais novilhas produzidas (o advento do sêmen sexado intensificou ainda mais este fator). Da decisão de inseminar uma vaca até a primeira parição de sua filha leva 36 meses (3 anos), um pouco mais ou menos, dependendo da fertilidade do rebanho. Se a decisão for segurar animais que seriam descartados, o tempo é encurtado. Se envolver a tentativa de fazer vacas-problema emprenhar, o tempo é alongado.
Perspectivas de mercado são amplamente divulgadas no mundo todo (market outlooks). Assim, a decisão de aumentar o rebanho é tomada por massas de produtores em todos os continentes, na mesma época, com as mesmas expectativas e mesmas ferramentas (com isso sobem os custos de produção) e, em três anos, todos terão mais leite. O mercado mundial é inundado pelo produto o que desencadeia uma série de feedbacks negativos. Preços aos produtores caem verticalmente, dívidas se tornam impagáveis, muitos quebram e assim por diante, levando à redução do estoque de vacas. Então, ...
...com menos leite no mercado, menores custos e novas perspectivas de demanda, o ciclo se reinicia.
É possível que este ciclo de geração da vaca seja influenciado por outras forças de similar periodicidade, mas neste momento, não as consigo enxergar.
(c) As ondas longas derivam-se de forças macroeconômicas. Uma delas parece ser a inflação, que resulta em aumentos progressivos dos preços, comportamento compatível com a onda mais longa da Figura 4, como também o é a expansão e criação de novos mercados consumidores de lácteos. Da taxa de câmbio, por outro lado, se esperaria um efeito oscilatório muito maior que o da inflação. Considera-se, também na Nova Zelândia, que o USD (dólar americano) estando forte desencoraja o mercado internacional de lácteos. Na Figura 6 encontram-se os índices ANZ em NZD (dólar neozelandês) e em USD e a taxa de câmbio entre estas duas moedas. Note que nos períodos indicados pelas elipses verdes, o USD esteve supervalorizado, mas, mesmo assim, houve grande demanda mundial por lácteos (levando a altos preços em ambas as moedas), comportamento exatamente inverso do que é normalmente esperado (visto nos demais períodos).
Figura 6. Comportamento do índice ANZ de preços de commodities lácteas (eixo da direita) frente à taxa de câmbio NZD/USD (eixo da esquerda) e períodos de aparentes anomalias (elipses verdes).
Curiosamente, numa regressão entre câmbio e preços (Figura 7), os maiores preços ocorrem nos dois extremos, quando o USD está muito baixo (elipse vermelha) ou muito alto (elipse verde). O coeficiente de determinação alto (R2=0,76) sugere que boa parte da variação do índice pode ser explicada, pelo menos estatisticamente, pelas variações do câmbio (a correlação foi de 0,87).
Figura 7. Análise de regressão entre a taxa de câmbio e o índice ANZ.
Porém, uma alta correlação entre variáveis não revela, necessariamente, uma relação causa-efeito.
Por exemplo, a correlação entre taxa de crescimento de pastagens (TCP) e contagem total de bactérias no leite (CTB) é alta no Brasil, mas a causa são as variações de temperatura ambiental influenciando a ambas e não TCP determinando CTB só porque estão altamente correlacionadas. Da mesma forma, vejo indícios de que a taxa de câmbio e o índice ANZ sejam efeitos com causas comuns e suspeito que...
...a taxa de câmbio tenha muito menor influência nos preços de commodities lácteas no mercado internacional do que normalmente se supõe, mundialmente.
Outras forças que exercem oscilações cíclicas nos preços das commodities lácteas são: políticas governamentais seguidas por políticas contrárias de governos que se sucedem (os vários pacotes de estímulo às economias e intervenções governamentais pelo mundo provavelmente terão grande impacto no sistema, em algum momento mais adiante) e a oscilação dos preços de outras commodities, em particular petróleo, soja e milho pelas ligações diretas com o leite.
O fenômeno El Niño e os preços das commodities lácteas
Nesta seção pretendo demonstrar que os preços internacionais das commodities lácteas são mais previsíveis que o fenômeno El Niño. Compare as próximas três figuras. Quanto mais próximo do padrão mostrado na Figura 8, mais previsível o sistema.
Figura 8. Exemplo de um sistema altamente previsível: (a) sinal único com ondas senóides perfeitamente regulares e (b) representação topográfica da potência das ondas vistas de cima (topos em vermelho; vales tracejados).
Na Figura 9, temos em (a) o sinal (os dados originais de temperatura do Pacífico); em (b) a decomposição das ondas vistas de cima, com seus vários períodos e potências no mapa topográfico colorido; e em (c) um teste estatístico da potência dessas ondas, que é uma visão em corte lateral esquerdo de (b). A porção que ultrapassar a linha pontilhada é estatisticamente significativa (ou seja, as ondas não se tratam de mero "ruído"). Em (b) veja que as ondas dominantes (em vermelho) se repetem em períodos de 3, 5, 10 e 16 anos.
Figura 9. Análise da transformada wavelet das oscilações de temperatura do Oceano Pacífico (a), mostrando o espectro de potência das ondas e seus períodos dominantes (b) e teste estatístico da significância das potências (c).
De posse desse conhecimento, agora compare as Figuras 9 e 10. Veja que a Figura 10 (b) está muito mais próximo da Figura 8 em regularidade, especialmente se olharmos por períodos. Apesar de não ser exatamente a mesma análise das Figuras 4 e 5, os períodos revelados são praticamente os mesmos nesta transformada. O gráfico (c) mostra que as ondas da Figura 10 são estatisticamente significativas, exceto as ondas curtas, com menos de 16 meses, que em (b) aparecem como "ruído" (áreas azuis).
Figura 10. Mesmo que a figura anterior, mas para o índice ANZ.
Apesar das irregularidades vistas na Figura 9, o fenômeno El Niño é o sistema climático com oscilações de curto prazo mais previsível de nosso planeta e as previsões de seu comportamento têm se tornado melhores a cada ano. Como o sistema formador dos preços internacionais das commodities é mais regular...
...é possível formular modelos de previsão de preços mais confiáveis que os modelos de previsão do El Niño.
A previsão do El Niño só passou a funcionar quando os pesquisadores compreenderam as dinâmicas dos sistemas associados a ele. Creio que temos a aprender com essa experiência.
E como fica o futuro?
Há muito que avançar em conhecimento deste ciclo. A proposta acima deverá ser escrutinada criticamente, colocada à prova e melhorada onde se mostrar falha. Isso estabelecerá as condições para se formular um modelo computacional preditivo para o comportamento dos preços internacionais. Até que se chegue a esse ponto, qualquer previsão é arriscada. Mesmo assim, podemos extrair algumas conclusões e delinear as tendências mais evidentes.
Sabemos, agora, porque não podemos esperar que os preços das commodities lácteas, ao subirem, permaneçam elevados, mas também sabemos que, ao caírem, não permanecerão baixos por muito tempo. Recentemente saímos de um fundo de preços e o ciclo dominante indica que estamos subindo em direção a um novo topo. De US$5.000/t de LPI caímos para US$1.700 e estamos agora oscilando próximo dos U$3.600 na Oceania. Os índices ANZ de janeiro e fevereiro ainda não foram publicados. No entanto, nestes últimos dois meses sabemos que houve uma freada na escalada. A Figura 5 indica que deve se tratar de uma correção das forças de curto prazo, que haviam subido demais (linha preta) e estão, agora, se equilibrando. No entanto, as forças de médio prazo continuam indicando subida, com as de longo prazo sustentando a tendência geral também para cima.
Ao longo dos 24 anos da série, os picos tenderam a ocorrer nos meses de setembro, a cada três anos, e os fundos centrados em abril com recuperação a partir de junho, também a cada três anos.
O último pico foi em setembro de 2007, então a expectativa seria de um pico em setembro deste ano. Como a última recuperação tardou dois meses, influenciada pela crise mundial, pode ser que o pico também atrase um pouco (com tendência a isso se regularizar, pois é o que os dados históricos mostram que ocorre).
Muitas incertezas permanecem com relação à recuperação da economia pós-crise imobiliária dos EUA. Se essas se resolverem ainda ano primeiro semestre, tudo indica que teremos novos preços recordes. Se as incertezas continuarem no segundo semestre (pouco provável), então poderá que o pico se resuma a valores apenas um pouco maiores que os atuais e que percamos a oportunidade de grandes ganhos, pois...
...a partir do final deste ano devem começar a operar forças baixistas do ciclo de três anos para culminar no próximo fundo em abril de 2012.
A grande onda da Figura 4 parece estar chegando ao seu topo, mas a verdade é que ainda não a conhecemos o suficiente. Mesmo que ela (a tendência geral de grande prazo) permaneça em fase de alta por mais tempo, a próxima queda ocasionada pelas ondas de três anos deverá ser muito importante.
Produtores, no mundo todo, assumiram muitas dívidas na última onda altista de 2007/2008, mas expectativas frustradas impediram a muitos de as saldarem. Alguns quebraram (muitos nos EUA) e outros negociaram as dívidas (como na NZ e no Brasil). Se este pico realmente chegar a valores recordes, estes mesmos produtores tenderão a assumir ainda mais dívidas, pois todos (inclusive os bancos) parecem ficar superotimistas frente a cenários tão animadores.
Isso agora seria perigoso, porque o nível de endividamento dos produtores no mundo todo já está alto demais e a próxima queda deverá ser mais forte.
Espero que este artigo seja também lido e lembrado por produtores e gerentes de bancos nessa situação, de forma que eles não caiam na armadilha da ilusão de um "novo patamar de preços" novamente. Isso não existe, mesmo em nosso mercado interno.
Um crescimento significativo e sustentável só pode resultar da identificação e posterior elevação planejada dos limites do sistema e não da insistência em desafiá-los a qualquer custo.
Agradecimentos
No desenvolvimento deste estudo recebi valiosas críticas e sugestões dos seguintes cientistas: Dr. Alvaro Romera (modelagem, DairyNZ, NZ), Daniel Conforte (gestão de agronegócios, Massey University, NZ), Matthew Newman (economista, DairyNZ) e Dr. Wayne B. Beskow (análise de sistemas, CNPq, Brasil).
Wagner Brod Beskow, Eng. Agrônomo, Ph.D. pela Massey University (NZ), pesquisador da CCGL Tecnologia (divisão de pesquisa do Grupo CCGL em Cruz Alta, RS).