Imagine um pequeno produtor, com 13 hectares, produzindo apenas 150 litros diários e vendo seus filhos buscarem outros trabalhos por não ser possível sustentar a família. Imagine esse mesmo produtor investindo tudo em um poço artesiano e descobrindo que não tinha água disponível para irrigar a propriedade e que teria que continuar a dividir a água com as vacas. Irrigação, nem pensar.
Agora imagine esse mesmo produtor, 8 anos mais tarde, após investir na captação da água da chuva, que é farta, mas irregular, descobrindo novas formas de garantir o suprimento hídrico; após mexer na estrutura do rebanho, mantendo quase que apenas as vacas em lactação; após racionalizar o fornecimento de volumoso, em pastejo rotacionado com forrageiras subtropicais no verão e temperadas no inverno.
Produzindo cerca de 800 litros diários, os filhos voltaram, a casa foi reformada, tem até carro novo na garagem. Nos mesmos 13 hectares.
Os Balzan – atividade tem gerado mais de R$ 6.500/ha de lucro/ano, permitindo trazer os filhos de volta e reformar a casa na propriedade em São Lourenço D’Oeste, SC.
A história do produtor Antônio Balzan, no Oeste de Santa Catarina, é semelhante à de muitos outros no Sul do país (e mesmo em outras regiões). Tive a oportunidade de conhecer alguns deles em visita organizada pela Cooperideal, cooperativa de técnicos que atua em 11 estados e mais de 1.200 propriedades. A Cooperideal trabalha com a metodologia Balde Cheio e vem contribuindo para fazer uma revolução silenciosa nessas pequenas propriedades, muitas delas naquele limite tênue entre se manter precariamente na atividade e vendê-la a contragosto, forçadas pelas dificuldades econômicas da atividade conduzida sem planejamento e assistência técnica.
Granja Arsego – grande produtor familiar no Sul, com quase 5.000 litros em 65 hectares. Técnicos da Cooperideal mostram a propriedade do Sr. Waldir Arsego
O objetivo da minha visita foi entender um pouco mais a respeito do desenvolvimento da região Sul do país, nesse caso o Oeste Catarinense e o Sudoeste Paranaense, duas das mesoregiões de maior crescimento da atividade no país. Nos últimos 10 anos, cresceram 9,8% e 9,9% ao ano, respectivamente, atrás apenas do Centro Sul Paranaense, que cresceu 14,5% ao ano, porém a partir de uma base várias vezes menor. O Brasil, no mesmo período, cresceu 4,1% ao ano.
Granja Arsego, em Xanxerê, SC. Alto valor da terra estimula aumento da produtividade.
O que, afinal, faz com que o leite cresça consistentemente nessas regiões? Em uma primeira análise, pensamos nas condições naturais de produção, como o clima mais ameno, permitindo exploração de rebanhos de raças especializadas para produção; a distribuição de chuvas durante todo o ano, minimizando a necessidade de irrigação; a produção de forrageiras temperadas, como azevém e aveia, de alta qualidade nutricional.
Simplicidade nas instalações do Sítio Espósito, mas alta eficiência
Uma análise mais criteriosa, porém, coloca dúvidas a respeito dessas vantagens. As áreas são pequenas, com topografia, em geral, menos favorável do que em outras regiões; apesar da boa fertilidade dos solos, há a presença de pedras em várias propriedades, dificultando a mecanização e/ou encarecendo o preparo do solo; o calor no verão é intenso, provocando estresse térmico nos animais; as chuvas não são tão bem distribuídas assim, tanto que o uso de irrigação tem andado lado a lado com o desenvolvimento da atividade. Por fim, os altos preços da terra dificultam a expansão para novas áreas. Para se ter uma ideia, na região de Xanxerê, no Oeste de Santa Catarina, um hectare chega a valer R$ 150.000. Isso mesmo, cento e cinquenta mil reais. Preço neozelandês! Em outras áreas menos valorizadas, não se encontram áreas a menos de R$ 50.000/ha.
Sitio Espósito, de Vanderlei Espósito e Arlete. Pedras retiradas na mão para abrir novas áreas. Hoje, orgulho de ser referência em Irati, SC, produzindo 500 litros diários em 14 hectares. Custo total nos últimos 12 meses foi de menos de R$ 0,70/litro, com tudo incluído, gerando remuneração do capital de 17,1% ao ano.
Assim, analisando algumas variáveis básicas de competitividade, é fácil constatar que o Sul do país tem terra mais cara, relação de troca entre grãos e leite pior, e menor produtividade potencial por área, em função da menor temperatura média de inverno. Tudo somado – os pontos positivos: forrageiras de alta qualidade, raças especializadas para produção, regime hídrico em tese mais favorável, e os negativos acima mencionados, não é possível explicar, apenas por essas características, o sucesso retumbante da região na produção de leite.
Arrisco-me a dizer, até, que o Sul tem menor potencial do que outras regiões. Por que será que os neozelandeses foram para Goiás e Bahia, e não para o Sul, onde a semelhança técnica seria muito maior? Aliás, o efeito de muitos produtores de outras regiões ao visitar essas pequenas propriedades do Sul é o de constatar que suas fazendas e regiões têm potencial muito maior (e talvez esse seja até parte do problema…).
E, mesmo assim, o Sul cresce e continuará crescendo, como colocou recentemente Paulo Martins, em seu blog Observatório.
Alguns obstáculos acabam sendo vantagens importantes. As pequenas propriedades, por exemplo. Afinal, que outra atividade pode ser desenvolvida em áreas de topografia irregular, com relativo baixo risco técnico e de mercado, e que permita remuneração mensal para a família? Não muitas.
Mas, isso não é tudo. Após minha curta visita, ficou evidente que o grande diferencial do Sul são as pessoas e a cultura, o tecido social que faz com que o leite se desenvolva na região. Não são as condições climáticas, não é a aptidão natural para produção, mas sim quem ocupa a terra e a identificação histórica com a atividade.
A grande diferença é que essas regiões têm uma forte identidade rural, com produção de leite tipicamente familiar. Nelas, a diferença é que o produtor é o trabalhador, como ocorre nos EUA, na Nova Zelândia ou na Europa, ao passo que em muitas outras regiões do país o produtor muitas vezes é o capitalista, mesmo produzindo tão pouco quanto 500, 600, 1000 litros/dia. Contrata outros para fazer o trabalho, o que se constituirá um desafio cada vez maior em um ambiente marcado pela falta de mão-de-obra rural. Nessas regiões, acredito que o grosso do leite virá cada vez mais de grandes projetos, ao passo que, no Sul, continuarão predominando modelos familiares.
Propriedade de Adelar Zatt. Topografia ajuda ou atrapalha o leite a s desenvolver na região?
Belas paisagens na região de Mariópolis, no Sudoeste do Paraná – propriedade de Adelir Zatt, irmão de Adelar
Adelir mostra sua nova aquisição, facilitando a roçada dos piquetes. Automação é tendência em propriedades familiares.
Enfim, no Sul é o ambiente social, não o geográfico, que faz a diferença. A ficha caiu quando estava na propriedade de Adelar e Dimarlei Zatt, na comunidade de Nossa Senhoras das Dores, no município de Mariópois, no Paraná. A partir de uma estrada muito bem empedrada pela prefeitura local, chega-se a diversas pequenas propriedades – cerca de 50 naquela comunidade – unidas por um centro comunitário, onde se realizam festas. Há um tecido social mantendo aquilo funcionando e criando as condições para que técnicos de rara habilidade de comunicação, como o folclórico Primo Neto, mais conhecido como Pipão, possam colocar em prática seu conhecimento e visão em prol das famílias locais. Esse tecido social, em muitas regiões, já se perdeu ou vem se perdendo, seja pela expansão urbana, seja pela expansão da grande exploração agrícola.
Primo Neto, o Pipão, técnico da Cooperideal. O objetivo do trabalho é, em suas palavras, salvar as famílias. Mas é preciso fazer o que foi combinado.
O Sul continuará passando por mudanças interessantes. Ao mesmo tempo em que mais produtores começam a intensificar a atividade, utilizando os conceitos que fizeram Balzan pular de 150 para 800 litros diários, outros verificam aumento da produtividade animal e já começam a perceber que o conforto e bem-estar das vacas mais produtivas será um desafio. Mais de um produtor visitado estuda construir um compost barn para vacas pré-parto e/ou as de mais alta produção. Acredito que um próximo passo será um sistema misto, com confinamento das vacas mais produtivas para aumento da produtividade por vaca e utilização de pastagens intensivas para as demais categorias. Outra forte tendência é a automação; se ordenhas robóticas se tornarem realmente realidade por aqui, será no Sul do país onde encontrarão seu principal mercado.