Temos um déficit crônico de informações estatísticas no Brasil, em especial na agricultura. Em função disso, muitas vezes somos obrigados a "prever o passado" para poder explicar o que ocorreu. O que dizer então de prever os próximos meses?
Nesse artigo, o intuito é procurar explicar a elevação e queda precoces dos preços dos lácteos, conforme o gráfico 1 mostra: após uma rápida escalada de preços ao produtor, em maio, antes do início oficial da tradicional entressafra, os preços começaram a retroceder, em um comportamento distinto do verificado nos últimos 4 anos (aliás, parece haver uma antecipação do pico de preços desde 2007).
A primeira tarefa dessa previsão do passado é calcular a disponibilidade per capita de leite no primeiro semestre, ao menos considerando o leite inspecionado. Ocorre que só temos os dados do IBGE para o primeiro trimestre: 5,7% de aumento sobre o mesmo período de 2009. O que fizemos então foi utilizar a variação porcentual para o segundo trimestre, obtida pelo Cepea, e aplicar na quantidade de leite informada pelo IBGE no primeiro trimestre. É uma arbitrariedade, mas tem sua lógica.
Ao fazermos isso, considerando que o Cepea indicou uma modesta queda de 6% - compatível com as boas expectativas de preços nesse início de ano e com a relação de troca favorável-, teremos que a produção oficial no primeiro semestre teria sido de 10,11 bilhões de litros, o que daria significativos 9,6% acima da produção de 2009.
Esta ordem de grandeza parece verossímil, se considerarmos que i) o primeiro semestre de 2009 foi um período de retrocesso na produção; ii) os preços não resistiram por muito tempo, o que seria realmente de se esperar em função de um aumento significativo da produção, aliada ainda a importações maiores do que as exportações, estas quase nulas.
Utilizando esta estimativa de produção, além de importações, exportações e da população média no período, foi possível enfim calcular a disponibilidade per capita de leite, isto é, quanto cada habitante teve à sua disposição, teoricamente, de equivalente-leite (lembremos: apenas do leite inspecionado). Esse cálculo indicou um aumento substancial em relação a vários semestres anteriores, à exceção do segundo semestre de 2009.
Seria essa disponibilidade per capita suficiente para resultar nas quedas drásticas verificadas muito antes do normal?
Antes de concluir, é importante analisar a variável da demanda. Aqui, fizemos mais uma estimativa arbitrária. Partindo do crescimento do PIB de 7,3% para 2010, um ano de forte recuperação na economia, e do aumento da população da ordem de 0,93%, inferimos que a renda per capita crescerá 6,32% em 2010, uma elevação significativa, portanto.
Sabe-se que, a cada incremento porcentual da renda, há uma elevação do consumo de lácteos. É a chamada elasticidade-renda da demanda. Utilizando os dados da Pesquisa do Orçamento Familiar do IBGE, de 2002/03 (POF 2002/2003), que indicam uma elasticidade-renda de 0,49, ou seja, que a cada 1% de aumento da renda em média o consumo de lácteos aumenta 0,49%, calculamos o aumento porcentual potencial do consumo de lácteos em 2010, que seria da ordem de 3,10%, suficiente para elevar o consumo de 148 kg para 152,6 kg, um aumento de mais de 4,5 kg por pessoa/ano. Por fim, levando em conta que, além do crescimento da renda há o aumento da população, o mercado total, em volume, pode em tese crescer 4,06% em 2010.
Claro que há estimativas consideráveis nesses cálculos, mas é um ponto de partida. Também, é preciso lembrar que nem todos os lácteos apresentam a mesma elasticidade-renda: queijos e iogurtes são bem mais elásticos do que leite em pó e leite fluido, por exemplo.
Agora que chegamos até aqui, resolvemos ir um pouco mais longe. Estimando a população mês a mês, a produção mês a mês (inclusive para os meses faltantes), as importações e exportações mês a mês (idem), e distribuindo o aumento potencial do consumo per capita a cada mês, fazendo ainda uma ponderação para as diferenças de consumo entre os meses (ex: fevereiro e julho com menor consumo, etc), é possível calcular déficit/superávit de leite a cada mês e, obviamente, no acumulado do ano. É o que os gráficos 3 e 4 mostram.
A rigor, o que teríamos seria um superávit decrescente nos meses iniciais, substituído, a partir de abril, por um déficit, isto é, consumo maior do que oferta. Por esses dados, e supondo um aumento de produção de apenas 2,4% no segundo semestre, fruto do desestímulo ocasionado pela queda nos preços, teríamos basicamente um ano em que em metade dos meses teríamos déficit no consumo, em especial nesse momento. Em suma, a pressão agora seria altista, e não baixista (ou estável em patamares significativamente mais baixos do que os picos).
Mas não é o que está ocorrendo. Para nossa análise estar equivocada, isto é, para que tenhamos uma oferta superior à demanda nesse período, das duas, uma: ou a oferta está bem mais alta do que o estimado, isto é, os 9,6% de aumento no primeiro semestre estariam subestimados - o que seria uma possibilidade pouco provável-, ou a elasticidade-renda é ainda mais baixa do que 0,49%, isto é, cada % de aumento da renda geraria um aumento ainda mais baixo do consumo. Isto pode ser possível, considerando que nos baseamos na POF 2002/03 e, de lá para cá, com o aumento da renda e com a redução da proporção desta gasta com alimentação, a tendência é mesmo a redução da elasticidade-renda.
(observação: a outra possibilidade não considerada é a existência de estoques de passagem significativos de 2009 para 2010, o que é provável levando-se em conta o salto na disponibilidade per capita de leite no segundo semestre de 2009. Com isso, o ano teria iniciado com estoques ainda mais elevados, o que explicaria o fato de não termos um mercado comprador nesse momento - mas, de qualquer forma dificulta a compreensão a respeito dos aumentos dos preços - veja a discussão nas cartas, a partir da contribuição do Laércio Barbosa).
Há, ainda, uma terceira possibilidade: o comportamento específico do leite UHT. Nos últimos anos, tem sido o produto mais volátil em termos de preços. Em 2009, as indústrias que tinham estoque de UHT no inverno tiveram resultado muito positivo ao vender boa quantidade no momento de alta dos preços. Este fato pode ter direcionado a estratégia comercial do segmento: aumentar a captação no início do ano, visando lucrar com preços mais elevados no meio do ano. Uma estratégia lícita, por sinal, desde que as condições do mercado a justificassem.
Ocorre que, com o aumento da oferta de leite a taxas consideráveis e, considerando que o UHT tem baixa elasticidade-renda, a possível estratégia consensual não foi bem sucedida: em algum momento, o mercado falou mais alto e os preços retrocederam, puxando o restante do mercado para baixo.
O gráfico 5 dá pistas nesse sentido. Trata-se da variação dos preços do UHT no varejo de Piracicaba/SP, confrontada com a variação dos dias médios de fabricação. Nossa experiência tem mostrado que os momentos de preços mais altos coincidem com maior giro do produto, refletido em dias de fabricação mais baixos nas prateleiras. No entanto, nesse ano ocorreu algo distinto. O aumento de preços foi acompanhado pelo aumento nos dias de fabricação, sugerindo que o setor apostou em um comportamento altista, que acabou não se sustentando. À medida que os preços subiam, os estoques também cresciam e a data média de fabricação aumentava. Há que se ter cuidado em extrapolar a amostragem em uma cidade para todo o país, mas a julgar pelo que nossos contatos no mercado nos informaram ao longo do período, esse cenário parece correto.
Se nossa análise estiver correta, haveria espaço para ajustes para cima dos preços dos lácteos no atacado e ao produtor, ao menos nesse momento, e desde que o balanço entre exportações e importações não fique ainda mais negativo mês a mês. Talvez pelas imperfeições do mercado, pelas particularidades de produtos específicos ou pela proximidade das chuvas, isso não venha a ocorrer (ou, talvez, por erros nas nossas estimativas, que partiram de vários pressupostos).
De qualquer forma, mais do que procurar prever o que vai ocorrer ou mesmo o que ocorreu, esse artigo tem o propósito de procurar levantar pontos para discussão, sejam eles relativos à oferta, à demanda ou ao comportamento dos preços.
Gostaríamos de ouvir a sua opinião a respeito desses dados, principalmente dos agentes envolvidos com o dia-a-dia do mercado de lácteos.
Este é um artigo diferente dos demais artigos dessa seção. É uma análise que fará parte de um novo serviço de consultoria de mercado que desenvolveremos, chamado de
MilkPoint Market Analysis, focado no mercado corporativo. Em breve, vocês terão mais informações.