A retração é inédita no passado recente do setor, como se pode verificar no gráfico 1. Nem nos anos de maior crise houve retrocesso na captação de leite. É bem verdade que no primeiro semestre de 2008 a produção cresceu significativos 13,9% sobre 2007, ou 1,18 bilhão de litros. Mas, nesse ano, perdemos 37% do aumento que conseguimos de 2007 para 2008.
A queda ocorreu principalmente em função do segundo trimestre, em que a produção inspecionada caiu 8,7% sobre 2008 e 13,6% sobre o primeiro trimestre.
Gráfico 1.: Variação da captação inspecionada entre primeiros semestres de anos consecutivos.
Com os preços em recuperação desde maio, é esperado que essa forte queda verificada até junho tenha sido parcialmente revertida nos últimos 3 meses, até porque o segundo semestre de 2008 foi caracterizado pela redução da intensidade do crescimento da produção, resultando finalmente em oferta menor de leite em comparação ao ano anterior, verificada nos dois primeiros trimestres do ano.
De outro lado, há informações de que a demanda interna de alimentos foi pouco afetada pela crise. Dados apontam que, em volume, o primeiro semestre apresentou crescimento de 15% sobre 2008 em relação ao consumo de alimentos, e que a crise não foi suficiente para reverter o processo de melhoria da renda e crescimento da classe média, em detrimento das classes menos favorecidas, que vêm encolhendo nos últimos 6 anos.
Diante desse cenário, era de se esperar um forte desabastecimento, ainda mais considerando que, nos últimos anos, o mercado total crescia a uma taxa de 3% ao ano, sendo metade dele devido ao aumento do consumo por pessoa e a outra metade em função do crescimento populacional, isto é, pelo crescimento orgânico da população.
Em resumo, em contraposição a um mercado que vem se expandindo em média a 3% ao ano, tivemos 4,5% menos leite (inspecionado pelo SIF, é bom que se diga) no país. Essa combinação seria suficiente para jogar os preços nas alturas com efeito significativo na inflação, resultando, posteriormente, em uma entrada maciça de leite importado e, depois, na recuperação da produção, estimulada por preços recordes.
Sem dúvida, os preços no mercado interno subiram e o leite voltou a ser apontado na mídia como "o vilão da inflação", porém por um período curto de tempo. O gráfico 2 mostra a elevação dos preços dos principais lácteos no atacado e, o gráfico 3, mostra o preço composto de venda do leite no varejo, estimado a partir do mix entre leite UHT, leite pasteurizado, queijos e leite pó, convertidos para equivalente-leite.
Gráfico 2. Preços dos derivados no atacado (Cepea).
Gráfico 3. Preço composto de venda do leite no varejo (R$/litro), deflacionado pelo IGP-DI.
Neste último, se analisarmos o preço médio desde janeiro de 2008, veremos que passamos quase que o ano todo vendendo leite (na forma de leite fluido, pó ou queijo) entre R$ 1,62 e 1,79/litro, com valor médio de R$ 1,72. Em julho 2009, passamos dos R$ 1,95 por litro, isto é, o setor conseguiu agregar mais de RS$ 0,20 por litro sobre o valor médio, mesmo considerando que o pó puxou os preços de venda para baixo.
Mas, a julgar pela situação colocada acima (pouco leite e demanda forte), era de se esperar mais, até porque o produto que realmente subiu significativamente foi o UHT (o queijo também, mas menos), fruto em parte de uma situação específica verificada por esse produto: dificuldade (ou quebra mesmo) de empresas com fatias importantes de mercado; tributação do UHT de fora do estado em São Paulo, que representa 40% do mercado brasileiro; maior produção de leite em pó a partir do segundo semestre de 2007 (afetando a produção UHT), atraída pelos fortes preços externos.
O que houve, então?
O que houve foi que, enquanto no primeiro semestre de 2008 tivemos balanço altamente positivo entre exportações e importações, resultando em retirada líquida de 260 milhões de litros do mercado, nesse ano o processo foi inverso: internalizamos cerca de 202 milhões de litros quando contabilizado o volume exportado menos o volume importado. Somando-se os dois períodos, isso significou 462 milhões de litros a mais no mercado interno (tabela abaixo). Praticamente volume igual (na realidade, 5,7% a mais) ao que deixamos de produzir no período (437 milhões de litros).
Mesmo considerando o crescimento populacional no período, a disponibilidade per capita de leite por habitante pouco variou: 49,3 kg para 48,8 kg de leite inspecionado pelo SIF no primeiro semestre, apenas 1% a menos.
Esses dados mostram que, apesar do Brasil exportar e importar pouco de sua produção, sendo hoje basicamente um país autossuficiente, as exportações (ou sua ausência) são fundamentais para regular o mercado. Em 2008, no primeiro semestre, exportamos 4% da produção e importamos 1,2%. Em 2009, exportamos 2% e importamos 4,3%. Essas diferenças foram o bastante para equilibrar a disponibilidade per capita de leite mesmo diante de um quadro inédito de retração na produção.
A análise dessa variável de comércio exterior é a peça faltante a explicar o porquê de, em uma situação de menos leite, conforme confirmado oficialmente dia 30 pelo IBGE, não termos tido de fato um déficit de abastecimento (e preços ainda mais altos em um primeiro momento).