Wagner Beskon, em seu artigo publicado na edição de fevereiro de 2013 da revista Leite Integral, moldou o perfil dos produtores e os divide em tipo patronal extrativo e do tipo familiar sobrevivente. Independentemente desta divisão de origens, ele chama a atenção para o surgimento de um novo perfil de produtor denominado empreendedor rural.
Associado a essas mudanças no tamanho e escala de produção, especialização de mercado e gestão das empresas rurais, os mercados têm colocado grandes restrições sobre as margens de lucro do leite vendido em virtude dos crescentes custos de produção, forçando uma atuação mais atenta por parte dos produtores.
Em resposta a este novo contexto, uma nova abordagem de trabalho tem sido colocada em prática por algumas Universidades em todo o mundo, incluindo a Escola de Veterinária da UFMG. Esta nova abordagem se baseia nos conceitos de doenças subclínicas e medicina de rebanho, levantados a priori por Douglas Charles Blood, professor de Medicina Veterinária e Decano da Faculdade de Ciências Veterinárias da Universidade de Melbourne – Austrália, que demonstrou, tanto para a comunidade científica quanto para os produtores, que a doença subclínica tem maior impacto econômico para o sistema que os quadros clínicos.
Entende-se como doença subclínica aquela doença que está presente no animal / rebanho, mas o produtor não consegue identificá-la de maneira clara, sendo necessária muitas vezes a utilização de métodos complementares de diagnóstico por parte do médico veterinário. É importante ressaltar que a grande maioria das perdas econômicas do sistema, referentes às enfermidades, estão associadas a estes quadros subclínicos, que de uma maneira geral, caracterizam-se por baixa severidade – quando comparados aos quadros clínicos – perdurando no sistema de uma maneira muita mais prolongada. Esta permanência prolongada acarreta um elevado grau de perdas para o sistema.
Para ilustrarmos esta ideia tomemos como exemplo um estudo realizado em 2002 pelo setor de Clínica de Ruminantes da EV-UFMG, em que foi perguntado a 63 produtores da bacia leiteira da região metropolitana de Belo Horizonte quantos de seus animais apresentavam enfermidades do sistema locomotor. Em um universo de 323 vacas, os produtores apontaram 7% destas como animais com algum grau de manqueira. Após realizar o questionário, estes mesmos animais foram examinados, verificando-se que na verdade 87% destes apresentavam algum tipo de enfermidade nos pés.
Nota-se claramente no exemplo acima como estes sistemas podem estar comprometidos pela presença “invisível” das formas subclínicas das doenças. Se somarmos a estes resultados alguns dados sobre diminuição na ingestão de matéria seca e produção de leite, podemos ter uma pequena idéia dos impactos do subclínico na produção. Peter Robinson, pesquisador da Universidade da Califórnia (UCDavis), mostrou que vacas com claudicação discreta ( escore 2, a partir do escore de manqueira 1-5) apresentam algum grau de redução na ingestão de matéria seca (M.S.), assim como na produção de leite. Vacas com escore 3 de claudicação - caracterizado pelo ligeiro arqueamento da linha de dorso em estação e ao se locomover - apresentam redução de 3% na ingestão de M.S. e 5% na produção de leite. Se extrapolarmos estes resultados para um rebanho de 200 animais com produção média de 30 litros de leite/animal/dia, teremos uma perda diária de 200 litros de leite resultando em 6000 litros/mês ou R$6000,00 assumindo o preço pago por litro de leite como sendo de R$1,00. Observa-se que esta perda ocorre de maneira direta, entretanto, devemos lembrar que outras perdas estão indiretamente associadas, como aumento no tempo de serviço, predisposição a doenças concomitantes resultando em descarte involuntário entre outros.
Além do conceito de doença subclínica, cabem aqui mais dois outros conceitos, risco e fator de risco. Define-se risco como a probabilidade de ocorrência de um resultado desfavorável, de um dano ou de um fenômeno indesejado. Já o fator de risco é definido como um fator ou uma via que pode conduzir um indivíduo à maior probabilidade de desenvolver uma doença ou a uma maior probabilidade de ocorrer o problema / dano.
Fig 1. Fatores de risco: é necessário entender para intervir com sucesso.
Ao levantarmos os fatores de risco de uma propriedade nos deparamos basicamente com duas classes como demonstrado no esquema abaixo, Fig 2. No primeiro grupo estão localizados os fatores de risco que juntos irão contribuir para o aumento da ocorrência de uma determinada doença na propriedade, como exemplo o piso inadequado, o excesso de umidade, a dieta rica em concentrado de rápida digestão, a não adaptação adequada à dieta, são todos exemplos de fatores de risco que podem aumentar a incidência de laminite no rebanho. Já o segundo grupo está relacionado a aqueles fatores de risco que podem influenciar no aumento da ocorrência de várias doenças, como por exemplo, o manejo inadequado do esterco no ambiente pode propiciar o surgimento de moscas, a ocorrência de mastites ambientais, o aumento das lesões de casco entre outras.
Fig 2. Esquema mostrando o agrupamento dos fatores de risco em dois tipos: Tipo 1- vários fatores de risco contribuem para o aumento na ocorrência de uma determinada doença. Tipo 2 – um fator de risco pode levar ao aumento da ocorrência de várias doenças no rebanho.
Uma vez compreendidos os conceitos de doença subclínica, risco e fatores de risco passaremos ao próximo ponto que é exatamente a doença. O que é doença? Por que duas propriedades vizinhas, possuindo os mesmos agentes, mesmo clima, relevo entre outras semelhanças apresentam quadros diferentes em relação à incidência e tipo de doenças? A simples presença destes agentes quase sempre não é suficiente para desencadear um problema. A saúde ou doença são processos que não ocorrem ao acaso, assim como uma propriedade bem sucedida também é fruto de uma interação favorável entre fatores. Basicamente, a doença clínica ou subclínica é observada no sistema quando ocorre um desequilíbrio entre a tríade Indivíduo, Ambiente e Agente, Fig. 3. Imaginemos uma balança onde de um lado encontram-se os desafios impostos pelo agente e pelo ambiente e do outro as defesas do hospedeiro. Caso o desafio seja maior que a defesa, esta equação resultará em doença. Já em contrapartida, se os desafios forem menores que as defesas, estes serão debelados e a doença não residirá no sistema.
Fig 3. Esquema mostrando a relação entre Hospedeiro, Agente e Ambiente, e as nuances de cada um deles que podem resultar em saúde ou doença de acordo com o equilíbrio desta equação
Ao entendermos a “equação” que resulta em doença ou saúde, o impacto da doença subclínica no sistema e a existência e o papel dos fatores de risco construímos uma visão integrada do sistema de produção e percebemos que as medidas exigidas devem ser “lidas e extraídas” na propriedade Fig 4., trabalhadas de uma maneira integrada, utilizando-se para isso as diversas ferramentas disponíveis.
Observando a Fig 4, quais são as interpretações possíveis desta propriedade? Quais os impactos / reflexos decorrentes desta situação?
Sob este novo enfoque, surge a Medicina de Produção que tem como objetivo aumentar a eficiência do sistema de produção através da identificação e controle dos fatores de risco, da minimização de erros de manejo, além da busca constante por uma correta e eficaz interação entre as ferramentas da produção (Nutrição, Reprodução, Ambiência, Genética, Clínica e Cirurgia, Patologia, Epidemiologia, entre outras). Como resultado, teremos uma maior produtividade sem abrir mão da saúde e bem-estar animal e da segurança alimentar, quesitos imprescindíveis para quem quer se manter no mercado atual, garantindo assim um produto final de qualidade.
Para o sucesso na aplicação da filosofia da Medicina de Produção, deve-se instituir alguns passos, sendo eles: o estabelecimento de objetivos/metas gerais e específicas; a divisão e inclusão de programas específicos para cada categoria de animais da propriedade (princípio e prática); o treinamento da mão de obra e o fornecimento de condições e materiais necessários para realização da atividade de maneira eficaz e segura (prática com princípio); o desenvolvimento de ferramentas de monitoramento - índices de produção, exames complementares - a fim de acompanhar o desenvolvimento do projeto e, por fim, por meio do registro de um banco de dados e a minuciosa interpretação dos mesmos, a avaliação dos resultados, e, caso necessário, o ajuste do programa para se chegar às metas previamente propostas.
Programas de gestão em saúde de rebanhos devem produzir registros que poderão ser utilizados para definir a frequência e distribuição de eventos dentro do rebanho, avaliados em conjunto para identificar e investigar fatores de risco ou causas de eventos de saúde e doença. Para tanto, uma base sólida em epidemiologia deve ser o primeiro passo no conjunto de competências da Medicina de Produção, sendo aconselhável dominar o conhecimento sobre a estrutura funcional do gerenciamento do rebanho, da convergência de funções de gestão operacional da fazenda em relação à saúde, produtividade, economia, bem-estar animal e meio ambiente. São também imprescindíveis conhecimentos específicos sobre a fisiopatologia, a dinâmica, o diagnóstico e a prevenção de doenças, tornando o profissional apto a interpretar não só a doença clínica e subclínica, mas também os dados de produção e os impactos deles decorrentes. Ademais, deve-se ampliar a capacidade de comunicação do técnico a fim de estimular e motivar a manutenção de registros, a melhoria dos procedimentos de gestão e adoção das recomendações propostas, atuando como uma fonte e um crítico de novas informações disponibilizadas ao produtor.
Gustavo Henrique Ferreira Abreu Moreira1
Patrícia de Alencar Auler2
Julia Gomes de Carvalho1
Elias Jorge Facury Filho3
Antônio Ultimo de Carvalho3
1- Médico (a) Veterinário (a) Mestre em Ciência Animal
2- Médica Veterinária Mestre em Biologia Celular
3- Professores da Disciplinas Clinica de Ruminantes I e II e Medicina de Produção de Ruminantes
Os autores são integrantes do Grupo de Ensino Pesquisa e Extensão em Medicina de Produção (GEMPE) da Escola de Veterinária da UFMG