No artigo anterior, procurei desenvolver estes quatro pontos (para conhecê-lo clique aqui). A reação dos leitores foi surpreendente. Recebi 32 cartas comentando o artigo. Um recorde para esta coluna e o site, para um só artigo. As cartas partiram de onze estados da Federação e até de Nova York. Os autores das cartas têm ocupação diversa na cadeia do leite: produtores, consultores e extensionistas, laticinistas e indústria de insumos, pesquisadores e professores, estudantes e outros. Portanto, o assunto chamou a atenção de todos os segmentos que se dedicam ao agronegócio do leite. Voltemos a esse assunto, o excesso de leite.
Para se projetar o futuro, a primeira variável importante é a estimativa do crescimento da economia brasileira, pois isso dá uma noção de como a renda per capita do brasileiro deverá se comportar. Nos últimos vinte anos, a média de crescimento brasileiro, medido pelo Produto Interno Bruto - PIB foi de 2,6% ao ano. Nada indica que será diferente nos próximos vinte anos.
Avançamos muito nestes vinte anos. Controlamos a inflação, reduzimos a dívida externa e estamos tendo superávit primário (ou seja, as contas do Governo demonstram que a arrecadação de impostos é maior que os gastos). Mas, esse superávit foi obtido com uma elevada carga tributária, ou seja, 40% de toda a riqueza gerada. Isso significa que restam 60% para a sociedade gastar em consumo e poupar. Além disso, foi obtido com uma brutal redução dos investimentos públicos. E não será o Plano de Aceleração do Crescimento - PAC, que irá mudar este quadro.
Para reduzir o volume de impostos e, com isso, liberar recursos para a sociedade aumentar o consumo e o investimento, seria necessário reduzir os gastos do Governo. Mas, como fazê-lo? Para desonerar o orçamento do Governo, seria necessário que um Presidente fosse eleito com uma maioria clara em torno da redução de gastos. Mas, o que se vê é a necessidade dos presidentes, ao assumirem o cargo, terem que construir uma maioria no Congresso. E, aí, fica difícil cortar gastos de modo qualitativo.
Vejam o caso da Previdência Social. A cada ano, ela representa um déficit maior do que todos os orçamentos da Embrapa somados, ao longo de sua história, de 1974 até hoje, para manter seus 41 centros de pesquisa. Um ano de déficit da Previdência se equivale a 32 anos de somatório dos orçamentos da Embrapa. Portanto, parece razoável prever que o crescimento brasileiro se manterá baixo nos próximos 20 anos.
A segunda variável importante é o crescimento da produção. Entre 1.990 e 2.005 a produção brasileira cresceu 70%, saindo de 14, 5 bilhões de litros, em 1.990, para 24,7 bilhões de litros, em 2.005. Nesse período, a produção na Região Norte cresceu 240%, a Região Centro-Oeste cresceu 123% e a Região Sul cresceu 105%. As regiões Nordeste e Sudeste cresceram, respectivamente, 41% e 36%. Embora com percentuais abaixo da média nacional, é importante registrar que os percentuais de crescimento destas duas regiões ultrapassam, em muito, o da produção mundial, que esteve próximo a 20%.
O gráfico 1 retrata o percentual de crescimento anual da produção brasileira, entre 1.991 e 2.005. Entre 1.990 e 1.999, quando ocorreram as grandes transformações como a granelização e importações volumosas de leite, a média anual de crescimento da produção foi 3,2%. Nesta década atual, a média anual cresceu para 4,6%. Neste período de quinze anos (1.991 a 2.005), que congrega o fim do tabelamento, abertura da economia e Real valorizado, a média anual de crescimento foi de 3,8%. Portanto, temos valores expressivos, como média de crescimento da produção, em período recente.
Gráfico 1, Percentual anual do crescimento da produção de leite no Brasil 1991-2005.
Fonte: Banco de dados Embrapa Gado de Leite. Cálculos do autor.
Um argumento apresentado por aqueles que não acreditam na manutenção de taxas elevadas de aumento da produção de leite nacional, diz assim: se a produção crescer além do consumo o preço irá cair. Logo, como o produtor é racional, como preços menores, ele terá desestímulo a continuar a aumentar a produção. E, assim, a produção e o consumo se ajustam.
Esta é uma afirmação lógica. Está em todos os manuais de microeconomia. Mesmo quem nunca teve oportunidade de lê-los, aceita, exatamente porque é lógico.
Ocorre que, em pesquisa, pode-se usar o método dedutivo e o indutivo. O método dedutivo significa partir de situações gerais e chegar a conclusões particulares. Exemplo: Se conheço mil vacas que têm tetas, posso afirmar que a vaca que você tem na sua fazenda também tem tetas, mesmo que eu nunca venha a conhecê-la. Já o método indutivo é o contrário. Se a primeira vaca que conheço tem tetas, se a segunda tem, se a terceira tem... concluo que todas as vacas têm tetas.
Os dois métodos são importantes, mas podem levar a erros de conclusão. O dedutivo, porque particulariza uma afirmação geral. O indutivo, porque generaliza uma situação particular. No nosso caso, imaginar que a produção de leite irá deixar de crescer se o preço cair, não está correto.
O primeiro argumento que lanço mão, contrário a essa afirmação aparentemente óbvia, baseia-se na rica experiência que vivi com dois colegas pesquisadores da área de economia da Embrapa Gado de Leite, em 2.001. Naquele ano, Alziro, Takao e eu percorremos, de carro, os estados de Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, visitando 162 fazendas, com o apoio de dez empresas do setor.
No Rio Grande do Sul, na região que corresponde ao centro do Estado para o norte, vi produtores com longa tradição no cultivo "do soja", que estavam abandonando aquela atividade por absoluta incapacidade de manter suas famílias em áreas muito pequenas, frente às exigências de escala que estas culturas cada vez mais apresentavam. Eram produtores que migravam da soja (e trigo), para o leite...
A ilustração 1 permite visualizar esta região. A pesquisadora Rosângela Zoccal, da equipe de economia da Embrapa Gado de Leite, pesquisou as cem microrregiões do Brasil que tiveram maior crescimento na produção de leite, exatamente entre 1.990 e 2.005. Surpreendentemente, dessas cem, nove estão localizadas naquele Estado. As microrregiões de Passo Fundo, Carazinho, Não-me-toque, Guaporé, Três Passos, Santa Rosa, Sananduva, Soledade e Ijuí tiveram aumento de produção acima de 145% nesse período, mais do que o dobro da média brasileira. Não por coincidência, é nessa região que grandes investimentos em novas plantas lácteas estão acontecendo.
Figura 1. Região do Rio Grande do Sul com maior aumento de produção de leite, entre 1991 e 2005.
Já no oeste do Paraná, visitei produtores que, no passado, produziram soja, milho, trigo e milho, além de suínos e aves. Abandonaram tudo, pelo mesmo motivo: não suportaram a pressão por escala. Isso levou a Cooperativa Sudcoop, que está no mercado com a marca Frimesa, a entrar no ramo do leite. É isso mesmo. Iniciaram no leite por questões quase humanitárias, para apoiar os pequenos produtores familiares. Foram competentes em transformar ajuda social em negócio.
Das cem microrregiões que mais cresceram a produção entre 1.991 e 2.005, todas com desempenho acima do dobro da média nacional, doze são desta região do Paraná e estão na Figura 2. São elas: Pato Branco, Ponta Grossa, Toledo, Pitanga, Jaguariaíva, Ivaiporã, Prudentópolis, Guarapuava, Cascavel, Francisco Beltrão, Capanema e Irati.
Figura 2. Região do Paraná com maior aumento de produção de leite entre 1990 e 2005.
A Cooperativa Aurora, de Santa Catarina, é outro exemplo mais recente de competência. Entrou para o ramo lácteo para apoiar produtores cooperados "excluídos" de outras atividades agrícolas. E, das cem microrregiões que mais cresceram a produção, quatro são deste Estado. Os produtores familiares são menos afetados pelo preço pago, pois precisam produzir para sobreviver e não encontram outra opção que conjugue menos risco e maior retorno. Produtores familiares do Sul, que há quase uma década estão se convertendo em produtores de leite, continuarão a aumentar a produção.
Num outro extremo, estão alguns estados do Brasil Central e Norte. Em novembro passado estive em Jiparaná, em Rondônia. Lá, juntamente com a Embrapa Rondônia, nós promovemos o primeiro grande evento do leite no Estado. Ouvi do Secretário da Agricultura que, em Rondônia, existe o "dia do leite". Ele me explicou que, todo mês, no dia que os laticínios pagam ao produtor, as cidades ficam movimentadas. É dia de alegria para os comerciantes, pois os produtores convertem rapidamente sua renda em produtos e serviços para suas famílias. Naquela região, o custo de produção é muito baixo, e a produção tende somente a crescer. Vejam o caso de quatro estados. Das cem microrregiões com maior crescimento da produção, onze são de Mato Grosso, oito são do Pará, quatro são de Rondônia e dois de Tocantins.
Um novo argumento defendido por aqueles que supõem que a produção de leite não continuará a crescer está relacionado à agroenergia, ou seja, à energia renovável proveniente da agricultura. Muitos afirmam que as fazendas de leite "vão virar canavial". Não acredito nessa hipótese. Quem irá ceder suas terras para as usinas de cana-de-açúcar serão os produtores de leite pouco especializados. Em sua maioria, serão os "tiradores de leite". E, esses, há muito tempo não afetam o crescimento da produção. Portanto, a agroenergia não irá comprometer o excesso de leite previsto.
A terceira variável importante para analisar o futuro está relacionada ao consumo. Esse assunto foi discutido no artigo anterior. Para resumir, entre 2.005 e 2.025, o crescimento da população cairá de 1,4% ao ano para 0,8% ao ano. Ou seja, cairá pela metade, em vinte anos. Além disso, o PIB do país crescerá em média 2,6% ao ano e o brasileiro continuará destinando menor percentual de aumento no consumo de lácteos que o percentual do aumento da renda. Portanto, o consumo não crescerá muito.
Discutidas as três variáveis (crescimento da renda, crescimento da produção e crescimento do consumo), convido verificar o comportamento da produção e consumo entre 1.985 e 2.005, entre 1.990 e 2.005 e entre 2.000 e 2.005. Os dados estão na Tabela 1. Perceba que, entre 1.985 e 2.005 a produção e o consumo cresceram à taxa média anual de 3,5% ao ano. Entre 1.990 e 2.005, a taxa média anual da produção cresceu pouco mais que a do consumo. Mas, entre 2.000 e 2.005, a taxa média da produção cresceu bem mais que a do consumo.
Tabela 1. Taxas Médias Anuais de Crescimento de produção e Consumo de Leite para Períodos Selecionados. Brasil.
Fonte: Banco de Dados da Embrapa Gado de Leite. Cálculos do autor
É chegada a hora de estimar o quanto poderá ser o volume de leite em excesso. Para isso, é necessário considerar o tempo presente e o passado recente. Afinal, o que vamos fazer é projetar o futuro. Não iremos fazer previsões categóricas. Não sou vidente, como a Mãe Dinah. Mesmo ela, até agora, não se atreveu a prever o futuro do leite. O que iremos fazer é projetar o futuro, com base no passado e no presente.
Vamos construir três cenários para a produção e o consumo, para 2.025. No cenário 1, suponha que, entre 2.005 e 2.025 a produção cresça 2,0% ao ano. Não é muito. Afinal, nos últimos quinze anos a produção cresceu 3,8% ao ano e, nesta década, o crescimento foi de 4,6% ao ano, como foi mostrado na Tabela 1.
Suponha, agora, que o consumo de leite cresça 1,2% ao ano. Nesse cenário, em 2.025 a produção seria 37,2 bilhões de litros - um crescimento de 48,7% em relação à 2.005. Já o consumo seria de 31,6 bilhões de litros, com crescimento de 26,9%. Nesse caso, teríamos um excedente de 5,6 bilhões de litros em 2.025.
No cenário 2, suponha que o crescimento da produção seja um pouco maior, ou seja, 2,5% ao ano, e que o consumo também seja maior, ou seja, cresça 1,5% ao ano. Nesse caso, a produção seria de 41 bilhões em 2.025, superior em 64% à produção de 2.005. Já o consumo seria de 33,5 bilhões de litros, superior em 34,5% ao consumo de 2.025. O excesso seria de 7,5 bilhões de litros.
No cenário 3, suponha que a produção cresça 3% ao ano e o consumo 1,2% ao ano. Nesse caso, a produção seria de 45,2 bilhões de litros e o consumo de 31,6 bilhões de litros, em 2.025. O excesso seria de 13,6 bilhões de litros. Os dados que resumem estes cenários estão apresentados na Tabela 2.
Tabela 2. Produção e Consumo de Leite para 2.025, em três cenários distintos. Brasil.
Fonte: cálculos do autor
Agora, as reflexões são suas, caro leitor. Caso queira externá-las, envie sua opinião para esta coluna. Irei comentar todas as correspondências enviadas. Mas, informo que somente depois de 05 de março. No próximo artigo terminaremos a trilogia sobre o excesso de leite, procurando discutir como reduzi-lo.