Somente algo muito agudo e impactante poderia roubar momentaneamente o espaço das importações nas discussões do setor lácteo nos dias de hoje. E esse algo veio no final de semana: o vídeo da ONG Mercy For Animals, estrelado pelo ator Márcio Garcia. No vídeo, a partir de imagens lamentáveis retratando vacas leiteiras sendo maltratadas, o ator jogou em uma vala comum o setor inteiro, como se as práticas mostradas fossem a realidade geral da produção de leite.
O vídeo, logicamente, gerou forte indignação em todos os envolvidos com o leite. Esse tipo de ataque, que já acontece há algum tempo em outros países, ainda é (era) raro por aqui, e como lidar com isso é algo que precisamos aprender, não do ponto de vista da ação imediata, mas da blindagem contínua do setor contra estas difamações. A imagem abaixo me foi enviada por um conhecido nessa semana. Um grupo entrou em um supermercado e etiquetou várias marcas de leite. O vídeo, portanto, não foi uma ação isolada.
Há, no entanto, possíveis aprendizados disso tudo. A crise nos dá a oportunidade de refletir e agir, reduzindo os efeitos de um novo episódio parecido no futuro. Há, a meu ver, 3 aprendizados nessa semana:
O setor, coletivamente, tem força e uma narrativa positiva
Ainda que de uma forma não organizada e sem recursos, a manifestação espontânea de produtores, técnicos, entidades e empresas repercutiu bem mais do que o vídeo da MFA (que também repercutiu bastante, com mais de 475 mil views no perfil da ONG).
Abaixo, os números de algumas dessas respostas. Somente 4 das postagens do setor, alcançaram aproximadamente 1,9 milhão de views.
Repercussão dos vídeos de @camilatelles, @camponutricaoanimal, @frabricionascimento31, @ampedroso.
O curioso é que, em um dos grupos do leite, com especialistas de várias áreas, a orientação é que o melhor caminho era não responder, porque era isso que os detratores queriam. De fato, faz sentido: polemizar dá mais visibilidade ao tema, exceto se a resposta for tão efetiva que silencia o outro lado. O impacto foi tão grande que tanto o ator quando a ONG retiraram os vídeos do ar.
Ao mostrar a realidade, com produtores abraçando suas vacas, ou técnicos trazendo pontos de vista embasados, foi possível mostrar o outro lado, a ponto de (independente do motivo), o ator se retratar e pedir desculpas. O barulho foi grande e essa retratação, ainda que meio capenga para alguns, foi uma grande e rápida conquista. Não é comum isso ocorrer quando há fortes vieses ideológicos envolvidos. Essa vitória, em um momento em que o setor anda meio de cabeça baixa, às voltas com importações elevadas e preços em queda, é significativa, representando um resgate da dignidade.
Outro aprendizado importante é que temos que contar a nossa história para uma população que desconhece a realidade do campo. É isso que o setor tem feito em países como Canadá, Estados Unidos e Austrália, que enfrentam a narrativa contrária já há décadas. Se não fizermos isso, outros farão por nós, e teremos sempre que correr atrás. A boa notícia é que, de certa forma, conseguimos fazer isso, não sei se furando a nossa bolha e falando para um público leigo, mas ao menos para forçar a retratação.
Se tivermos recursos, é possível fazer algo mais estruturado, com preparação e alcançando a mídia e as redes de forma mais ampla.
A câmera estará sempre ligada. Cada vez mais.
Todos que viram as imagens ficaram chocados, sejam integrantes do setor, ou não. Aqui, concordamos com a ONG e com o ator. É inadmissível que uma fazenda leiteira aplique essas “práticas” ou mantenham os animais sob aquelas condições. Não faz sentido nem ético nem econômico, e certamente quem assim atua vai, com o tempo sair da atividade.
As questões envolvendo o bem-estar animal vieram para ficar e cabe ao setor atuar para que, de um lado, casos como esse se tornem cada vez mais raros e, de outro, conseguir separar o joio do trigo e evitar que corramos o risco de sermos vítimas de uma generalização.
Os laticínios devem ter um papel importante aqui, ao estabelecer pagamento por critérios de bem-estar animal; os técnicos, as empresas de insumos e entidades do setor têm um papel importante ao educar; o governo poderia pensar em linhas de financiamento para ações voltadas para o bem-estar animal, para que esse processo de evolução, que está ocorrendo, seja ainda mais rápido.
O vídeo, porém, traz desinformações que passaram meio despercebidas porque as imagens de maus tratos sobressaíram. Há, no entanto, ataque a práticas como a separação de vacas e bezerras, ordenha mecânica, inseminação artificial e confinamento de vacas. É evidente que há má intenção da ONG que fez o vídeo, mas não estou preocupado com ela, e sim com os 85% de habitantes urbanos – CONSUMIDORES - que desconhecem o setor (e não tem obrigação de conhecer). Como será que interpretam essas práticas, ao tomar conhecimento delas através de postagens como essa? Temos um longo caminho para fazer essa ponte com a sociedade e explicar, sabendo que nem todo mundo vai concordar.
Há sutilezas que fiquei pensando. A palavra “confinamento”, por exemplo. Em uma rápida busca, “confinar” significa “enclausurar, aprisionar, encarcerar.” Não é um bom termo para representar vacas deitadas em extremo conforto, com ventilação, aspersão e comida fresca. Vamos lembrar que os transgênicos tiveram enorme dificuldade de aceitação em função do peso do termo e de não ter sido explicado corretamente para a sociedade – prato cheio para quem quis difamar de forma organizada essa tecnologia. Pois, que chamemos o confinamento de “sistema resort all inclusive”, mas não de algo que, para o leigo, remete à prisão e privação de movimento.
O que fazer diante da vitória?
Compreensivelmente, muita gente do setor não ficou satisfeita com a retratação, ou nem considerou que foi uma retratação, porque o ator não disse com todas as palavras, “eu errei”. Mas ele pediu desculpas e disse que não foi intenção generalizar (embora tenha feito exatamente isso) e, mais importante, não teve a intenção de atacar “um setor pelo qual tem profundo respeito”.
Não se trata aqui de saber a motivação dessa súbita mudança de visão, se foi medo, se foi prejuízo, ou se simplesmente ele viu que errou: entrou em uma roubada ao embarcar numa crítica contundente de algo que pouco conhece. Para mim, isso é irrelevante agora, e para mim a retratação foi suficiente para aceitar a “bandeira branca”. De novo, é difícil isso ocorrer, e devemos aproveitar a chance para tentar criar uma ponte.
A hora de reagir já passou: ganhamos essa batalha. O que eu faria? Convidaria o ator para visitar boas fazendas, sem que isso seja feito de forma agressiva ou retaliatória (essa é a parte mais difícil). Ah, mas ele não vai! Provavelmente não, mas é o certo a fazer. Se cada influencer que atacar o setor (e, nesse caso, ainda assumindo o erro) virar nosso inimigo eterno, confesso que temo pelo nosso futuro, já que esses influencers, normalmente urbanos, falam muito mais com a grande massa de consumidores do que nós.
Também, se tivermos organização e algum recurso, podemos nos antecipar e trazer influencers para conhecer a realidade das fazendas produtoras de leite, sem o compromisso de postar. Acredito que, aqueles que visitarem uma propriedade com boas práticas vai pensar 2x antes de atacar ou generalizar – gente mal-intencionada existe (quando então a via jurídica pode ser o único caminho), mas prefiro acreditar que a desinformação tem e terá cada vez mais peso.
Ocorreu-me aqui uma passagem do excelente filme Invictus, que retrata a participação da África do Sul no Mundial de Rugby, no mesmo país, logo após a eleição de Nelson Mandela. Os Springboks, como é conhecida a seleção de rugby do país, era um símbolo da supremacia branca. Os simpatizantes do Mandela esperavam que ele mudasse o nome do time, o uniforme, enfim, eliminasse os vestígios daquilo que representava o horror do Apartheid. Mandela não só não fez nada disso, como convidou o capitão (loiro) do time para um chá, visitou a seleção e torceu como um torcedor fanático (a África do Sul ganhou o título). Ao ser questionado pelos seus, ele disse algo como “destruir os Springboks é o que todos esperam que façamos. E aí, os perderemos (os brancos). Temos que ser melhores do que isso.” Foi uma bela lição de liderança, e quem não viu o filme, recomendo fortemente que veja.
Ainda que o fígado esteja doendo, não devemos pensar com ele, mas sim com outro órgão. Nosso objetivo não é ganhar a batalha, mas sim a guerra. E a guerra é ter uma população que veja o setor como produtor de um alimento nobre, gerador de renda e riqueza, e que trate bem os animais e o meio ambiente. E isso será bem mais fácil se cultivarmos menos inimigos.
No terceiro episódio do Leite Futuro, no ar em 18/07, a conversa antecipou o assunto dos desafios da comunicação e da imagem do agro e do leite para o consumidor final e as possíveis soluções. Além da minha presença, do Paulo do Carmo Martins e do Ricardo Cotta Ferreira, o episódio contou com a presença da Fernanda Bacelar, produtora de leite com um longo histórico profissional no marketing. Vale a pena conferir esse episódio que se correlaciona com o atual momento.
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