Primeiro, é interessante analisar como se deu o problema. Pelo que foi divulgado na imprensa, o leite foi adulterado com água e teve a adição da substância (que tem uréia em sua constituição) para elevar artificialmente o teor de nitrogênio, aumentando o teor de proteína. Essa fraude teria sido feita por intermediários (não se sabe ao certo se produtores estão envolvidos, mas algumas notícias alegam que sim) que adquirem o leite do produtor e vendem para as indústrias, muitas delas multinacionais. O leite processado foi então vendido para a indústria de alimentação, sendo transformado nos mais diversos tipos de produtos alimentícios, como leite em pó, chocolates, barras de cereais, biscoitos, etc. O maior problema, no entanto, foi a contaminação do talvez mais nobre dos alimentos, as fórmulas infantis, destinadas a bebês.
Como a China exporta para o mundo todo, diversos países começaram a detectar produtos com melamina e o escândalo passou das fronteiras chinesas, resultando na suspensão das importações oriundas desse país por diversos outros países, principalmente na própria Ásia. Não só as empresas chinesas foram afetadas, mas também multinacionais como Heinz, Unilever, Cadbury e Fonterra, que amargou forte prejuízo econômico e de imagem com o episódio envolvendo a SanLu, de quem é sócia na China, com 43% de participação. Ao todo 20 empresas, incluindo as gigantes Yili, Megniu e a Bright Dairy, foram afetadas. Foi, certamente, um escândalo de proporções chinesas.
A partir dessa breve descrição, é possível analisar o episódio sob diversas facetas. A primeira é o choque de realidade: por mais que a China e outros países emergentes representem o presente e, mais do que isso, o futuro no que se refere às oportunidades, existem fragilidades que podem colocar em risco essa expansão. Em busca de regiões que combinam leite barato, consumidor ainda menos exigente, menor regulamentação e consumo em elevação, em oposição aos mercados altamente regulados, com leite de custo mais elevado e diversas pressões provenientes da mídia, de grupos de interesse e de governos, o capital, necessitando de retorno a curto prazo, se desloca para os países emergentes que, como mostra o exemplo chinês, esconde armadilhas perigosas, especialmente quando se trata de um alimento intrinsecamente ligado à nutrição infantil. As armadilhas são várias, desde o desconhecimento do funcionamento do sistema político e como proceder no caso de crises (nos primeiros dias após o anúncio da contaminação, a Fonterra disse que estava aguardando para entender como proceder de acordo com "o sistema chinês"), até a própria incerteza e o desconhecimento quanto ao funcionamento das instituições no que se refere à garantia de qualidade.
Essa migração carregaria menos riscos se ocorresse em outra época. Hoje, acaba por ser maximizada em função de vários aspectos: i) a globalização e o fluxo de mercadorias, podendo ampliar em muito os problemas que, antes, seriam locais; ii) internet e fluxo da comunicação, em que uma notícia envolvendo um problema local rapidamente ganha o mundo, repercutindo na imprensa global e nos diversos atores envolvidos; iii) o consumidor dos países emergentes recebe informações praticamente ao mesmo tempo de seus similares nas economias desenvolvidas e, portanto, muda seus hábitos e suas exigências em uma velocidade maior do que no passado.
Sob esse último ponto, vale aprofundar. O que quero dizer é que, se de um lado os países emergentes enfrentam dificuldades como a fiscalização (incluindo recursos e preparo dos profissionais responsáveis pela fiscalização), a noção consolidada da importância e da responsabilidade de se trabalhar com alimentos seguros, da produção à indústria, a corrupção, além das não menos importantes questões educacionais envolvendo os trabalhadores rurais e produtores, de outro seus consumidores tendem a ficar cada vez mais atentos a essas questões e repercutir de forma mais aguda os eventuais desvios de conduta. Em outras palavras, se o campo e a cadeia produtiva como um todo apresentam fragilidades no que se refere à garantia de qualidade, o consumidor demandará cada vez mais essa qualidade, o que potencializa os prejuízos dos deslizes. Forma-se, potencialmente, um gap, uma lacuna entre o que o consumidor demanda e o que o setor pode entregar. Essa lacuna é prato cheio para produtos concorrentes que conseguirem sinalizar aos consumidores que, entre outras vantagens alegadas, garantem a qualidade e a rastreabilidade de seu produto. A empresa israelense Solbar, que trabalha com proteínas de soja, se antecipou e comunicou a seus clientes que possui todas as condições para garantir a qualidade de seus produtos, seja em sua fábrica em Israel, seja na unidade da China. A garantia de qualidade é, sem dúvida, o direito a ter um passaporte para o futuro.
O choque de realidade também aparece quando se avalia as características do mercado chinês. Apesar do forte crescimento e no potencial ainda maior, o mercado é altamente concorrencial e direcionado por preços.
Um trabalho da empresa Research and Markets diz que "atualmente existem 1600 laticínios na China, dos quais 30% apresentam lucro próximo de zero e 30% apresentam prejuízo. A competição tende a se agravar: as guerras de preços são freqüentes, a concorrência é feroz, inclusive para a compra de leite". O consumidor tem tido acréscimo de renda, mas como a alimentação ainda consome uma parcela importante da renda (cerca de 25% do total), a pressão por preços baixos é real e é um fator que, se não justifica, contribui para que indivíduos ou empresas de má fé lancem mão de estratégias ilegais para sobreviver nessa selva. Essa situação do mercado coloca obstáculos para o desenvolvimento de programas de certificação, garantia de qualidade e para a própria melhoria da fiscalização, uma vez que embutem custos adicionais.
A segunda faceta é que os mesmos atributos positivos que favorecem os lácteos, atuam negativamente quando ocorrem problemas. Explicando: o leite e os lácteos são tidos, na visão das pessoas, como produtos saudáveis, nobres, destinados a alimentação infantil. Bem ou mal, temos surfado nessa imagem e talvez isso explique o porquê as empresas investem tão pouco em propaganda e marketing. Essa percepção favorável estimula e facilita o consumo. No caso de um escândalo, porém, justamente por essas características, a repercussão é ampliada. Com leite, por fim, não se brinca.
É difícil saber o impacto dessa crise na China. No curto prazo, evidentemente, o efeito é devastador. As companhias cujos produtos foram contaminados tiveram queda nas vendas de 60% a 70% no último mês com relação ao ano anterior, disse o analista da Mental Marketing Dairy Consulting, de Xangai, Lao Bing. As vendas de lácteos no ano todo deverão ser 20% menores do que o valor registrado no ano anterior.
Para o médio prazo, fica mais difícil analisar. Alguns aspectos, porém, merecem uma ponderação. Individualmente, a China é o mercado de maior crescimento no consumo de lácteos em todo o mundo. Sozinha, foi responsável por algo em torno de 25% do crescimento da demanda de lácteos no mundo nos últimos anos. A China possui quase 20% dos habitantes da Terra e é um dos países com maior crescimento per capita do consumo de leite. Os lácteos, porém, não fazem parte da dieta chinesa tradicional. Há todo um processo de adaptação a novos hábitos de consumo, alavancados por programas governamentais de incentivo ao consumo de leite na infância e facilitado pela globalização e pela urbanização, que introduzem hábitos e alimentos ocidentais. Um episódio desses no mínimo breca essa tendência, ao colocar sob suspeita um alimento ainda novo ao paladar dos chineses.
Analisando de modo otimista, como li em alguma notícia sobre o tema, esse episódio criará um marco para a indústria chinesa, que substituirá o crescimento puro e simples, por um crescimento mais sustentável, a partir de premissas de qualidade e segurança alimentar, que permitirá à China desenvolver seu mercado e inclusive exportar, como já estava fazendo. Uma coisa, porém, é certa: o nível de exigência das empresas, ao adquirir produtos de terceiros, vai aumentar. Há relatos de empresas no exterior que isso já está ocorrendo: são necessários mais documentos e mais testes nos produtos, sejam eles da China ou de qualquer outro lugar.
Porém, ainda que esse seja o desenlace final, há grandes desafios até lá. Dentro desse contexto, um eventual baque no consumo de lácteos na China (e talvez em outros países do leste asiático) pode afetar o crescimento do consumo mundial de leite, que tende a ocorrer principalmente nos países emergentes, com destaque para a Ásia (ver figura 1).
Clique na imagem para ampliá-la.
Tivemos, no ano passado, um episódio de adulteração de leite no país, com forte repercussão na mídia (Clique aqui e leia matéria sobre adulteração do leite no Brasil). Felizmente, nosso problema foi muito menos dramático, foi localizado, mas houve pânico momentâneo, dano à imagem e às finanças das empresas envolvidas e a certeza de que o consumidor está atento a esse tipo de problema - e irá reagir de forma cada vez mais intensa. De lá para cá, houve avanços na fiscalização e uma associação setorial lançou programas de garantia da qualidade. A lição chinesa mostra que, se quisermos ter um mercado interno atrativo e em crescimento contínuo e se quisermos ocupar nosso espaço no mercado internacional de lácteos, temos de trabalhar firme para garantir a qualidade de nossos produtos e, no caso de desvios pontuais, saber rapidamente separar o joio do trigo, mostrando que o sistema como um todo opera de forma correta. O mercado cada vez menos tolerará situações como essa, com prejuízos muitas vezes irreparáveis para os diretamente envolvidos e, muito provavelmente, repercutindo nos não-diretamente envolvidos, o que demanda ações setoriais consistentes de prevenção.