A hipocalcemia, comumente conhecida como febre do leite, é uma das principais doenças metabólicas de vacas recém-paridas, presente em todos os rebanhos leiteiros, mesmo nos rebanhos menos produtivos e/ou com vacas mestiças.
Como ocorre a hipocalcemia?
A hipocalcemia, ou febre do leite, é ocasionada pela baixa concentração de cálcio no sangue (calcemia) das vacas no pós-parto, devido a redução do consumo de matéria seca (CMS) no periparto, em conjunto com o aumento das exigências de cálcio, a fim de atender o desenvolvimento fetal e a produção de colostro e leite.
Classificação da hipocalcemia: clinica e subclínica
Essa enfermidade é classificada como hipocalcemia clínica quando os animais apresentam concentração de cálcio inferior a 1,25 mmol/L (Goff, 2008) e indícios visuais da doença, principalmente tremores, paralisia dos membros e permanência em decúbito.
E subclínica (HCS) quando ocorre ausência de sinais clínicos, porém a concentração de cálcio é ≤ 2,15 mmol/L. Quando a calcemia é > 2,15 mmol/L, os animais são classificados como normocalcêmicos ou saudáveis (Martinez et al., 2012).
Além de reduzir a produção de leite, particularmente nos eventos clínicos, a doença acarreta o desenvolvimento de outras desordens com impacto produtivo, como diminuição da motilidade ruminal, retenção de placenta, metrite, cetose, deslocamento de abomaso, mastite, além de aumentar as taxas de descarte.
Essas doenças secundárias ou associadas a HCS, são consequências do desequilíbrio do cálcio, promovendo efeitos na musculatura lisa, que também podem comprometer o desempenho reprodutivo das vacas.
Impactos da hipocalcemia subclínica em vacas leiteiras
O impacto da hipocalcemia subclínica na eficiência reprodutiva pode ser explicado pelo fato das vacas com HCS apresentarem suas funções imunológicas deprimidas, em virtude da baixa disponibilidade de cálcio para as células de defesa, limitando a função fagocitária dos neutrófilos.
Dessa maneira, o sistema imune será afetado, aumentando o risco de contaminação uterina no pós-parto imediato, promovendo manifestações de casos de enfermidades uterinas, como retenção de placenta e metrite.
Outra explicação, refere-se ao fato da HCS estar relacionada ao estado energético do animal. Martinez et al. (2012) observaram maiores concentrações de ácidos graxos não esterificados (AGNE) em vacas com baixa calcemia, podendo estar associado ou não, com a diminuição do CMS. Com isso, o status mineral pode acentuar o balanço energético negativo, que está intimamente ligado as funções imunes e desempenho reprodutivo.
Porém, muito se diverge sobre a implicação da HCS na eficiência reprodutiva. Alguns autores acreditam não haver influência, com pouca ou nenhuma alteração das taxas reprodutivas. Por outro lado, outros pesquisadores relatam o oposto, principalmente demonstrando um impacto da HCS nos dias abertos e na taxa de prenhez.
Mas, afinal, por que esta heterogeneidade de resultados? Essa divergência entre estudos pode ser justificada, principalmente, pelo dia de coleta da amostra de sangue para determinação da calcemia.
Comumente, as concentrações desse mineral são menores (nadir) 24 a 36 horas após o parto, porém um diagnóstico adequado, não pode ser mensurado apenas por uma única coleta nesse período. Entende-se que a queda do cálcio no sangue, de maneira momentânea, seguido por um rápido restabelecimento da normocalcemia, é natural para vacas no início da lactação, principalmente multíparas. Além disso, essas vacas hipocalcêmicas no dia seguinte ao parto, mas normocalcêmicas no 3º ou 4º dia pós-parto, normalmente categorizadas como HSC “transitórias”, comumente apresentam excelente desempenho produtivo.
Porém, vacas com HCS “crônica”, ou seja, com persistência na baixa concentração de cálcio, até o 3° ou 4° dia de lactação, são mais propensas a apresentar enfermidades e diminuição no CMS e na produção de leite, também impactando negativamente na reprodução dos animais, em comparação com as vacas que apresentam apenas um declínio transitório.
Essas diferenças nas concentrações de cálcio no sangue das vacas com HCS transitória e HCS persistente nos primeiros dias após o parto, foram inicialmente relatadas no estudo de Caixeta et al. (2017) e ilustradas na Figura 1. Destacamos os animais com HCS crônica, que apresentam contínua e baixa calcemia até o 3º dia pós-parto e posteriormente de forma letárgica alcançam o equilíbrio do mineral no sangue.
Figura 1. Diferenças nas concentrações de cálcio nos primeiros 3 dias após o parto de vacas classificadas como normocalcêmicas (Eucalcemia), HCS transitórias (SCH) e HCS crônicas (cSCH).
Em relação a HCS persistente e o desempenho reprodutivo das vacas, um estudo foi publicado recentemente por pesquisadores da Universidade de Cornell, EUA (Seely e McArt, 2023).
Foram avaliadas 697 vacas multíparas no pós-parto, com objetivo de avaliar a associação da HSC (≤ 2,2 mmol/L) diagnosticada no 4° dia de DEL, com a taxa de prenhez ao primeiro serviço e dias em aberto.
Foram avaliadas 4 fazendas no Estado de Nova York, e dentre esses animais, 26% (n=182) foram classificados como HSC e 74% (n=515) foram classificadas como normocalcêmicas no 4º dia pós-parto.
Os autores observaram que vacas HSC ao 4º dia apresentaram menor taxa de prenhez ao 1º serviço, com 18,1% de taxa de prenhez para vacas HSC e 27,4% em vacas normocalcêmicas aos 4 DEL. Aos 150 DEL, a taxa de prenhez foi de 65,4% para vacas HSC e 70,7% para vacas normocalcêmicas no 4º dia pós-parto.
Além disso, vacas com baixa calcemia no 4º dia de lactação demoraram em média mais tempo para emprenhar (119 ± 16d) em comparação com as normocalcêmicas (103 ± 11d), como demonstrado na Figura 2. Assim, em resumo, vacas com HSC no 4º DEL apresentaram menor taxa de prenhez à primeira IA, menor taxa de prenhez aos 150 dias de DEL e demoraram mais dias para ficarem prenhas.
Figura 2. Curvas de prenhez de acordo com o DEL para vacas Holandesas multíparas (n=697) de 4 fazendas em Nova York, EUA. As vacas foram classificadas como normocalcêmicas (NC; n=515) e hipocalcêmicas subclínicas (SCH; n=182) se a calcemia fosse, respectivamente, > 2,2 mmol/L e ≤ 2,2 mmol/L aos 4 DEL.
Esses efeitos do status mineral na eficiência reprodutiva são explicados nos estudos, relatando que o maior tempo para a vaca conseguir emprenhar, pode ser devido ao tempo da involução uterina ser mais prolongado e o retorno da ciclicidade ovariana ser retardado, dificultando protocolos de inseminação.
Outros autores confirmam os achados desse estudo, e mostram também efeitos reprodutivos em vacas HSC com 3 DEL (Caixeta et al., 2017), relatando que os dias para retornar a ciclicidade ovariana foi semelhante em vacas NC e HCS transitórias (28 e 29 DEL), porém vacas com HCS persistente tenderam a demorar mais dias para retorno a ciclicidade (36 DEL).
Nesse mesmo estudo, essas vacas HSC persistentes também apresentaram menor chance de prenhez ao primeiro serviço em relação às vacas NC e HCS transitórias. Assim como, vacas com HCS persistente apresentam mais casos de doenças uterinas agudas, prologando-se para doença crônica, consequentemente aumentando os dias em aberto, bem relatado na Figura 3, referente ao estudo de Martinez et al. (2012).
Concluindo, existe uma relação negativa entre ocorrências de doenças uterinas no pós-parto e êxito na reprodução. E a hipocalcemia subclínica, particularmente a HSC crônica, aumenta a prevalência das doenças uterinas.
Figura 3. Risco de metrite em relação à mudança nas concentrações séricas de Ca entre o dia do parto e a menor concentração sérica de Ca nos primeiros 3 DIM.
Em resumo, os distúrbios reprodutivos são menores em animais que apresentaram adequada calcemia no pós-parto, mantendo os mecanismos homeostáticos do cálcio no metabolismo das vacas recém-paridas. Enquanto que os animais que apresentaram uma adaptação ineficaz aos desafios na transição, aumentaram as chances de desenvolver hipocalcemia, que pode se tornar persistente, comprometendo o desempenho produtivo e reprodutivo.
Por fim, é importante ressaltar a importância da identificação precoce de hipocalcemia subclínica dos animais, dado que as menores concentrações de cálcio sanguíneo foram observadas nos 4 primeiros dias de lactação. Mas dentro dos primeiros 3-4 dias pós-parto, é mais importante mensurar a calcemia no 3º ou 4º dia pós-parto do que no dia seguinte ao parto.
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Referências
Caixeta, L. S., Ospina, P. A., Capel, M. B., Nydam, D. V. Association between subclinical hypocalcemia in the first 3 days of lactation and reproductive performance of dairy cows. Theriogenology, v. 94, p. 1-7, 2017.
Goff, J. P. The monitoring, prevention, and treatment of milk fever and subclinical hypocalcemia in dairy cows. The Veterinary Journal, v. 176, p. 50-57, 2008.
Martinez, N., Risco, C. A., Lima, F. S., Bisinotto, R. S., Greco, L. F., Ribeiro, E. S., Santos, J. E. P. Evaluation of peripartal calcium status, energetic profile, and neutrophil function in dairy cows at low or high risk of developing uterine disease. Journal of Dairy Science, v. 95, p. 7158-7172, 2012.
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Seely, C. R., McArt, J. A. A. The association of subclinical hypocalcemia at 4 days in milk with reproductive outcomes in multiparous Holstein cows. JDS Communications, v. 4, p. 111-115, 2023.