Participaram das duas entrevistas Marcelo Pereira de Carvalho, do MilkPoint, o Prof. Luis Fernando Laranja da Fonseca, da FMVZ-USP, e o médico veterinário Alexandre Olival, do Instituto Fernando Costa.
Produtor informal
MP: O senhor trabalha há muito tempo com leite?
GU: Na verdade, desde que eu nasci. Meu bisavô já vendia queijo na cidade, de trole. Minha família está no leite desde essa época. Não é só leite, às vezes tem uma plantinha, outra coisa, mas o leite está sempre no meio. Quando casei, fui para Goiás e fiquei um ano lá. Quando voltei, comecei no queijo e estamos até hoje nisto (mais de 15 anos). Até no sobrenome a gente tem referência ao boi: acho que foi por trabalhar com gado que a gente tem este nome, de tocador de boi !
MP: Que área o senhor tem?
GU: Aqui, meu pai tem 20 alqueires paulistas (24.200 metros quadrados cada alqueire), mas como ele separou e criou outra família, ele ficou com 15 alqueires para lá e eu com 5 alqueires para cá. Eu tenho também um outro sitinho, de 4 alqueires e meio, junto com meu sogro.
MP: Como é o rebanho?
GU: Eu trabalho em torno de umas 20 vacas, quando vão ficando velhas eu troco por uma novilha, e assim vai. Elas dão uns 70 a 100 litros de leite por dia. Eu preciso manter esta média, por causa dos compromissos que a gente tem na cidade. Quando baixa muito (agora a época é ruim), eu pego leite do meu pai para completar. Eu faço uma só por dia. Eu fazia duas ordenhas, mas nesta época a produção cai muito e não compensa ordenhar de tarde.
MP: Qual é o destino do seu leite?
GU: A maior parte eu faço queijo e entrego na cidade. Agora, um pouco eu vendo para o laticínio, uns 20 a 25 litros por dia. Funciona como uma válvula, pois se a venda de queijo cai, eu aumento a entrega para o laticínio. Já meu pai está com mais de 100 litros entregue no laticínio.
MP: O senhor tem assistência técnica de alguém, ou da Casa da Agricultura?
GU: Nunca teve isso. A gente fica meio largada aqui. Temos muita amizade com o pessoal da Casa da Agricultura, a gente foi nascida e criada aqui, sabe como é. Sempre que eles precisam fazer um teste, ou querem alguma informação, vem aqui na nossa propriedade, porque a gente sabe tudo da região. Mas dizer que tem algum compromisso em nos ajudar, isto não tem não. Eles fazem mais é por amizade.
MP: A atividade está boa?
GU: (Risos). É difícil responder. Vontade de parar, dá toda hora. Mas vou fazer o quê ? Isto é o que sei fazer. O que mais me incomoda é ter que viver como bandido, porque sou um produtor clandestino. Eu corro o risco de alguém vir falar um monte de besteira para mim e ter que engolir o sapo. Mas ninguém dá opção para eu me regularizar, o que é que eu tenho que fazer. Esta questão de qualidade, por exemplo, ninguém vem me dar explicação de como melhorar. A lei é só para os grandes.
MP: Quais são as dificuldades de um pequeno produtor de leite?
GU: A falta de apoio. Outro dia mesmo ouvi falar que a cama de frango está proibida. A gente sabe, mas vai dar o quê ? O pessoal proíbe, mas não dá a solução. Como é que a gente fica ? No ano retrasado, tratei o gado com farelo de soja e de trigo, pagando R$ 9,00 o saco do farelo de soja. Hoje está R$ 25,00. Mas o leite está no mesmo preço, como eu vou fazer ? Quando virou o real, era 1 para 1 com o dólar. O preço do queijo era o mesmo de hoje, quando o dólar já é igual a R$ 2,50. Os custos aumentaram e o preço não. A situação está pior hoje do que há 5 anos atrás e a gente não recebe suporte de ninguém para melhorar.
Local onde os animais são ordenhados e alimentados
Gado e capineira de capim elefante, ao fundo
MP: Como funciona o seu comércio?
GU: As pessoas ligam e encomendam o queijo. Eu entrego só de quinta-feira, a partir de encomendas feitas na quarta-feira. Eu pego um preço melhor do que se tivesse entregando no laticínio. Consigo R$ 0,50 a R$ 0,55 por litro de leite fazendo queijo, com rendimento um quilo de queijo para cada 8 litros de leite (R$ 4 a R$ 4,40 o quilo do queijo vendido). Se for entregar no caminhão, recebo no máximo R$ 0,35. Dá uns 20 centavos por litro de diferença, é muita coisa. Eu entrego também leite, mas é muito pouco, só para pessoas muito ligadas, parentes. Mas já entreguei muito e tive problema de pagamento. Aquilo vai acumulando e no final a pessoa não tem dinheiro para pagar. É complicado lidar com isto porque às vezes a pessoa precisa mais do que a gente.
MP: Como é a sua estrutura de fabricação de queijo ?
GU: Eu construí um local próprio para isto. Eu faço pasteurização lenta do leite, em um tanque de aço inoxidável, a gás porque com energia não há quem agüente. Fiz câmara fria e tudo mais. Nós fizemos curso no SENAR para fabricação de queijos e outros derivados. A gente aqui já fez ricota, doce de leite. Minha esposa (Rosemeire) que é quem sabe fazer o queijo. Nós fizemos também curso de embutidos, de carne de porco. (Observamos a sala onde o queijo é fabricado; embora simples, o local aparentava higiene e asseio. O queijo, tipo minas, também tinha boa aparência, boa consistência e um bom sabor).
MP: Não compensa comprar leite dos outros para fazer mais queijo ?
GU: É o tal negócio: quanto eu compro do meu pai, eu pago a R$ 0,40 para ele, daí já diminui bem meu lucro, porque além da matéria prima eu tenho meu trabalho em cima; o custo sobe. Eu também tenho dó, sabe, não vou pegar o leite e pagar o mesmo que o laticínio. Vou criar um problema para ele, que é diminuir a entrega no laticínio, e ainda pagar a mesma coisa ? Fica ruim e eu prefiro pagar mais, mas ganhando menos. Na semana passada eu peguei 100 litros e paguei R$ 0,40, mas no final das contas quase empata; é mais para atender a freguesia.
Instalações para fabricação do queijo
MP: Mas está dando para viver bem?
GU: Está. Mas se o caminhão pagasse na faixa de R$ 0,40 a R$ 0,45, eu parava de ser clandestino, não faria queijo jamais, porque é uma preocupação que temos. Eu tenho vontade de regularizar minha situação. Se eu fosse regularizado, eu poderia mudar, fazer uma coisa mais complexa, investir, trabalhar em cima disto. Daria para tirar uns 200 litros de leite ou pegar leite da vizinhança, pagando bem. Sei que preciso investir para melhorar a minha sala de leite, onde faço o queijo. Mas é muito incerto investir nessa situação. Hoje, a gente faz as coisas, mas faz meio com medo, meio escondido. Amanhã ou depois vem alguém e fala que não posso fazer mais nada, como é que fico se eu investi na qualidade, na atividade ? Não posso aparecer muito.
MP: Então o senhor não gosta de ser informal?
GU: Ninguém gosta de fazer coisa errada. Mesmo sendo informal, a gente procura ter higiene e trabalhar com qualidade. Enviar leite com antibiótico, por exemplo, eu acho errado. Tem gente que a vaca cria e 3 dias depois já está com o leite no latão. Tem que ter consciência, quantas pessoas, crianças, vão se alimentar deste leite ? Se eu estou vendendo meu queijo para um lugar e vem outro e vende também, eu paro de vender o meu. Depois o pessoal reclama de algum problema e o meu produto é que fica com má fama. Prefiro perder a venda. Para os meus clientes, só eu forneço.
Residência do seu Gumercindo
MP: Qual é o custo da propriedade?
GU: Agora eu só estou dando a cama de frango, mais a capineira. O custo é mais a mão-de-obra e a energia elétrica. No final do mês dá R$ 800 a R$ 1000, tudo incluído. A gente fatura uns R$ 1500 por mês. Ter funcionário, nem pensar. A coisa é muito simples, o gado é simples, o trato é pouco. Para nossa região, tinha que melhorar o trato. Não adianta nada comprar uma vaca boa com o trato que a gente faz por aqui.
MP: O senhor tem acesso a financiamento para melhorar?
GU: Eu nunca tentei. Para falar a verdade, me mantenho meio distanciado dos bancos. Tenho minha conta lá, sou amigo do gerente. Mas procuro não me envolver muito. Uma vez falaram que tinha empréstimo lá no banco. Tinha uma linha de crédito de R$ 15.000 para fabricação de queijo mesmo. Eu animei. Me pediram uns documentos, eu arrumei. Quando voltei ao banco, não era mais o mesmo gerente. O gerente novo pediu mais um monte de coisas. Ele chegou a perguntar se eu tinha CPF. Falei para ele: sou brasileiro, quem é que pode viver sem CPF neste país ? Eles parece que menosprezam da gente. Larguei mão disso. As coisas parece que não funcionam direito por aqui: no SENAR a gente aprende a fazer queijo, mas ninguém ensina ficar legalizado !
MP: O que o senhor acha da organização dos produtores aqui da cidade ?
GU: Eu acho que pode funcionar. Eu sempre pensei em ter uma cooperativa. Mas você vê um monte de cooperativa falindo, não sei o que acontece. Teve uma cooperativa aqui na cidade, de laranja, que faliu. Estava na mão só dos grandes e mexia com laranja, uma coisa que não pode dar prejuízo. Eu perguntei: como pode ? Ninguém sabe. Se fizerem uma coisa bem feita, eu acho que pode dar certo. Eu acho que alguém tem que ser acionista com 51% da cooperativa e ser o presidente. Se falir, ele vai para o buraco mais do que os outros, certo ? Ele vai pensar muito antes de fazer bobagem. Se você pagar um profissional para gerenciar a cooperativa, ele vai buscar só os interesses dele. Aqui no nosso bairro tem muito pouco leite, não daria para montar um laticínio. Aqui tem uns 1000 litros só. Tem um laticínio ali do lado, mas acho que foi lavagem de dinheiro, porque montaram, nunca usaram e está caindo aos pedaços. Pegaram o financiamento, fizeram alguma coisa (tem uns R$ 200.000 em equipamentos), mas foram embora.
MP: E a fiscalização em cima do produtor clandestino ?
GU: Não tem. O prefeito da cidade era produtor clandestino de leite antes de ser prefeito. Eu falei para ele que queria regularizar minha situação e ele disse para eu não me preocupar, fazer queijo bom e vender que era suficiente.
MP: O senhor já ouviu falar do PNMQL ?
GU: Não.
MP: E da portaria 56 ?
GU: Também não (nós explicamos o que é o PNMQL e a portaria 56). É o que eu digo: eles (o governo) não dão condição para a gente melhorar, só exigências. É claro que todo mundo quer andar direito, mas precisa de apoio.
(finalizando, ele vira para a Rosemeire, sua esposa: - ô Rose, corta um queijo para nós?)