Desta forma, quando a IN51 foi promulgada em 2002, já fora previsto que a adequação dos produtores e dos laticínios ao novo ambiente de exigências mais rígidas de qualidade de produção demandaria a necessidade de mudanças dentro da fazenda e das relações entre produtores e laticínios. Até a própria IN 51/2002 foi promulgada prevendo que a entrada em vigor destas novas exigências de qualidade somente ocorreria em 2005, 3 anos após a publicação da IN 51/2002. Além disso, os primeiros requisitos mínimos de qualidade do leite cru foram bastante permissivos, justamente por se tratar de um conjunto de exigências pioneiras e que era totalmente desconhecida para a grande maioria dos produtores e dos laticínios. Por exemplo, os primeiros critérios mínimos de qualidade do leite cru, que começaram a vigorar a partir de 01/07/2005 foram de CCS < 1 milhão cels/ml e CBT < 1 milhão de ufc/ml.
Além de trazer de forma inédita a exigência de requisitos mínimos de CCS e CBT do leite cru, a IN 51/2002 estabeleceu um calendário de redução gradual destes limites mínimos, tornando as exigências de qualidade cada vez mais rígidas com o passar do tempo. Simplificadamente, a IN 51/2002 previa que a cada 3 anos após a entrada em vigor dos padrões mínimos de qualidade, que fossem realizadas revisões que tornariam os critérios de CCS e CBT ainda mais rígidos. O objetivo final desta legislação seria colocar os critérios mínimos de qualidade do leite cru do Brasil em condições de igualdade aos de países da Europa e dos EUA. Não é difícil imaginar que haveria necessidade de uma verdadeira revolução de melhoria de qualidade, para que o leite cru atendesse à nova legislação dentro de um prazo de 9 anos (de 2002 até 2011). Contudo, na realidade, somente com a entrada em vigor da nova legislação sem estar associada com outras medidas em relação aos sistemas de inspeção, capacitação do produtor, assistência técnica e pagamento por qualidade, não houve a melhoria que a legislação previa.
Vale ressaltar que a IN 51/2002 teve um enorme mérito de determinar critérios mínimos de qualidade do leite cru, entretanto não foi previsto quais seriam as consequências sobre os produtores que não atendessem aos requisitos mínimos e como os este novos limites mínimos de qualidade afetariam o mercado de leite como um todo. Em outras palavras, independentemente do limite mínimo de CCS ou CBT escolhido, não foram determinadas pelas autoridades sanitárias quais seriam as penalidades ou consequências sobre o produtores e/ou laticínios. Além disso, a velocidade com que as exigências legais de qualidade foram implantadas não foi compatível com a capacidade de resposta dos produtores e da indústria de laticínios, pois ao final de 2011, estimava-se que cerca de 30 a 40% das amostras de leite analisadas pela Rede Brasileira de Laboratórios de Controle da Qualidade do Leite (RBQL) estavam acima dos limites exigidos. Olhando para trás, é possível verificar que seria pouco provável atender aos requisitos mínimos de qualidade da IN 51/2002, sem que houvesse um enorme esforço e investimento de toda a cadeia de produção. Isto significa que houve uma expectativa excessivamente otimista de que o Brasil, com uma enorme disparidade de sistemas de produção e com grande número de produtores de leite, somente por meio de legislação, pudesse atender requisitos mínimos de qualidade do leite dentro do prazo de uma década.
A título de comparação, nos EUA, o primeiro limite legal de CCS foi de 1.500.000 células/ml, adotado em 1970. Esta legislação somente foi alterada em 1986, passando para 1.000.000 células/ml, e em 1991 foi estabelecido o limite que vigora até hoje de 750.000 células/ml. Nos EUA, cada estado pode definir limites diferenciados de CCS, o que levou a Califórnia a adotar o limite de 600.000 células/ml para o leite cru. No entanto, deve-se destacar que mesmo com o limite atual de 750.000 células/ml, a média de CCS dos rebanhos norte americanos em 2013 foi de 178.000 células/ml (98% dos rebanhos sob controle de CCS) e apenas 1,5% dos rebanhos avaliados apresentaram CCS acima do limite de 750.000 células/ml, cuja média de produção de leite foi de 10.200 kg/lactação (https://www.cdcb.us/publish/dhi/current/sccrpt.htm). Em outras palavras, o motor da redução da CCS não é a legislação e sim a demanda por leite de alta qualidade (incentivo via pagamento) e interesse do produtor em melhorar a saúde do úbere dos rebanhos, o que resulta em aumento de lucratividade.
É necessária uma nova revisão da IN 62/2011?
No final de 2011, a IN 51/2002 foi revogada com a publicação da IN 62/2011 (30/12/2011). Em termos concretos, a IN 62/2011 alterou o cronograma de entrada em vigor de limites mais rígidos de CCS e CBT, os quais não eram atendidos por uma parcela bastante significativa de produtores. Estima-se que em 2011, cerca de 40% dos produtores não atenderiam aos novos padrões de qualidade que entrariam em vigor a partir de 2012. Sendo assim, um novo calendário de entrada em vigor de requisitos mínimos de qualidade foi determinado pela IN 62/2011 (Tabela 1):
Tabela 1 – Requisitos mínimos de CBT e de CCS do leite cru, de acordo com a Instrução Normativa Nº 62/2011.
Considerando o calendário de implantação de requisitos mínimos de CBT e CCS determinados pela IN 62/2011, a partir de julho/2014, está prevista uma redução dos limites de CCS para < 500.000 cel/ml e de CBT para < 300.000 cel/ml. Neste momento de redução dos limites de CCS e CBT do leite cru, parece ser um momento oportuno para analisar as possíveis estratégias que podem ser usadas para evitar novas alterações na legislação atual, como a ocorrida com a IN 62/2011.
Uma das questões que necessitam de uma avaliação racional e detalhada é sobre a validade de termos padrões rígidos de qualidade, mas que não necessariamente são cumpridos. Em outras palavras, não ficou determinado de forma clara e antecipada pela legislação quais as penalizações são previstas para produtores e laticínios com média geométrica de CCS ou CBT (durante 3 meses) acima do limite legal. Sem penalizações previstas legalmente, é pouco provável que a legislação, independentemente de qualquer limite a ser definido, seja o motor de mudanças na qualidade do leite.
Além disso, do ponto de vista de saúde pública e de atendimento ao mercado consumidor, o limite de CCS não está necessariamente associado com riscos a saúde pública, pois as células somáticas estão naturalmente presentes no leite. Deste modo, não se pode considerar que haja diferença de segurança quanto ao consumo de leite com 400.000 ou 750.000 células/ml. Por outro lado, é necessário destacar que a CCS e CBT afeta diretamente o valor industrial do leite e características de qualidade sensorial (sabor), o que muitas vezes não é o principal critério de escolha dos produtos lácteos. Sendo assim, os programas de pagamento por qualidade com base na CBT tem obtido enorme sucesso em termos de respostas dos produtores, pois a redução da CBT é percebida de forma imediata, o que pode ser comprovado por estudos científicos em vários estados. Por outro lado, os programas de pagamento por qualidade que foram implantados não tiveram o mesmo sucesso quando se pensa na CCS, pois não foram obtidos avanços significativos de redução de CCS, pois o controle da mastite demanda medidas de médio e longo prazo.
Sendo assim, parece-me que somente fazer uma nova revisão da IN 62/2011 sem uma avaliação e planejamento sobre onde se deseja chegar e quais medidas necessitam ser tomadas para a melhoria da qualidade do leite no Brasil, tem pouca chance de avançar. A cada novo ciclo de 2 a 3 anos, pelos quais os limites de CCS e CBT serão revisados, a discussão sobre a validade dos limites mínimos de qualidade do leite e deficiências da cadeia produtiva serão novamente lembradas, pois ainda existe uma grande distância entre o que determina a legislação e o que a realidade média do setor. Ainda que seja uma processo de médio a longo prazo e que demanda uma coordenação entre vários elos da cadeia produtiva, algumas estratégias e ações são amplamente aceitas como fatores fundamentais para melhoria da qualidade, além de padrões mínimo legais de qualidade.
As principais medidas necessárias para a melhoria da qualidade são bastante conhecidas quanto à importância, à eficácia e os resultados esperados. Um dos exemplos, é a necessidade de treinamento e capacitação de mão-de-obra, com foco principal nas boas práticas agropecuárias (manejo de ordenha, medidas básicas de controle de mastite) dentro da fazenda e treinamento de transportadores (coletas de amostras). Além disso, outro ponto de igual importância é a necesisade de uma boa assistência técnica, visto que o produtor necessita de apoio técnico para a tomada de decisões e para identificar os pontos que podem ser melhorados dentro da realidade de cada rebanho. Atualmente, contamos com um conjunto de tecnologias simples e altamente eficientes para produção de leite de alta qualidade, dentro dos mais variados sistemas de produção do país. O terceiro fator deste tripé de medidas básicas para melhoria da qualidade do leite é o sistema de pagamento diferenciado, pois sem uma perspectiva de aumento de lucratividade, o avanço da qualidade é muito limitado. Muitos países produtores de leite adotaram com sucesso sistemas de pagamento com incentivos e penalizações sobre o preço do leite, em função de critérios objetivos de qualidade, como a contagem de células somáticas (CCS) e a contagem bacteriana total (CBT). Dentro as medidas apontadas (treinamento, assistência técnica e sistema de pagamento), os laticínios e cooperativas têm papel fundamental, visto que grande parte das responsabilidades quanto a melhoria de qualidade deveriam ser compartilhados entre produtores e indústrias. Não se deve esperar do produtor investimentos para aumentar a qualidade do leite se não houver perspectiva de retorno econômico e de ter condições básicas de assistência técnica e capacitação.